segunda-feira, 10 de maio de 2010

2031) A autodestruição como espetáculo (11.9.2009)




(Malcolm Lowry)

A certa altura do livro autobiográfico O Clube do Filme, o autor, David Gilmour, exibe para o filho adolescente um documentário sobre Malcolm Lowry, o autor de À Sombra do Vulcão

Lowry foi um desses famosos “escritores bêbados” como Charles Bukowski, Hunter Thompson, Hemingway, Faulkner. 

Seu romance reconstitui em forma de ficção os anos que ele passou no México, mergulhado num estupor alcoólico, absorvendo e reconstituindo literariamente, sabe-se lá como, o tumulto político do país.

Artistas que se auto-destroem através da bebida e de outras drogas exercem uma fascinação sobre os jovens. Talvez porque estes se julguem predestinados a grandes coisas, e também porque se julguem imortais. 

A maturidade (digamos, a fase entre os 30 e os 60 anos) é uma zona de transição necessária para que o jovem de antes possa tornar-se o velho de depois, e aceitar, sem sobressaltos, a idéia da própria mortalidade. 

Muita gente se surpreende quando fica sabendo do suicídio de um jovem. Para mim, não há surpresa. Sempre há um jovem que se crê imortal. Suicidar-se é um mero desabafo passageiro. O fogo dos hormônios que arde em seu metabolismo lhe dá plenitude de vida, e ele imagina que um tiro no ouvido conseguirá, no máximo, deixá-lo meio surdo durante alguns dias.

Diz David Gilmour em seu livro, dirigindo-se ao filho adolescente: 

“É assustador imaginar quantos jovens da sua idade se embebedaram e olharam no espelho imaginando ver Malcolm Lowry olhando de volta para eles. Quantos jovens pensaram que estavam fazendo algo mais importante e poético do que simplesmente encher a cara.” 

Um pouco desta sensação ocorre no mundo da música, com as legiões de rapazes e moças que se deixam encantar pelas vidas de Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, Raul Seixas. 

São artistas divididos entre a criação e a autodestruição, e ambas são públicas. Sua autodestruição se transforma num espetáculo, ou numa parte do espetáculo permanente entre eles e o mundo. A obra artística e a bebedeira parecem não poder existir uma sem a outra. Na verdade podem, e o mais frequente é que admiradores de tais artistas se dediquem mais à bebedeira do que à literatura.

Lowry afirmou certa vez: 

“E é dessa maneira que eu, às vezes, penso sobre mim mesmo. Como um grande explorador que descobriu alguma terra extraordinária da qual jamais poderá voltar para anunciar ao mundo sua descoberta: mas o nome dessa terra é inferno”. 

O escritor que se auto-destrói é alguém que pôs em funcionamento um mecanismo poderoso, um mecanismo que não consegue mais desligar. O erro maior de quem os avalia é imaginar que a droga ou a bebida lhes deram “inspiração para escrever”. Na verdade, droga e bebida os arrastaram para o abismo, mas isso ocorreu tão devagar que eles tiveram tempo de escrever (compor, cantar, etc.) seus pedidos de socorro, e para anunciar a todos o nome do lugar que tinham acabado de descobrir.





2030) O kitsch dos ditadores (10.9.2009)




Um artigo recente de Eric Gibson no Wall Street Journal (http://tinyurl.com/m63lds) comenta a foto tirada por Bill Clinton e o ditador da Coréia do Norte, Kim Jong II, na recente visita de Clinton àquele país para libertar duas jornalistas norte-americanas que estavam presas. 

Ao fim das negociações, o governo coreano divulgou uma foto em que os dois negociadores aparecem sentados, tendo por trás de si, em pé, seis autoridades coreanas. E por trás de todos, roubando a cena e atraindo irresistivelmente o olhar de quem vê a foto, há um gigantesco mural mostrando um oceano revolto, com ondas gigantescas desmoronando em espuma, e pássaros irrequietos esvoaçando. 

A presença do mural é tão acachapante que a foto nos dá a sensação de ter sido tirada diante de um desses gigantescos aquários como há em certos jardins zoológicos.

O artigo de Gibson se pergunta: Por que diabo os ditadores gostam tanto de obras de arte “kitsch”? 

Kitsch, no caso, é o pseudo-realismo academicamente aprendido e copiado, cheio de mensagens grandiloquentes, cheio da busca de emoções fáceis, dos clichês afetivos usados de maneira espertalhona, da mensagem unívoca e sem sutileza que dá, a um observador pouco culto, o ilusório conforto de poder interpretar a “mensagem” da obra sem correr o risco de falar bobagem. 

Diante das estátuas soviéticas de um operário hercúleo empunhando o martelo e uma camponesa hercúlea empunhando uma foice, o espectador do kitsch ergue o dedo e afirma com convicção: “Já sei! Ele está querendo dizer que os operários e camponeses são heróis, são destemidos, e que a Revolução triunfará”. Isto é o kistch político que os ditadores tanto apreciam.

Gibson analisa o painel de Kim Jong II: 

“A mensagem da pintura é simples: o regime de Kim Jong II é uma força da natureza. A luz suave e os pássaros esvoaçantes evocam a noção de um paraíso natural, uma alusão ao paraíso que tais regimes acreditam estar criando para seu cidadãos. As ondas que caem fragorosamente são uma metáfora para o poder do do Estado e para a disposição do Grande Líder em esmagar todos os seus inimigos”.

Ditadores gostam de mensagens claras. Se um ditador de esquerda tivesse encomendado a Picasso um mural sobre o massacre de Guernica, teria exigido que ele pintasse aviões de nacionalidade claramente identificável, criancinhas despedaçadas, etc. 

Picasso não estava interessado em reproduzir fotograficamente o massacre, mas em fazer uma espécie de biografia de todo o processo de destruição, revelação e reconstrução que aquele massacre fez na sua vida como cidadão e na sua pintura como artista. 

“Guernica”, que denuncia o massacre de uma ditadura de direita, é uma pintura que um ditador de esquerda detestaria. É ambígua demais, pessoal demais, inclui as emoções do sabedor naquilo que por ele é sabido. É tanto sobre Guernica quanto sobre Cartago ou Tenochtitlán ou sobre o próprio Picasso.





2029) Por uma topologia narrativa (9.9.2009)





A Topologia é um ramo da geometria que cuida de certas propriedades dos corpos, entre elas as posições relativas de objetos ou pontos, que não se alteram por mais que o objeto seja deformado (mas sem ser rompido). 

Imagine uma faixa circular de elástico, daquelas que servem para prender os cabelos. Nessa faixa, a gente escreve as letras A, B, C, D e E (ou quantas preferir). As letras estão dispostas ao longo de faixa nessa ordem. É intuitivamente evidente que podemos esticar e deformar o elástico para aumentar a distância entre, por exemplo, A e B, ou quaisquer outras. Mas é impossível fazer com que o ponto C passe a se situar entre A e B (ou quaisquer outros) sem romper a faixa. 

A topologia estuda tudo que decorre disso: de submeter um objeto às maiores deformações, esticando-o, moldando-o, encolhendo-o, mas sem poder mudar sua estrutura básica.

Um exemplo histórico de Topologia está no mapa do metrô de Londres criado em 1931 por Henry Beck. Até essa época, os mapas de metrô tentavam reproduzir a ordem das estações, a distância relativa entre elas e as mudanças de direção das linhas. 

Beck raciocinou que isso era desnecessário. Como o metrô segue trilhos fixos dentro dum tubo fechado, a única coisa que importa ao usuário é a ordem das estações. A distância entre elas podia ser representada como uniforme, e as linhas podem ser representadas por retas. Faz-se assim até hoje.

No metrô do Rio, por exemplo, quem pega o trem da Estação Botafogo rumo ao centro tem que passar, nesta ordem, por Flamengo, Largo do Machado, Catete, Glória, Cinelândia... O mapa do metrô precisa mostrar apenas a ordem em que as estações se sucedem. A distância entre elas é irrelevante. 

Botafogo-Flamengo e Glória-Cinelândia, por exemplo, são distâncias mais longas que as demais citadas. Mas o mapa precisa mostrar apenas a ordem em que elas aparecem. O estilo “topológico” de Beck foi adotado por metrôs no mundo inteiro.

A narrativa literária também pode ser vista assim. Quando contamos uma história com enredo, desenlace, etc., certos episódios devem necessariamente vir antes de outros. Ocupam uma estrutura topológica que não pode ser mudada. 

Isto é bem visível em gêneros como a literatura de detetive, em que é preciso haver primeiro um crime (A), depois uma investigação (B), e por fim a solução (C). O resto da narrativa é não-topológico, ou seja, pode aparecer em qualquer ordem; mas estes elementos têm que vir nesta ordem, e não em outra.

Se bem que basta um teórico como eu afirmar uma coisa assim para meia-dúzia de leitores correrem ao teclado com o intuito de desmentir a Teoria, e produzir uma história de detetive na qual nos é oferecida uma solução (C), acompanhamos em seguida uma investigação (B), e no final depois presenciamos um crime (A)... 

Não sei se funcionaria, mas realizaria o sonho de Jean-Luc Godard, que, indagado se um dia faria um filme com começo, meio e fim, respondeu: “Talvez, mas não nessa ordem”.






2028) Argentina 1x3 Brasil (8.9.2009)



Um senso inato de justiça me faz erguer, nesta página de hoje, um brinde metafórico à Seleção Brasileira e ao técnico Dunga, tantas vezes vilipendiado nesta página. O esporte é assim, amigos. O que queremos é resultado, e quando falo em resultado não me refiro apenas ao placar numérico, mas ao que um time mostra em campo. Discutimos há milênios a questão bizantina sobre o que nosso time precisa fazer: jogar feio e ganhar, ou jogar bonito e perder. O jogo de sábado passado, no estádio de Rosário, nos deu uma terceira alternativa: jogar com firmeza e ganhar com autoridade. O Brasil deu um banho de bola? Não deu. Humilhou a Argentina deu olé, deu goleada, deu pedalada, deu banho-de-cuia? Não deu. O jogo foi disputado, foi duro, foi nervoso, foi ríspido (era dentro do tal “caldeirão”, mas quem deu mais pancada fomos nós), mas a cada dez minutos que se passavam ia ficando cada vez mais claro quem estava extraindo o melhor do jogo, e era o time de Dunga.

Critico Dunga pela sua vocação defensiva, porque nossas melhores qualidades no futebol são as que se exprimem no ataque. Dunga, o jogador, era um destruidor nato, mas não era violento. Era um aporrinhador de atacantes, um carrapato, um prego na chuteira, grudava-se a eles como o Velho da Montanha grudava-se à cacunda do marinheiro Sindbad, sem dar-lhes um segundo de sossego. Seu time, desde que assumiu, tem exercido com perfeição essas tarefas, contando com defensores sempre firmes e sem firulas. Na frente, Ronaldinho Gaúcho nunca mais jogou nada, Robinho só aparece de vez em quando, e quem tem brilhado mesmo são Kaká e o predestinado Luís Fabiano.

O leitor talvez recorde a famosa luta em que Evander Hollyfield tomou de Mike Tyson, então imbatível, o cinturão dos pesos-pesados. Hollyfield entrou para se defender, porque calculou que Tyson estava acostumado a ganhar lutas-relâmpago e não aguentaria o desgaste de uma luta muito longa Deu certo. Ele aguentou a “blitzkrieg” de Tyson durante três, cinco, seis assaltos, e daí em diante Tyson foi se cansando, se desorientando, e aí Hollyfield partiu pra cima dele “como a vaca partiu pra Mestre Alfredo”. Algo parecido tem feito a seleção de Dunga em jogos cruciais como as vitórias recentes sobre o Uruguai e a Argentina no campo do adversário. Eles que venham. Com uma defesa cheia de xerifes, bem postada e solidária, o time se fecha. Júlio César, lá atrás, faz de vez em quando uns pequenos milagres aos quais já vamos nos acostumando. E quando o time parte para a frente tem recursos para brilhar.

O jogo de Rosário não foi tecnicamente brilhante, mas o futebol não é apenas técnica, embora este seja o seu aspecto mais bonito, a exibição de talento com a bola. Futebol também é ter nervos sob controle, saber acelerar ou retardar o ritmo do jogo, dar porrada quando é preciso, disputar cada bola como se o jogo fosse de basquete e faltassem quinze segundos. A seleção de Dunga finalmente aprendeu a fazer tudo isto.

2027) O novo Thomas Pynchon (6.9.2009)



Saiu este mês nos EUA o novo romance de Thomas Pynchon, intitulado Inherent Vice (Penguin Press, 369 páginas). Os leitores que acompanham esta coluna devem achar graça nesta minha fascinação por um escritor que quase não li. Acontece que Pynchon é um clássico de nossa época, e um clássico é alguém que a gente não precisa ter lido para gostar, para achar importante ou desimportante. Um clássico é alguém que entra em nossa mente por outros textos que não o seu próprio. Alguém que ouça rock a vida inteira e nunca tenha escutado um disco dos Beatles perceberá, quando um dia ouvir qualquer um deles, que misteriosamente já os conhecia. Tudo que encontra ali lhe é familiar por vias transversas. Um clássico é um autor que impregna seu próprio tempo por todos os lados. Um autor comum é um peixe. Um autor clássico é um oceano.

O novo livro de Pynchon sai apenas três anos depois do mais recente, Against the Day (2006), sendo este o intervalo mais curto entre dois livros desde os dois primeiros romances que publicou: V (1963) e The Crying of Lot 49 (1966). Ambientado em Los Angeles em 1970, é a história de um detetive particular, Doc Sportello, que parece à primeira vista uma versão californiana do Ed Mort de Luís Fernando Veríssimo. Mais do que uma homenagem, Doc Sportello, um maconheiro que costuma passar 24 horas seguidas “ligadão”, é uma paródia ao gênero do “private eye”. Walter Kirn, comentando o livro no New York Times, observa que, assim como os cowboys, os detetives particulares são heróis típicos de nossa época, pelo seu individualismo e disponibilidade: “São demasiado voluntariosos para serem policiais, e decentes demais para virarem bandidos, e isto faz com que não tenham aliados naturais em nenhum desses lados, e acabem atraindo inimigos em ambos. São individualistas que pagam por sua liberdade o preço da obscuridade”.

O jornalista Mark Horowitz, da revista Wired, descreveu o livro de Pynchon como um encontro entre The Big Lebowski e The Big Sleep, e quem conhece o filme dos irmãos Coen e o livro de Raymond Chandler deve sentir, como eu senti, uma vontade irresistível de correr para a livraria mais próxima. Pynchon é de certa forma um humorista. É novamente Walter Kirn quem diz: “Ele baseia seu intelectualismo no humor, e o torna mais vívido com alusões à cultura pop, sem ter que sacrificar o seu profundo rigor. É o melhor comediante metafísico de nossa literatura”. Neste romance, Pynchon se esmera em fazer exercícios de estilo sobre “pothead humor” (“humor de maconheiro”), que consiste, segundo observa Kirn com sarcasmo, em “vastas epifanias despertadas por trivialidades passageiras, e subitamente interrompidas por uma ânsia incontrolável de comer porcarias”. Pynchon (que hoje é novaiorquino mas morou na Califórnia nos anos 1970) reconstitui com primor (segundo os críticos) essa época perdida entre o Verão do Amor e o Outono da Autoridade.

2026) A roda da diligência (5.9.2009)



Na matinal de domingo, às 10 horas, no Capitólio ou no Babilônia, antes da série tinha sempre um filme de faroeste, do tipo A Fera do Forte Bravo, Na Borda da Morte ou A Última Carroça. O que mais nos intrigava era o fato de que muitas vezes, quando víamos a diligência passando, as rodas dela pareciam estar girando para trás, no sentido inverso à direção que ela seguia. Não lembro quantas horas de discussões perplexas isso nos consumiu na Praça da Bandeira. Ninguém conseguia explicar. Uma vez alguém foi propor o problema à professora e a professora disse: “Tudo que se vê no cinema é mentira”, e ponto final. Como discutir com ela? Todo mundo sabia que um filme não passava de uma porção de atores fantasiados, fingindo dar tiros, fingindo morrer. O que impedia a roda de fingir que rodava pra frente ou pra trás?

Descobrimos depois que o movimento, no cinema, era tão mentiroso quanto as mortes. As imagens do cinema não se movem. Basta pegarmos um pedaço da película: não existe movimento nenhum ali. É apenas uma série de fotos tiradas rapidamente (24 por segundo), fatiando um movimento em posições sucessivas. As fotos são projetadas a essa mesma velocidade. Nosso olho as vê tão depressa que as superpõe e tem a ilusão de estar vendo o movimento. Que não existe. Jean-Luc Godard dizia que o cinema é a verdade 24 vezes por segundo. Diria melhor se dissesse que o cinema é um segundo de mentira composto por 24 verdades.

E a diligência? Imagine o leitor a roda da diligência como o mostrador de um relógio comum. Os raios da roda são como ponteiros que apontam para todos os 12 números. Preste atenção a um deles, o que corresponde ao 12. A carroça está em movimento. A câmara bate um fotograma (1/24 avos de segundo). Digamos que a roda dá uma volta completa e cada raio dela está de volta à posição inicial quando o fotograma seguinte é batido, etc. Se a roda der 24 voltas completas em um segundo, cada fotograma mostrará os raios de volta à mesma posição. E a roda, em movimento, parecerá que está parada, porque vimos os raios sempre de volta ao mesmo lugar.

Ora, a velocidade da câmara é sempre a mesma (24 por segundo), mas a da roda varia, devido ao terreno, ao galope irregular dos cavalos, etc. Isso faz com que em alguns momentos um determinado raio seja filmado (lembre o relógio!) na posição 12, depois de uma volta na posição 1, depois de mais outra na posição 2... e os demais raios, claro, “recuando” da mesma forma. Teremos a sensação de ver a roda recuando. Ou avançando mais rápido que o resto da carruagem.

Este caso é um bom exemplo de distorção da percepção do tipo de qualquer ilusão de ótica, pintura “trompe l’oeil”, etc. Nossa professora estava certa: tudo que se vê no cinema é mentira, mas tudo que se vê fora dele também é mentira, no sentido de que é uma reconstrução feita pela ação conjunta dos olhos e do cérebro tendo que interpretar na marra os estímulos luminosos que recebem.

2025) A Missão Folclórica de Mário (4.9.2009)




Encontrei por acaso e comprei às pressas um pequeno tesouro cuja publicação já tinha visto anunciada na imprensa. Trata-se da caixinha Mário de Andrade – Missão de Pesquisas Folclóricas – Música Tradicional do Norte e Nordeste - 1938

Esse título diz o essencial. Em 1938, Mário era chefe do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, e idealizou a viagem de um grupo de pesquisadores pelo Norte e Nordeste do Brasil, munidos de gravador, para registrar a música folclórica daqueles (destes) cafundós. 

Mudanças políticas fizeram abortar esse projeto, que iria ter uma abrangência muito maior. Ainda assim, os pesquisadores fizeram um grande número de registros, que foram levados de volta para São Paulo e ficaram arquivados. 

Durante anos, esse material era acessível apenas aos pesquisadores que fossem lá consultá-lo. Agora, o SESC-SP lançou uma edição comercial. Se quiser comprar, vá aqui: http://tinyurl.com/2w3dtlc.

São seis CDs de músicas gravadas “in loco”. 

O CD 1 (34 faixas) tem música de Pernambuco. Os CDs 2, 3 e 4 têm músicas da Paraíba (num total de 158 faixas); o 5 se divide entre Paraíba e Maranhão (50 faixas), e o 6 entre Pará e Minas Gerais (37 faixas). 

São 279 faixas no total. E há mais um livretinho, do tamanho de um CD, com os textos (em português e inglês): “Viagem Pessoal e Missão Institucional” (Carlos Augusto Calil), “As Missões e o Progresso” (Danilo Santos de Miranda), “Os Registros Musicais da Missão de Pesquisas Folclóricas” (Marcos Branda Lacerda), “Missão: as Pesquisas Folclóricas” (Flávia Camargo Toni) e “O Nacional e o Outro” (Jorge Coli). Numerosas reproduções de fotos e desenhos da época. O pacote todo me custou 70 reais e foi a coisa mais barata que comprei nos últimos tempos.

No momento em que escrevo estas linhas, estou escutando (pela primeira vez na minha vida) as vozes de Dimas Batista e Belarmino de França, cantando mourão de sete linhas, martelo agalopado e outros gêneros, numa gravação realizada na cidade de Pombal, em 11 de abril de 1938. Dimas tinha 17 anos incompletos; Belarmino tinha 41. 

Em outras faixas aparece Lourival Batista, o grande “Louro”, na época com 23 anos. Há uma foto dos três juntos. Nunca conheci Dimas ou Belarmino, mas fui amigo de Louro quanto ele já tinha 60 anos. Difícil acreditar que é ele, aquele rapaz de calça branca e frouxa, um paletozinho apertado, gravata muito curta, suspensórios pretos, rosto moreno de feições marcadas, cabelos negros e bastos penteados para o lado.

Vejam o que é o Brasil. Mário de Andrade trabalhava para a Prefeitura de São Paulo. O que diabo o obrigava a gastar o dinheiro dos paulistanos mandando gente com um gravador até a Paraíba, até a distante Pombal, para gravar os Batista, que nem sequer eram “os Batista” nessa época?! Mário atirava no que via e acertava no que não via. Era outro Brasil; eram outros brasileiros.







2024) Budd Schulberg (3.9.2009)



Morreu este mês o escritor e roteirista Budd Schulberg, hoje conhecido apenas por cinéfilos. Para estes, ele era o cara que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro, em 1954, com o filme Sindicato de Ladrões, de Elia Kazan. Para os de viés mais politizado, era o delator indigno que, ao ser acusado de comunista durante a época da caça-às-bruxas no Macartismo, entregou uma porção de colegas esquerdistas, ajudando a mandá-los para a Lista Negra de Hollywood. Para mim, mais do que isso tudo, Schulberg é o autor de O que faz Sammy correr? (“What makes Sammy run?”), romance de 1941 que é um dos retratos mais impiedosos da indústria cinematográfica americana e dos indivíduos carreiristas que em grande parte a compõem.

Li esse livro na adolescência, numa versão condensada na “Seção de Livros” de Seleções. Vim reler no original, depois de adulto, e recomendo com entusiasmo. (Há traduções brasileiras, várias, que podem ser encontradas no portal Estante Virtual.) O narrador, um jornalista, começa a prestar atenção num office-boy que faz seu trabalho a toda velocidade e não deixa escapar nenhuma oportunidade de “mostrar serviço” e subir na escala profissional. Em pouco tempo, Sammy é promovido a repórter, redator, editor... Logo está em Hollywood, e poucos anos depois o narrador, que continua um jornalista mal pago, vê Sammy Glick transformado num dos grandes “tycoons” de Hollywood. Os dois mantêm uma relação tensa de amizade (em lembrança dos velhos tempos) e raiva, porque o narrador não se conforma com a falta de caráter e o oportunismo de Sammy, que é capaz de qualquer coisa para subir na vida.

Schulberg ficou marcado em Hollywood por ter sido um dos que, durante a perseguição aos comunistas na era do Macartismo, denunciou alguns colegas. Isto lhe valeu a fama de dedo-duro que abalou sua reputação. Entrevistado pouco antes de morrer, ele minimizava a importância do episódio. Ex-comunista, tinha se desiludido com o comunismo depois da execução de vários escritores russos de quem tinha ficado amigo, entre eles o contista Isaac Babel. “Além do mais,” disse ele, “não dei a eles nenhum nome novo. Todos os nomes de comunistas que citei, como Ring Lardner Jr., eram de pessoas que eles já conheciam”. Todo mundo enxerga Sindicato de Ladrões como uma auto-defesa de Schulberg e do diretor Elia Kazan (que também denunciou comunistas durante o Macartismo), mostrando que em certas circunstâncias ser um delator (como Marlon Brando no filme) é um ato de rebeldia e coragem.

Para mim, Schulberg será sempre o criador de Sammy Glick, o carreirista desenfreado, um personagem feito de palavras inglesas mas que eu próprio já reencontrei com nomes e rostos diferentes, e falando bom português. Oportunista, plagiador, blefador emérito. Como diz uma personagem: “Sammy, você é grande. Que outro roteirista seria capaz de comparar o roteiro que ainda nem escreveu com um clássico da literatura que nunca leu?”.

2023) P. K. Dick e o Mercerismo (2.9.2009)



Que a ficção científica inventou novas ciências, todo mundo sabe. O que nem sempre é dito é que ela inventou também novas religiões, que existem apenas no âmbito dos livros em que aparecem. Uma das mais curiosas é a religião midiática (porque divulgada através de uma espécie de TV) do Mercerismo, imaginada por Philip K. Dick em seu romance Do androids dream of electric sheep?, que deu origem ao filme Blade Runner. O Mercerismo é uma das boas idéias do livro que infelizmente não puderam ser transpostas para o cinema, por motivos variados. E uma razão a mais para ler o livro, que, filme à parte, é brilhante.

No futuro imaginado por Dick, os animais estão quase todos extintos e são substituídos por andróides, criaturas artificiais. E entre a população se disseminou o culto a um indivíduo, Wilbur Mercer, que é uma figura crística, que se sacrifica pelo bem dos outros. Mercer era um garoto que tinha o poder de ressuscitar animais mortos ou reconstituir animais mutilados. Por causa disto foi perseguido e projetado numa enorme sepultura coletiva ao ar livre, num lugar indeterminado. Graças à presença de Mercer, os animais começaram a voltar à vida, e ele iniciou sua Ascensão, subindo uma encosta íngreme de volta ao mundo. Os seguidores de Mercer acompanham essa Ascensão através de “aparelhos de empatia” com uma tela onde Mercer é visto (subindo a encosta com dificuldade) e alças metálicas que, quando são empunhadas, proporcionam uma fusão completa: o indivíduo “torna-se” Mercer, sente o vento frio, as pedras ásperas, o cansaço da subida, e a dor das pedras que pessoas invisíveis lhe atiram, tentando derrubá-lo.

O Mercerismo é uma religião de sacrifício pelos outros, como o Cristianismo. Uma religião de empatia, de compaixão pelo sofrimento alheio, capacidade de colocar-se no lugar de quem sofre. Assim como Mercer se identifica com o sofrimento dos animais a ponto de poder ressuscitá-los ou curá-los, os “aparelhos de empatia” fazem o usuário identificar-se com o próprio Mercer. (O nome, aliás, sugere “mercy”, perdão, bem como “merger”, fusão, mistura).

Rick Deckard (o personagem de Harrison Ford no filme) é um caçador de andróides que vive assaltado por sentimentos contraditórios – piedade pelos andróides que mata, e frieza ao lembrar que são apenas máquinas, não são seres humanos. No fim do livro, Deckard começa a ter suspeitas de que ele próprio seja um andróide. E um programa de TV de sucesso divulga a “bomba”: Mercer é uma mentira, uma encenação, um ator contratado para representar o papel de “messias” num cenário. Mas um dos seus seguidores o encontra, e Mercer lhe diz que sim: tudo aquilo é “fake”, é encenação – mas a idéia é verdadeira. Se a idéia da empatia, do sacrifício e da compaixão são verdadeiras, pouco importa se estão sendo expressas através de um ator decadente e de um cenário pintado. “Se Mercer é falso”, diz Rick Deckard, “então a Realidade também é”.

2022) Marina Silva para Presidente (1.9.2009)



No domingo passado, a senadora Marina Silva foi filiada ao Partido Verde (PV), e já se começa a lançar seu nome como candidata à presidência da República em 2010. Faz sentido. Se a facção direitista da esquerda (o governo Lula) propõe Dilma, cabe à facção esquerdista da mesma esquerda propor Marina. É como no baralho: para cortar uma Dama, quem não tem um Rei pode jogar na mesa uma Dama de trunfo. A condição de “trunfo”, no caso, é o fato de que a esta altura Dilma está misturada demais com isso-tudo-que-está-aí. Parece menos uma ex-guerrilheira do que uma futura-Margareth-Thatcher; enquanto que Marina ainda preserva grande parte da integridade ideológica e moral que trazia quando entrou para a política.

Marina tem vários charmes. Primeiro, as mulheres estão em alta na política, e na América do Sul já governam Chile e Argentina. Bem ou mal, é uma mudança – se não de governo, pelo menos de mentalidade sexista. Em segundo lugar, se não é preta retinta, está na faixa racial que nos faz considerar negro um Barack Obama, pelo menos. Em terceiro lugar, é da imensa, ilimitada, incontável família Silva, que a cada década vem ganhando espaço na política brasileira (veja-se Luiz Inácio Lula da Silva). E é do lado “moreninho” da família, que já nos deu o atual ministro Orlando Silva e a ex-ministra e ex-governadora Benedita da Silva. Há quem torça o nariz para o desempenho desses funcionários públicos. Mas o simples fato de que eles estejam chegando a esses cargos pode ser comemorado num país como o nosso, terra de poucos caciques (todos brancos) e muitos índios.

Não vou seguir enumerando as qualidades ou limitações de Marina Silva porque as páginas aqui em volta já devem estar se encarregando disso. Vou pular para outro assunto. Marina será, ao que tudo indica, a próxima vítima que estaremos oferecendo em sacrifício ao altar do Moloch Republicano, aquele Deus carnívoro, canibal, faminto, impiedoso, que exige sacrifícios humanos para saciar sua sede bestial de sangue e de reputações. Porque daqui de onde enxergo a política, vejo-a como uma sucessão de oferendas a esse Deus que traz para seu altar pessoas íntegras e as transforma em corruptos, traz homens bem-intencionados e os transforma em espertalhões e cínicos, traz indivíduos quixotescos, cheios de sonhos de transformação social, e os transforma em botadores-de-panos-quentes, fabricantes de placebos políticos, fornecedores de novos discursos para as velhas práticas de sempre.

A este altar sacrificamos nos últimos tempos (para dar apenas dois exemplos ilustres) o sociólogo de esquerda Fernando Henrique e o líder operário Lula. Uma vez assentados no trono de Moloch, transformaram-se em figuras de rostos indistingúiveis dos de sempre: ACM, Sarney, Caiado, Collor, Alkmin, Inocêncio, Serra, Roriz, Jereissati, Calheiros... É a esse altar que nos preparamos para oferecer Marina. Que seu sacrifício traga algum proveito ao povo que a escolherá.