domingo, 24 de janeiro de 2021

4667) Primeiras Estórias: "Pirlimpsiquice" (24.1.2021)




 
É um dos melhores contos que já li sobre teatro. E sobre a arte do improviso.
 
Dentro do livro Primeiras Estórias (1962) de Guimarães Rosa, é uma das histórias de ambientação mais chegada ao urbano, à cidade. Mais do que às fazendas, sítios e pequenos vilarejos onde o autor costuma ambientar seus enredos.
 
Tudo ocorre dentro de um colégio interno que tem algo do Ateneu (1888) de Raul Pompéia, aqueles alunos buliçosos e em permanente refrega, os diretores pomposos, cheios de retórica retumbante. E é o avesso do Ateneu, porque ao fim e ao cabo o conto é alegre, divertido, o autor costura enredos entrecruzados de conflitos, engenhosidades, trapalhadas.
 
Mediante uma efeméride qualquer, o colégio resolve encenar uma peça de teatro, Os Filhos do Doutor Famoso, e para isso convoca onze ou doze alunos sob a batuta do Dr. Perdigão (“lente de corografia e história-pátria”). Começam os ensaios! 
 
Pequenos solavancos de início: Zé Boné, gozador compulsivo, precisa ser posto nos eixos; Ataualpa e Darcy, que farão papéis de pai e filho, estavam de-mal, mas selam as pazes trocando selos estrangeiros para as respectivas coleções.
 
Combinam todos que o enredo da peça deve ser mantido em segredo absoluto, sem vazar informação, até a estréia. E todos desconfiam da capacidade do Zé Boné manter o trato, ele o irrequieto, “o basbaque”:
 
Sem fazer conta de companhia ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, e beijava afinal – figurado a um tempo de mocinho, moça, bandidos e xerife.
 
Zé Boné é o teatro em estado puro, coringal, brechtiano, mas como se trata de um colégio do tempo do pincenez, dão-lhe um papel minúsculo de “policial”, com poucas falas. E o narrador da história também se contenta com o papel de “ponto” – aquele assistente que fica escondido, “soprando” as falas que os atores venham a esquecer no calor da refrega.


(Brincante, de Antonio Nóbrega e Walter Carvalho)


Surge um perigo: dois alunos não escalados para a peça, o Tãozão e o Mão-na-Lata, formam oposição e ameaçam descobrir o segredo. O grupo confabula e resolve inventar uma história falsa, alternativa, que seria vazada aos poucos, protegendo assim a história original. E começam a sugerir cenas imaginárias:
 
E o Tãozão e o Mão-na-Lata no assunto do teatro nem tocavam, fingindo decerto não dar a tanta importância. Mas, a outra estória, por nós tramada, prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares-em-extraordinários episódios, que um ou outro vinha e propunha: o “fuzilado”, o “trem de duelo”, a “máscara”: “fuça de cachorro”, e, principalmente, o “estouro da bomba”. (...)  Já, entre nós, era a “nossa estória”, que, às vezes, chegávamos a preferir à outra, a “estória de verdade”, do drama.
 
É um mecanismo interessante. Por cima da Obra oficial cria-se, por emergência eventual, uma Contra-obra menos elevada, mas emocionalmente mais próxima dos que a executam. Como aqueles músicos de Sinfônica que no sábado se reúnem num bar para tocar jazz. (O lema do Dr. Perdigão é: “Lembrem-se: circunspecção e majestade!”)
 
Digressão: Conta-se que Garcia Márquez, quando escrevia Cem Anos de Solidão, trabalhava de dia, e de noite ia beber com seu amigo Álvaro Mutis. Comentava episódios do romance em preparo, e pedia dicas sobre tal personagem, tal cena, etc. Quando o livro foi publicado, Mutis descobriu que era tudo mentira: para esconder o livro de verdade, Márquez improvisava toda noite sua “outra história”, o que o ajudava a descontrair.
 
Eis senão quando, de tanta curiosidade que borbotava em volta dos atores-conspiradores, começa a circular o boato: a história vazou! 
 
De fato, circulava outra versão, completa, e por sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa, engraçado, de muita inventiva e lábia, que afirmava, pés juntos, estar dono da verdade.
 
Brota portanto uma terceira estória da peça, e os atores aferram-se à sua verdade original:
 
Por ora, também, tínhamos de combater essa estória do Gamboa, que nos deixava humilhados. Repetíamos então, sem cessar, a nossa estória, com forte cunho de sinceridade.
 
O narrador vê todos os colegas com o texto na ponta da língua e se aperreia: então não vão precisar do ponto?!  E na véspera da estréia surge uma ameaça inesperada:
 
Nisso, porém, sobreveio-nos o trom de Júpiter. O padre Diretor assistira ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via a quem. Sem realces, disse, que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta...

 
E os quase-estreantes vão dormir com um barulho desse. E na manhã do dia fatal, outro terremoto: a família do Ataualpa manda buscá-lo urgente para ver o pai moribundo, e só quem pode tomar seu lugar na peça sou eu! O narrador! O único que sabe todas as falas de cor, por ser “o ponto”!
 
Platéia cheia a mais não caber, zum-zum-zum, calor, luzes que se reduzem, cortinas que se abrem. E o narrador constata, só ali, de frente para “o povaréu de cabeças”, que a abertura mesmo da peça era um poema religioso e cívico que seria recitado pelo personagem do Ataualpa, mas esse poema só o Ataualpa sabia! 
 
Dá nele o famoso “branco”, nêmesis dos atores desde a Grécia. Sem falar, bloqueado, o narrador vê a risadaria geral do povo diante da peça que não começa, os gestos enérgicos dos professores cobrando-lhe ação! E ele não sabe o poema de abertura! E aí começa a vaia.
 
Com a vaia estrondando no teatro inteiro, acontece então a mais imprevisível das respostas. Zé Boné pula na frente! 
 
A vaia parou, total.
Zé Boné representava – de rijo e bem, certo, a fio, atilado – para toda a admiração. Ele desempenhava um importante papel, o qual a gente não sabia qual. Mas, não se podia romper em riso. Em verdade. Ele recitava com muita existência. De repente se viu: em parte, o que ele representava, era da estória do Gamboa! Ressoaram as muitas palmas.
 
E desse ponto em diante a estória se encaminha para o desfecho lúdico e festivo. Há uma lição de estética e retórica embutida no episódio. Parece bastante clara: de nada adianta ter uma história articulada, circunspecta, perfeita, decorada na ponta da língua, se lhe falta (como o padre Diretor percebera) “ataque de vida válida”.
 
Essa “vida” é quem salva o espetáculo depois do branco inicial. Zé Boné, vendo a necessidade de se fazer alguma coisa, faz a primeira que lhe vem à cabeça, o que às vezes é mesmo a melhor solução. Com isso, ele zera o script e a peça começa da estaca zero, podendo contar apenas com a memória do elenco a respeito das três histórias sabidas por todos: a peça original, a peça-falsa de despiste, e a peça do Gamboa.



E a noite de glória se transforma na apoteose do Repente, do Improviso:
 
Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito – tudo tão bem – sem sair do tom. Sei, de mais tarde, me dizerem que tudo tomava o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais.
 
“Pirlimpsiquice” é o nome que Rosa dá a esse fenômeno que tem um pouco do pó mágico de pirlimpimpim (Rosa era um admirador de Monteiro Lobato) e dos fenômenos psíquicos pelos quais ele tanto se interessava.
 
Na tradução norte-americana de Barbara Shelby, o próprio Rosa sugeriu traduzir o título por “Hocus Psychocus”, a mesma brincadeira em cima da expressão “hocus pocus”, latim macarrônico do século 17 usado pelos mágicos, uma espécie de “abracadabra”.
 
O conto é uma pequena Teoria do Improviso, com um exemplo cabal traçado e cumprido de A a Z. Uma peça inteira, decorada na ponta da língua, precisa ser reinventada no gume do instante, por causa de imprevistos. O que salva o elenco?
 
Primeiro, os ensaios, que rolavam há semanas. Mesmo que o texto recriado na hora da apresentação fosse uma mixórdia das três narrativas, o fato de que todo mundo as conhecia, os eventos, personagens, situações, numerosas falas, os dispensava de criar. O improviso era acima de tudo recombinatório, ficando a invenção de falas inéditas apenas para suprir as lacunas.
 
Segundo, a pressão do público. Sem essa pressão ninguém cria. Se fosse um ensaio, tinham parado para tomar água e não recomeçariam nunca. O fato de agora ser tudo pra valer obrigou a acontecer alguma coisa.
 
Terceiro, a coragem de mergulhar no desconhecido, estimulada talvez pelo fato de que os atores eram todos garotos, nenhum deles tinha uma reputação a defender, um nome a zelar.
 
E então... Pula-se no abismo. Veja-se como os verbos “pular”, “saltar” e equivalentes são usados pelo autor para indicar o gesto decisivo do “agora-vai”.
 
Na hora em que a vaia estronda e é preciso fazer alguma coisa...
 
Zé Boné pulou para diante, Zé Boné pulou de lado. Mas não era de faroeste, nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a representar!
 
Note-se que era o mais estouvado do grupo, o menos confiável como ator, porque o mais livre; e a quem tinham dado papel de mero figurante quase sem falas.
 
Na hora em que o narrador, no palco, percebe que precisa terminar a peça de algum modo...
 
Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.
 
É o fecho triunfal da peça improvisada, sucesso absoluto. O que não impede de no dia seguinte, no recreio, o Narrador ser abordado pelo Gamboa, que se gaba: “Viu como era que a minha estória também era a de verdade?”  E ele fecha o conto:
 
Pulou-se. Ferramos fera briga.
 
Pular é o gesto sem-volta do ato criativo. Subir no palco para improvisar é como entrar numa briga, onde se sabe o que precisa ser feito e como, mas cada decisão tem que ser ser tomada no pirlimpimpim do milissegundo.

 


(mamulengueiro Chico Simões -- foto IPHAN)