terça-feira, 26 de janeiro de 2010

1574) “Juno“ (29.3.2008)




O simpático filme de Jason Reitman é mais uma produção independente que se impõe no mercado americano. Ótimo sinal. Apesar dos blockbusters super-caros sobre super-heróis dos quadrinhos, o mercado dos EUA tem recebido bem estes filmes feitos com pouco dinheiro e que repousam nas qualidades tradicionais do cinema médio americano: roteiros sólidos, bons atores, direção voltada para a velha arte de contar uma história. O problema com essas características é a rapidez com que ficam defasadas depois de alguns anos. Parece que estamos no despontar de uma nova safra. Juno concorreu a três Oscars (filme, roteiro, atriz). Oscar jamais foi sinal de qualidade, mas funciona como termômetro de tendências. E pela segunda vez em dois anos seguidos o Oscar de roteiro original foi para um novato: desta vez Diablo Cody (no ano passado foi Michael Arndt por Pequena Miss Sunshine).

Juno nem parece muito um filme americano; lembra mais um filme canadense ou holandês. O que tem de mais americano são os diálogos, muito engraçados mas quase ininteligíveis pelo acúmulo de gírias (e mesmo nas legendas muita coisa se perde). Grande parte do peso do filme repousa na atriz principal, Ellen Page, que carrega o edifício assobiando, na ponta do dedo mindinho. O papel parece ter sido escrito para ela ou improvisado por ela. É o charme desconcertante de sua personagem, carismática e imprevisível, que nos arrasta para longe daquele atoleiro mortífero, o filme-de-família dos EUA, feito para celebrar sentimentos e valores humanos. Uma espécie de livro de auto ajuda preparado com a fórmula do comercial de chiclete de bola. Juno e Pequena Miss Sunshine podem ser um indício de que o filme-de-família da próxima década conseguirá finalmente tratar de forma tranquila e minimamente franca certos assuntos que o puritanismo dos EUA sempre repeliu com horror e procurou expulsar da tela: aborto, divórcio ou separação, homossexualismo, drogas, gente não-bonita, gente que não dá certo na vida.

Há uma curiosa coincidência comercial nesses dois filmes. Little Miss Sunshine custou cerca de 8 milhões de dólares e arrecadou no mundo inteiro cerca de 100 milhões. Juno custou 6,5 milhões e arrecadou 200 milhões até este mês de março. A esta altura há milhares de produtores e roteiristas de prancheta eletrônica em punho, dando Stop, Rewind e Play em cada palmo desses dois filmes, para extrair deles a fórmula mágica de multiplicar por 10 ou por 20 um investimento. Titanic (o filme mais lucrativo da História recente, em termos absolutos) custou 200 milhões e arrecadou cerca de 2 bilhões, mas, quem é que tem 200 milhões para dar um pontapé inicial num projeto? Muito melhor tentar conseguir essa proporção com um dispêndio mais modesto. Só espero que essa busca pela fórmula não venha a nos deixar soterrados de imitações, como anda ocorrendo no filme-de-serial-killer pós-Silêncio dos Inocentes e fantasia heróica pós-Senhor dos Anéis.

1573) Walter da Silveira (28.3.2008)



Quando virei cineclubista, há cerca de quatro décadas, eram poucos os livros de cinema. Elementos de Cinestética, do Padre Guido Logger, uma obra básica sobre linguagem do cinema; a História do Cinema Mundial de Georges Sadoul, em dois volumes, uma overdose de informações, fonte de consulta até hoje; Caminhos do Cinema de José Rafael de Menezes, coletânea de reflexões sobre cinema e sociedade, por um pensador paraibano ligado ao movimento cineclubista. Entre eles, havia um livrinho de capa amarela intitulado Fronteiras do Cinema, de Walter da Silveira.

Foi talvez o primeiro livro que li no qual alguém dissecava em profundidade os grandes filmes. Quando vi pela primeira vez clássicos como Hiroshima, meu Amor ou a trilogia da incomunicabilidade de Antonioni, era como se estivesse revisitando obras vistas, revistas, vividamente imaginadas. Walter da Silveira (1915-1970) foi um dos grandes críticos baianos das décadas de 1950-60 que viram surgir o Cinema Novo brasileiro. Depois de sua morte, sua biblioteca de obras sobre cinema foi colocada numa sala da Associação Baiana de Imprensa, perto da Praça da Sé, sala onde já passei tardes memoráveis lendo obras raras e fazendo copiosas anotações.

Walter foi fundador (em 1950) e primeiro presidente do Clube de Cinema da Bahia, e desde então exerceu a crítica e o cineclubismo de maneira intensa. Recebi há pouco, por intermédio de José Umbelino Brasil, a coletânea dos artigos de Walter organizada em Salvador por José Umberto Dias. São quatro volumes, com cerca de 1.500 páginas no total. O primeiro cobre sua atividade crítica em jornais como O Momento, A Tarde, O Imparcial, etc., durante as décadas de 1940-50. O segundo tem material colhido do Jornal da Bahia, do Diário de Notícias e da Revista de Cultura Cinematográfica nos anos 1960. O volume 3 traz textos informativos sobre os filmes exibidos nas sessões de cineclubes, além de artigos variados em jornal, crítica literária e poemas. E o volume 4 traz seus artigos sobre artes plásticas, política e economia, além da artigos críticos a seu respeito.

A obra intitula-se Walter da Silveira – O Eterno e o Efêmero (Oiti Editora, 2006), e não deve haver um título melhor para descrever a atividade do jornalista, resenhador e crítico. O sujeito passa uma noite em claro burilando um artigo cheio de idéias revolucionárias e de frases bem torneadas. Na manhã seguinte o artigo estará sendo lido em milhares de residências, de cafés, de esquinas, de escritórios. E com mais 24 horas estará forrando gavetas ou embrulhando copos para uma mudança. O melhor de Walter da Silveira são as críticas longas, com fôlego de ensaio, onde ele revirava um filme por todos os lados, ao comentar Bergman, Chaplin, Welles, Antonioni, Kurosawa. E em suas longas e ferrenhas discussões sobre o cinema baiano e o cinema brasileiro, na época em que davam seus primeiros passos.

1572) O último livro de Nabokov (27.3.2008)



(o manuscrito de Nabokov)

O russo Vladimir Nabokov foi um desses casos raros de um escritor com outra língua materna que tornou-se um mestre da literatura em inglês. O outro foi o polonês Joseph Conrad; há também o caso de Isaac Asimov, mas chamá-lo de “mestre” seria forçar a barra. Depois de publicar numerosas obras que lhe trouxeram fama e fortuna (Lolita, O Olho Vigilante, Gargalhada no Escuro, Fogo Pálido, Ada, A Verdadeira Vida de Sebastian Knight), Nabokov morreu em 1977 e deixou nas mãos da viúva Vera e do filho Dmitri o manuscrito de um romance intitulado provisoriamente The Original of Laura, com instruções para destruí-lo, por ter ficado incompleto. Vera faleceu em 1991 sem tê-lo feito; Dmitri está agora com 73 anos e ainda não o fez. Por quê?

Esta é uma discussão que vem esquentando nos últimos meses na imprensa dos EUA. Alguns defendem a idéia de que a vontade de um autor é soberana. Se ele acha que um manuscrito ficou inacabado, ficou insuficiente, imperfeito, ele tem todo o direito de impedir que o público o veja. É o que fazemos em vida, quando rasgamos o que não nos satisfaz. (Ou quando o guardamos sem publicar. A gente escreve tanta coisa ruim que às vezes é bom reler de vez em quando, pelo menos para acreditar que evoluiu.) Outras pessoas acham que a humanidade tem o direito de conhecer o rascunho da última obra de um grande escritor, mesmo contra sua vontade. Citam o exemplo de Kafka, que pediu ao amigo Max Brod para queimar seus manuscritos. Brod desobedeceu, e aí estão os livros para quem quiser ler.

Na revista Slate, o crítico Jon Rosenbaum publicou dois artigos (http://www.slate.com/id/2181859/fr/rss/ e : http://www.slate.com/id/2185222/) tentando deslindar esse nó, e valendo-se do seu contato direto, por email, com Dmitri Nabokov. O manuscrito original consta de cerca de 50 cartões pautados escritos à mão, guardados num banco suíço. Alguns estudiosos já tiveram acesso a eles, e dão versões conflitantes sobre o que seria o enredo de The Original of Laura. Há influências dos sonetos de Petrarca, do filme homônimo de Otto Preminger, do “Retrato Oval” de Poe, do próprio Lolita? Mistério. O debate prossegue: queimar ou publicar? Rosenbaum sugere um meio-termo: ceder o manuscrito a uma das universidades ligadas à carreira docente de Nabokov, para ser consultado apenas por pesquisadores autorizados.

Max Brod defendeu-se dos que o acusaram de trair o último pedido de Kafka: “Ele não queimou os manuscritos quando poderia tê-lo feito pessoalmente. Pediu isso a mim, e sabia que eu era contra. No fundo, queria que fossem publicados”. Talvez seja diferente o caso de Nabokov, um perfeccionista no limiar da neurose. Por outro lado, Rosenbaum lembra que o autor era fascinado por todo tipo de jogo, truque, ilusionismo verbal, metalinguagem, e talvez essa “última vontade” fosse apenas pretexto para um último espetáculo de prestidigitação literária.

1571) Foto-camuflagens (26.3.2008)




(foto: Desiree Palmen)

Tornar invisível um corpo sólido (uma pessoa, p. ex.) é algo impossível no presente estágio da ciência. Mas há artistas que tentam – de uma maneira imperfeita, quase que apenas simbólica – invisibilizar pessoas e objetos.

Veja-se por exemplo Desiree Palmen, uma fotógrafa de Roterdam. Ela produz fotos de pessoas vestidas de tal modo a se confundirem com o que há por trás dela.


Ela fotografa (digamos) um banco de jardim, daqueles banquinhos feitos de tábuas estreitas, pintadas de branco, separadas por um centímetro de intervalo. Duas pessoas sentam no banco, a câmara é colocada no tripé, e em seguida as roupas das pessoas são pintadas de modo a reproduzir o “fundo” que elas próprias estavam ocultando.

Olhando a foto, depois de pronta, a gente sabe que existe algo ali, mas não distingue bem o que é. Parece uma zona de turbulência, distorcendo as imagens. Me trouxe à memória o filme de FC Predador, em que um alienigena usa um efeito semelhante para se confundir com a paisagem.

No saite da artista (http://www.desireepalmen.nl/) há várias séries de fotos desse tipo. Uma pessoa está parada diante de uma estante de livros; percebemos uma distorção visual que corre verticalmente ao longo da estante (as lombadas estão tortas, parecendo amassadas) até que, no chão, percebemos os pés do indivíduo que está ali. Sua roupa foi coberta com a pintura ou a reprodução fotográfica dos próprios livros que ele está escondendo.


Noutra foto, uma pessoa prepara-se para subir uma escada, no interior de uma casa. A escada é vista diagonamente na foto. A parte inferior das pernas do modelo está pintada de cinza escuro, cor do patamar onde a escada repousa; suas pernas e a maior parte do seu tronco estão pintadas de marrom, reproduzindo exatamente a posição dos degraus que escondem; um ombro e a cabeça (coberta por um capuz) estão pintados de branco, cor da parede ao fundo.

A pessoa fica invisível? Não, não fica. Em primeiro lugar, o efeito pretendido só é obtido para o ângulo em que se encontra a câmara fotográfica. Qualquer observador postado em qualquer outro ponto daquele ambiente veria a pessoa. E, depois, nunca existe uma correspondência perfeita entre a imagem pintada na pessoa e a imagem ao fundo.


Cientistas estão tentando produzir um efeito parecido. Já vi fotos de jaquetas especiais através das quais se via perfeitamente o ambiente ao fundo: uma rua, carros e pessoas passando. A jaqueta consta de milhares de circuitos eletrônicos embutidos no seu tecido plástico. Nas costas, há milhares de sensores que funcionam como microcâmeras; na frente, milhares de terminais que reproduzem a imagem captada às costas. Assim, se um automóvel passa por trás da pessoas, as câmaras às costas captam seu movimento e o retransmitem para a frente. O indivíduo não “fica transparente”, mas ainda assim é possível ver o que está por trás dele. Nossos netos irão às festas usando jaquetas assim.