sábado, 26 de julho de 2025

5191) O que é um milagre (26.7.2025)




 
Já disse um deísta irreverente: “Os milagres são interferências metalinguísticas em que Deus conserta seus erros de plot”. Não foi Jorge Luís Borges. A irreverência deste só ia até um certo ponto. No último parágrafo de “Os Teólogos”, ele ia quase afirmando que a Divindade era capaz de se enganar, mas logo recuou. 
 
O que é então um milagre? É qualquer ruptura das leis naturais, produzindo um fato impossível de tal proporção que só pode admitir origem divina. 
 
Algumas questões, porém, podem ser levantadas. Uma: um milagre é necessariamente algo bom, ou pode existir um milagre maligno? Duas: um milagre é apenas uma violentação das leis físicas, ou pode haver também um tipo de milagre que violente a lógica, o senso comum?  Três: quem decide que um evento foi milagroso?  Quatro: Todas as religiões trabalham com o conceito de milagre, ou só algumas? 
 
Não vou entrar no terreno filosófico-religioso porque nunca estudei nessa direção.  A direção que estudo é a do uso coloquial e do uso literário dessa palavra tão elusiva. 




 
Primeiro, lembro esta curta parábola de Julio Cortázar no seu clássico Hitórias de Cronópios e de Famas (1952): 
 
História verídica
Um homem deixa seus óculos caírem no chão, e eles fazem um enorme barulho, ao se chocar com os ladrilhos. Ele se abaixa, aflitíssimo, porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre com assombro que por milagre elas não se quebraram.
Então, esse senhor sente-se profundamente agradecido, e compreende que o que lhe ocorreu serve como uma advertência amistosa, de maneira que seegue para uma ótica e compra imediatamente uma caixinha de couro acolchoado, proteção dupla, para cuidar-se melhor. Uma hora depois, deixa cair a caixinha e ao abaixar-se sem maior preocupação percebe que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva algum tempo para entender que os desígnios da Providência são inescrutáveis, e que na realidade o milagre aconteceu agora. (trad. BT)
 
A historieta de Cortázar mostra o milagre-no-varejo, o pequeno milagre do nosso cotidiano. Nada de presença divina, nada de violentação das leis da natureza: apenas um instante em que acontece o extremamente improvável – primeiro, em nosso benefício; e depois, para nosso prejuízo, em sinal de alerta. 
 
“Meu tio foi consertar o telhado, caiu lá de cima, não morreu por milagre!”  Dizemos coisas assim o tempo todo, mas deve ser um erro. O milagre não é o improvável, é o impossível de acontecer. Milagre seria o tio sair voando e ir parar na Guatemala. 
 
Tentar entender o que é um milagre equivale, talvez, a tentar adivinhar o segredo de um cofre cuja porta está aberta. Deve existir para aquilo uma explicação visível, óbvia, perfeitamente aceitável; a gente é que não está enxergando. 
 
O milagre não é que a lagarta se transforme em borboleta, é que ela não vire lagarta de novo na manhã seguinte. Coisas que nos parecem espantosas ocorrem o tempo todo na Natureza. Seriam milagrosas se acontecessem apenas uma vez. Claro que para quem tem uma visão poética da realidade, tudo é espantoso: o sol e a chuva, o dia e a noite, a flora e a fauna, a cultura e a civilização. Dizia Guimarães Rosa: “A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio.” (“Fatalidade”, em Primeiras Estórias). 


(Manuel Bandeira)


E dizia com ceticismo o fatigado Manuel Bandeira (“Preparação Para a Morte”, em Estrela da Tarde):
 
A vida é um milagre.
Cada flor,
com sua forma, sua cor, seu aroma,
cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
com sua plumagem, seu voo, seu canto,
cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
o espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
o tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
 
Uma interpretação recente e assustadora do milagre é a noveleta “Hell Is The Absence Of God” (2001) de Ted Chiang, incluída em sua coletânea Histórias da Sua Vida e Outros Contos (Ed. Intrínseca; trad. Edmundo Barreiros). Nela, a Divindade se manifesta no mundo material através da visitação dos anjos, um fenômeno sempre inesperado e assustador. A vinda dos anjos produz verdadeiros cataclismos, explosões, ondas de choque, ruptura do espaço físico; e resulta em efeitos aleatórios, desde a morte ou mutilação de umas pessoas até a ascensão imediata de outras rumo ao paraíso. 
 
No mundo imaginado por Chiang, vale mais do que nunca o lema latino “credo quia absurdum”, “acredito porque é absurdo” – porque se não fosse absurdo não seria necessária a fé, bastaria o bom senso comum. E evoca também o verso famoso de Rainer Maria Rilke nas Elegias de Duino: “Todo anjo é terrível”.