quarta-feira, 18 de agosto de 2021

4735) Primeiras Estórias: "Sequência" (18.8.2021)



Na obra de Guimarães Rosa os animais aparecem de maneira curiosa.
 
Existem fabuladores contemporâneos que não se pejam de fazer um bicho falar, mesmo numa estória que transcorre nos dias de hoje, povoados por automóveis e televisores. 

Existem outros onde os animais aparecem como representações arquetípicas do inconsciente pessoal ou coletivo, e cada entrada deles na estória parece acompanhada por uma orquestra – inaudível; afinal, estamos em um livro.
 
Nos livros de Rosa muitas vezes alguma coisa acontece em torno de animais que parecem estar vivendo num mundo só deles, onde eles sabem coisas, se relacionam de maneira complexa com coisas que só a eles dizem respeito, e conseguem fazer isso apesar de estarem misturados a um mundo confuso de seres humanos dos quais não conseguem se livrar.
 
Talvez o melhor exemplo disso seja o “burrinho pedrês” do conto que abre Sagarana (1946). Nessa noveleta contam-se mil estórias humanas (os vaqueiros contam uns para os outros), mas a verdadeira estória que está sendo contada é a do burrinho que, dentro de suas limitaçõezinhas, ajuda a levar a boiada. Ele vai, ele volta, e ainda escapa com vida de uma enchente. E no fim a gente descobre que era a estória dele, que estava sendo contada: os vaqueiros são mera figuração de luxo.

(ilustração de Poty para "O burrinho pedrês")


Não vou nem falar na “Conversa de Bois”, no mesmo livro, onde temos acesso até a um diálogo telepático, mediúnico, entre os bois-de-carro que estão trasladando um defunto rumo a seu ponto final.
 
O que quero mesmo usar para comparação é “A estória de Lélio e Lina” (em Corpo de Baile, 1956), onde um vaqueiro larga um emprego, sai sem rumo, encontra no caminho um cachorro perdido e começa a segui-lo. Tal como Augusto Matraga, viajando igualmente sem rumo, seguiu o voo das maritacas, e acabou encontrando lá na ponta do trajeto a sua hora, a sua vez, e o facão de Joãozinho Bem-Bem.
 
O vaqueiro Lélio é levado pelo cachorro para aquela fazenda, à qual o cachorro pertencia. E a dona do cachorro é Dona Rosalina, uma senhora idosa e bonita, acolhedora e amiga, a quem Lélio acaba se apegando mais do que às moças de sua idade; e o resto está na estória.
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2019/02/4438-estoria-de-lelio-e-lina-2622019.html
 
Assim começa “Sequência”:
 
Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava.
 
Vacas não viajam, não é mesmo? Viajar é um verbo humano. Pressupõe intenção, planejamento, destinação, chegada.
 
A vaca é “uma rês fujã”, que fazia parte de uma boiada oriunda “do Pãodolhão”. Rebelde, ela se desgarra da boiada e começa a refazer o trabalhoso trajeto de volta, em busca do seu lugar de origem. Dada a noticia de que a vaca fugiu, Seu Rigério, o destinatário da boiada, fica meio enfarruscado, o que faz um dos seus filhos, “o rapaz”, não nomeado, montar no cavalo e partir em busca da desgarrada.
 
E o conto é isso, a vaca voltando, esquipando de campos afora, atravessando rios, acompanhando cercas até descobrir uma brecha, mas seguindo o GPS milenar dos bichos, “fronteando o nascente” enquanto o rapaz a busca “indo de oeste para leste”. Nestas indicações, aliás, veja-se a adequação da terminologia ao personagem. Porque uma vaca não está indo do oeste para o leste, mesmo que siga nessa direção; ela se guia pelo sol que vê ou pelo que lembra.
 
E este continho inteiro é a descrição dos variados ambientes por onde passa a vaca fugindo a trote lento e o rapaz teimoso que a persegue “à espora leve”, sem perder de pista.
 
O conto se deslinda nos últimos parágrafos, quando a vaca por fim irrompe na fazenda do seu dono anterior, o Major Quitério, do Pãodolhão, seguida já de perto pelo rapaz.
 
Tanto ele era o bem-chegado!
A uma rede de pessoas. As quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria: “É sua”. Suas duas almas se transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos.
 
Ou seja: toda essa fuga da vaca teve como consequência (teria tido como intenção?!) arrastar o rapaz até a outra fazenda, onde ele conhece a moça, apaixonam-se e casam.
 
Tal como o cachorrinho conduziu Lélio até a fazenda onde morava Lina, o que resultou noutro tipo de desfecho.
 
No meio disso tudo, os analisadores de detalhe não deixarão de perceber pistas de que para Guimarães Rosa seguir um animal é seguir o inconsciente humano. Não porque o inconsciente seja superior ao consciente, mas porque é sua metade. Vamos reconhecer que o inconsciente também se emociona e se confunde, a intuição muitas vezes nos faz dar com os burros nágua, o instinto de vez em quando nos faz cometer ruindades. O mesmo vale para a consciência, a racionalidade, o raciocínio.
 
O recado que essas estórias nos dão não é a mensagem simplória de: “Siga o inconsciente, ele é mais sábio do que sua mente raciocinadora”, é algo simples como: “Alterne seu raciocínio e sua intuição do mesmo jeito como alterna sua perna direita e sua perna esquerda, ao caminhar.” E pronto!
 
Seguindo a vaca, o rapaz cumpre um percurso simbólico que não deixa de ter um clima de cerimônia de iniciação, como quando ele se descalça e atravessa um rio, “liso e brilhante, de movimentos invisíveis”.
 
Passo extremo! Pegou a descalçar as botas. E entrou – de peito feito. Àquelas quilas águas trans – às braças. Era um rio e seu além. Estava, já, do outro lado.
 
O rio aparece de variadas formas na obra de Guimarães Rosa, mas muitas vezes como uma fronteira, um limite, um portal que dá acesso a outro mundo. E nesse trecho vê-se também o gosto lúdico do autor, brincando com as palavras – partindo e invertendo a palavra “tranquilas”, talvez para sugerir os movimentos alternados de idas e vindas dos braços de quem nada.
 
No encerramento do conto, ele pisca o olho para a tradição oral, referindo-se à “vaca-vitória”. Minha mãe e minha tia contavam estórias à gente, na infância, e terminavam às vezes dizendo: “Era uma vez uma vaca Vitória, soltou um peido e acabou-se a estória”. E a gente ia dormir com uma gargalhada sumindo no ar.
 

(Guimarães Rosa com seus pais, D. Chiquinha e Seu Florduardo)