quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

4779) A tradução e as cascas de banana (30.12.2021)



Ri bastante agora de tarde com uma postagem de Carlos Alberto Mattos, no Facebook. Para quem não conhece, Carlinhos é um dos grandes críticos de cinema neste país. Por paixão, profissão e determinismo histórico ele é obrigado a ver centenas, quiçá milhares, de filmes por ano. 

Não é fácil ser crítico. Bom é ser cinéfilo: o sujeito que só vê o que gosta, ou o que lhe desperta a curiosidade. O crítico de cinema é como um psiquiatra: é obrigado a examinar o que se passa nas cabeças alheias, e isso nem sempre é agradável de ver.
 
A obrigação de ver tanta coisa nos leva aos pântanos dos filmes dublados ou legendados. O trabalho de produzir legendas/dublagem de filmes é um dos territórios mais atoladiços desta profissão, e as chances de sobrevivência são menores  do que as de quem cruza a pé o Raso da Catarina.
 
Eis a queixa de Carlos:
 
Equívocos costumeiros de tradução que me irritam profundamente na legendagem de filmes:
- "Last night" por "Noite passada" em vez de "Ontem à noite"
- "Just do it" por "Apenas faça" em vez de "Faça, e pronto"
- "At the end of the day" por "No fim do dia" em vez de "No fim das contas"
- “By the book" por "Pelo livro" em vez de "Segundo as regras" ou "Como manda o figurino".
 
Ri bastante, ri com gosto. Foi a primeira gargalhada do dia, e talvez a última do ano. E o fiz por uma razão muito simples: a de que já cometi todos os erros acima, ao traduzir.  Provavelmente ainda os cometerei de novo, porque se a experiência dos erros passados ensinasse alguma coisa a um ser humano nós já estaríamos vivendo em alguma pós-Utopia.
 
É preciso fazer uma ressalva importante, para as pessoas que não traduzem. Tradução de filmes (para legendagem ou dublagem) é um terror, um sufoco, um serviço onde geralmente o profissional recebe uma maçaroca de frases em inglês, impressas em papel, e tem que vertê-las para o português sem ver o filme ou sequer escutar os diálogos que está traduzindo. E naquela base do: “Olha, são só 30 páginas, queremos isso amanhã de tarde, sem falta.”
 
Qual o problema com os exemplos de Carlos? Para mim, tudo reside no fato de que todas essas formas que ele critica (com razão), parecem corretas, soam corretas, simplesmente porque estão coladas, obedientemente, ao sentido das palavras.
 
Entra aqui o meu Primeiro Postulado de Tradução, que reza: “A gente não traduz palavras, traduz frases”.
 
(Algum espertinho vai querer aperfeiçoar isto estendendo o conceito para “parágrafo”, etc.  Fique à vontade, ou, como se diz na tevê, seja meu convidado.)
 
Existem frases-prontas em inglês nas quais a gente deve ignorar as palavras, porque temos equivalentes úteis em português. É o caso de “By the book” que pode ser traduzido por “Como manda o figurino”, e vice-versa.
 
Eu já traduzi “Just do it” por “apenas faça” (não sei onde, nem quando; apenas fiz). Parece fazer sentido, não é mesmo? A gente chega a esquecer que “just” é uma das palavras mais dispensáveis do inglês, um mero reforço, um expletivo, ou (como dizia John Lennon) uma palavra que a gente enfia no verso quando tem uma sílaba faltando. Mesmo quando necessária, é uma palavrinha arroz-de-festa. O “Faça, e pronto” sugerido por Carlos troca essa palavra-chuchu por um termo muito mais substancial, impositivo.
 
Sigo muitos tradutores nas redes sociais, e vou apanhando pelo caminho as cascas de idéias que eles jogam fora. Algum tempo atrás a tradutora Jana Bianchi, no Twitter, comentava que depois de ver a frase “What do you mean?!” cansativamente repetida desistiu de traduzir como “O que você quer dizer?!” e passou a usar “Como assim?!”.
 
Solução perfeita, porque plenamente coloquial (há alguns casos em que a outra seria melhor – um juiz interrogando uma testemunha no tribunal, p. ex.), plenamente “nossa”, e com o efeito extra de manter a sonoridade do original.
 
(Digressão: Eu posso cometer erros bobos, mas sempre que possível gosto de ficar próximo das sonoridades do texto em inglês – sonoridades vocálicas ou consonantais, etc. Quando consigo fazer minha frase traduzida rimar com o original, considero um pequeno triunfo. É o caso de “What do you mean?” e “Como assim?”. Necessário? Talvez não. Importante? Sim, com certeza. Na prosa de ficção principalmente, na prosa literária, há efeitos sinestésicos constantes, obtidos com os fonemas, com os padrões de ritmo das frases, as cadências marcadas pelas sílabas.)
 
E outra coisa. As palavras desencadeiam respostas diferentes, e o tradutor tem que adivinhar a resposta pretendida pelo autor em inglês, e tentar descobrir ou inventar um equivalente em nossa língua.
 
Um dos meus exemplos preferidos é uma frase que vi num filme legendado na TV. Madrugada, um escritório meio às escuras, dois ladrões arrombando um cofre. Ouve-se uma sirene aproximando-se à distância, a freada de um carro diante do prédio. Um ladrão exclama: “Christ! The cops are coming!” A legenda, aplicadamente, traduz: “Cristo! Os tiras estão vindo!”
 
Está certo? Está errado? Digamos que dá-pro-gasto. O importante (diria um autor) é que nossa intenção sobreviva.
 
Mas o tradutor poderia dizer, chegando mais perto do tom coloquial imposto pela cena: “Meu Deus, lá vem a polícia!”  Em português, “Meu Deus” é mais frequente como interjeição (de surpresa, susto, desagrado, etc.) do que “Cristo” ou “Jesus Cristo” (que entra nessa frase como Pilatos no “Credo”). E um tradutor mais cascudo ou mais irreverente poderia tentar traduzir como: “Agora fudeu, chegaram os hômi.”
 
Está certo? Está errado? Em tradução a gente não procura apenas o certo em detrimento do errado. Procura o que se “adéqüa” mais, o que se encaixa melhor, o que dá um recado instantâneo e vai embora, o que reflete implicitamente o meio social do personagem falante e do contexto em que a frase é dita...
 
Traduzir não é transpor, é refazer. A sorte é que não se refaz partindo do zero.