Tenho comentado aqui algumas sessões do Cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, onde estou exibindo e debatendo uma série de filmes sob a rubrica “Verdades e Mentiras do Cinema”. Já exibimos oito filmes em oito sábados, e dias atrás fizemos uma sessão do Jogo de Cena (2007) de Eduardo Coutinho.
O
cinema de Coutinho demonstra um interesse muito grande pela pessoa humana, suas
emoções básicas, suas alegrias, seus medos, seus acertos de conta com a vida. Como entrevistador parece que tinha um ritual
meio distante, que deixava o entrevistado já alerta. Mas depois o papo flui de
maneira afável, porque ele não pressiona o entrevistado, ele vai dando pequenos
toques.
No
caso deste filme, são as
entrevistadas. Para quem não assistiu: a produção botou um classificado nos
jornais, um teste de atriz, para mulheres dispostas a contar suas histórias
pessoais diante de uma câmara. Oitenta e três se apresentaram, vinte e três
foram selecionadas e gravaram entrevista com Coutinho, no Teatro Glauce Rocha
(Rio).
Coutinho
tinha essa medula emotiva, demonstrando empatia, o que acabava provocando
reações variadas dos entrevistados, sempre em benefício da conversa. No debate
na “Darcy”, Sérgio Almeida, professor da escola, citou um texto de Coutinho a
respeito do melodrama. Coutinho gostava de melodrama? Tinha uma certa aspereza
na aparência que era logo desmentida quando se via um filme seu. Vê-se que para
ele a emoção humana era uma coisa muito real, e eu acho que os entrevistados
sentiam algo assim.
Mas
ele tem também um interesse semiótico permanente, que é justamente o dessa
quebra de barreiras, quebras de realidade. Porque alguns dos depoimentos das
mulheres do filme, as entrevistadas, são parcialmente encenados por atrizes
profissionais. Elas viram as gravações originais; depois, contaram ao seu modo
a mesmíssima história, “entrevistadas” pela voz de Coutinho, na lateral.
Quando
o filme corta do depoimento de uma mulher que nunca vi na vida para o
depoimento de Andréa Beltrão, eu percebo que se trata da mesmíssima história, que
agora é uma atriz que está contando, e vou em frente. Nesse momento a história
se sobrepõe, pelo interesse que tem como história, como verdade emotiva humana,
como melodrama.
Só
que esse melodrama é relativizado por este truque reiterado, que acaba se
tornando gimmick central do filme. Mulheres desconhecidas / Atriz Fulana de
Tal.
É
uma coisa parecida (por mais peculiar que pareça essa comparação) com muitos
livros de Philip K. Dick. Seus personagens são violentamente emotivos, seus
casais são um inferno na Terra, os problemas profissionais e sentimentais deles
são acachapantes, mas Dick mantém uma empatia permanente com seus personagens.
Ele gosta da verdade emotiva humana. E a atenua com a imprevisibilidade de suas
histórias, onde não se sabem que é o real e quem é o simulacro.
No
filme de Coutinho, começa a ficar fácil dominar o simulacro e se concentrar
apenas nas histórias. As histórias são interessantes pelo que de histórias
contém. São histórias de mulheres sonhando, enfrentando dificuldades, tomando
decisões, arcando com consequências, admitindo derrotas, agradecendo as
vitórias. É a velha história: qualquer vida humana, bem narrada, daria um
excelente romance.
O
ping-pong entre real e simulacro começa a ficar mais confortável quando
aparecem também Fernanda Torres e Marília Pera, duas outras atrizes de imagem
já bem firmada junto ao público possível desse filme. A partir daí começa, pela
minha impressão, a segunda “quebra” de realidade, quando as cenas se prolongam
numa extensa ponteira do que poderia ser parte de um “making of” ou “por trás
das câmaras”. O diretor e a entrevistada comentam o que foi dito, como a emoção
se manifestou, etc.
Coutinho
abre as comportas da emoção, pela intensidade com que as entrevistadas se
manifestam com frequência, e depois segura e controla porque o espectador não
caia na modorra intelectual. A primeira quebra de realidade (é uma mulher,
agora é uma atriz conhecida, as duas “fazendo o mesmo papel”) tira um pouco
aquela vertigem da verdade intensa. Coutinho trabalha com uma versão distanciada
do melodrama.
Em
função disto, me lembro de uma palestra do cineasta Edgar Navarro, num festival
no Rio, ao falar sobre melodrama. O cinema de Edgar tem um lado de melodrama, mas
tem vários outros (melodrama “cortado” pelo humor, p. ex.) e num artigo daquela
época resumi assim a fala dele:
“A gente não
deve temer o Melodrama nem evitá-lo,” disse Edgar. “Em vez de
eliminá-lo, o jeito é assimilá-lo, absorvê-lo, mas mantendo-o sob controle pelo
uso de coisas que são o contrário dele.
Primeira coisa: visão crítica. Usar o melodrama, mas em vez de nos sujeitarmos aos seus clichês e seus processos, mostrarmos que não somos escravos nem devedores dele.
Segunda coisa: humor impiedoso. O pior melodrama é o que se leva excessivamente a sério, e quando alternamos o Melodrama com humor mantemos alguns aspectos bons que ele tem mas eliminamos seus excessos.
Terceira coisa: distanciamento brechtiano. Usar os clichês como se os estivéssemos mostrando através de uma vidraça, de uma moldura, de uma visão indireta que está claramente ali, perceptível ao espectador. Aquela cena de Danuza Leão dançando nos corredores do palácio, em Terra em Transe, é melodrama puro, mas é um melodrama brechtiano pela forma como Glauber a filma.
E quarta coisa: narrativa fragmentada. O Melodrama depende muito do ritmo hipnótico das cenazinhas-com-começo-meio-e-fim, que anestesiam a atenção do público. Quando a gente fragmenta a narrativa, a cada corte inesperado o público tem um sobressalto e acorda”.
O filme de Coutinho se encaixa perfeitamente neste último caso, sendo que o “fragmentar a narrativa” a que Edgar se refere inclui o que eu chamo “quebra de realidade”.
A
mesma quebra de realidade de alguns personagens de P. K. Dick, que saltam para
diante e para trás no Tempo, e atravessam universos paralelos, mas os conflitos
marido-esposa, pais-filhos, patrão-subalterno, são sempre os mesmos.
É
o melodrama “cortado”, como na mistura de bebidas, pela lucidez. Pela atenção
pra não se perder no ziguezague narrativo. Em Dick não se vê propriamente a fragmentação
do discurso verbal imediato. Vê-se a fragmentação da realidade consensual
proposta, ou sugerida, na parte inicial do livro. É o universo-acreditado que
se fragmenta.
Os
pequenos sustos conceituais de Jogo de
Cena são o bastante para manter o público acordado e alerta até a última
imagem, como num jogo de futebol onde até o último minuto tudo pode acontecer. E
quando a gente vê duas mulheres desconhecidas dizendo a mesmíssima história,
pensa logo que uma das duas é uma atriz, mas qual delas? Ou talvez as duas
sejam atrizes e a história é inventada? O Brasil está cheio de grandes atrizes
que eu não conheço, e eu considero isso uma ótima notícia.
Pra
uma história, basta ser inventada para conquistar um certo grau de verdadeira.