quarta-feira, 12 de maio de 2010

2035) Anotações para um conto (16.9.2009)




Ali está a Casa Grande, ainda de pé depois de século e meio, habitada por quatro sobreviventes da família dos Severos, todos com mais de sessenta anos. Mantêm a antiga pose de senhores de terras e de escravos, mantêm o orgulho do sobrenome, que se ramifica por todo o Estado, mas venderam tudo o mais que tinham. Daquela colina onde a casa está postada, todos os horizontes já se erguem em terra alheia. Ficaram apenas com este pequenino feudo de alguns quilômetros em torno da colina; e com o vale onde se estende o Brejo.

Pronto. Eis o Brejo. Encalhado entre dois morrotes cobertos de matagal e a margem do Rio das Cobras. Aqui, o solo é empapado, turfoso, enegrecido por uma lama que brota lá de baixo. É um local que parece atrair e sorver reses extraviadas, meninos imprudentes. Aqui e ali se vêem cruzes toscas de galhos, deixadas por famílias que seguiram até a borda daquele declive as pegadas de alguém que não voltou. Desafetos dos antigos senhores da terra eram trazidos até ali, com os pulsos atados aos tornozelos, e atirados do alto de um barranco. Perto dali, o rio corre, rumoroso, rápido, por entre pedras pontiagudas.

Dando a volta a um dos morros, estão as ruínas enegrecidas da casa onde uma família inteira ardeu numa noite remota. Era um dos filhos do Severo que reinava naquela época. Morava ali, a uma cavalgada curta da casa do pai, com quem entrou em questão por causa de escrituras e posses. Era o que tinha herdado o temperamento raivoso do velho. Num almoço onde explodiu um bate-boca, foi esbofeteado pelo pai e disparou dois tiros no seu peito. Fugiu e refugiou-se em casa. O velho não morreu, e da cama mesmo deu a ordem. Os capangas foram lá de tochas em punho. Restam apenas as pedras queimadas; da família não ficou o que enterrar.

Mais adiante, a Curvinha. Ganhou esse nome por ser um desvio semicircular da estrada retilínea que leva ao vilarejo, desvio criado para deixar intacta a sepultura de Cimério Braz. Tendo declarado guerra desigual ao poderoso clã, Cimério foi desfeiteado em público por Chico Severo, o patriarca, em cujo rosto cuspiu de imediato, jurando que os Severos só voltariam a cruzar a estrada que atravessava suas terras se passassem por cima do seu cadáver. No dia seguinte, seis jagunços ali o sangraram e enterraram, no meio da estrada, para que sua jura se cumprisse. Mas o povo, em respeito ao morto, preferiu arrodear, e sua sepultura hoje vive coberta de mato intocado, porque depois nem mesmo os Severos tiveram de coragem de pisar em cima dela.

Seguindo adiante, entra-se num cerrado brabo de terra pedregosa, galhos ressequidos e cinzentos. A certa altura, erguem-se lajedos escuros e rotundos. Rodeando o maior deles, o visitante encontra uma fenda na rocha de onde flui um fio de areia finíssima, a mesma areia muito branca que forra as centenas de metros em torno. Não se sabe há quantos anos flui aquela areia, mas é voz corrente que ela um dia cobrirá o mundo.






2034) Censura e pedofilia (15.9.2009)



(desenho de Mike Diana)

A Censura da ditadura militar criou, na minha geração, a idéia meio difusa de que Censura é coisa do diabo, que toda censura é coisa ruim, é um valor negativo absoluto. Eu vario de opinião. Hoje, por exemplo, ando meio a favor de Censura sobre obras que divulguem o Nazismo, façam propaganda do Nazismo, incitem ao ódio racial. Sou a favor da existência da censura em casos especiais. Posso até vir a mudar de opinião, mas em princípio acho que esse pessoal tem que ser reprimido.

O escritor Neil Gaiman divulgou há algum tempo um documento contra a Censura que foi exercida contra o quadrinhista Mike Diana, por causa de sua HQ “Boiled Angels”. Diana foi acusado de pedofilia, e, segundo Gaiman, foi condenado a três anos de prisão (com recurso suspensivo), multa de 3 mil dólares, ficou proibido de permanecer no mesmo recinto que qualquer pessoa com menos de dezoito anos, teve que prestar mil horas de serviços comunitários, e foi proibido de desenhar temas obscenos. Além disso, a polícia local recebeu autorização para fazer buscas sem aviso prévio em sua casa, para verificar se ele estava produzindo material pedófilo. Foi neste ponto que Neil Gaiman (ele próprio afirma) decidiu que “assim também é demais também”. E fez um protesto público no seu blog.

Diz Neil Gaiman: “Se eu gosto ou não do que Mike Diana desenha é irrelevante. Mas, por que vale a pena defendê-lo? Porque a liberdade de escrever, de ler, de possuir material que vale a pena defender implica em ter que defender coisas que a gente não gosta e chega a achar desagradáveis, porque as leis são instrumentos sem sutileza que não distinguem entre o que eu gosto e o que não gosto, porque os juízes são humanos e têm seus preconceitos como qualquer humanos, além de estarem sempre disputando reeleições, e porque o que uma pessoa chama de obscenidade outra chama de arte”.

Note-se que, pelo que foi divulgado, o desenhista não seduziu menores nem violentou crianças, ele apenas escreveu e desenhou uma história. Vi alguns quadrinhos de Mike Diana na Internet e achei de mau gosto, mas, tirando o sexo explícito (gente nua, gente transando, etc.), não é nada mais agressivo do que se vê nos quadrinhos e até em algumas coisas da TV, como “South Park”. Comparado a muitos cidadãos respeitáveis (médicos, políticos, etc.), que um belo dia são descobertos violentando ou seduzindo crianças, o que Mike Diana fez foi uma espécie de exorcismo público dos seus próprios fantasmas. Parece que quando o cara tem uma “tendência” e pode se expressar publicamente sobre ela, isso já lhe basta, porque a “tendência” é na verdade uma fantasia puramente mental, que pode ser satisfeita por meios puramente mentais como a criação artística, sem precisar chegar às “vias de fato”. Quando o cara não pode confessar que gosta daquilo, ele reprime, esconde, sufoca, mas a coisa é muito forte, cresce, vira um Monstro, enquanto o Médico continua tocando sua vida de cidadão acima de qualquer suspeita.

2033) Doc Sportello, detetive (13.9.2009)



Thomas Pynchon é uma espécie de desconstrutor de gêneros literários. O romance de guerra em V, o thriller-de-teoria-da-conspiração em The Crying of Lot 49, o romance hippie em Vineland, o romance histórico-científico em Mason & Dixon e assim por diante. Os gêneros servem a Pynchon como mero pretexto para derramar sua cachoeira de discurso único e inconfundível. O livro mais recente de Pynchon, Inherent Vice, é um romance policial “noir” tendo como protagonista Doc Sportello, um detetive californiano que é uma espécie de Philip Marlowe continuamente sob efeito de maconha. Desses modo, o livro, ambientado nos anos 1970, pode ser por um lado uma homenagem aos clássicos policiais de Raymond Chandler, e por outro uma leitura pynchoniana dos romances-de-geração do pessoal que viveu a época das drogas, como certos livros Tom Robbins, Richard Brautigan, William Burroughs, Philip K. Dick, etc.

Walter Kirn, escrevendo sobre o livro, diz: “A grande conclusão das investigações não-lineares de Doc, a revelação na qual ele tropeça a despeito de si mesmo, é que ele e seus amigos amantes da liberdade (os detetives particulares e os hippies que, percebemos por fim, assemelham-se no que têm de marginais em busca da verdade) foram encurralados pelos caretas, seus inimigos naturais, e passarão a viver monitorados com seu próprio consentimento, para preservar a segurança em que ostensivamente vivem”. Detetives e hippies doidões, unindo-se para combater o Sistema, lembram de imediato a cisão mental do protagonista de O Homem Duplo (“A Scanner Darkly”) de Philip K. Dick, uma das obras mais incômodas do autor.

Neste livro, um policial passa a vida vigiando a casa onde um sujeito costuma receber seus amigos para tomar drogas; e faz relatórios constantes sobre o que se passa na casa. A certa altura do livro, depois de acompanharmos tanto o drogado quanto o policial, percebemos que os dois são a mesma pessoa. A escravidão às drogas e a obediência à polícia dividiram a tal ponto sua personalidade que ele vive, sem o saber, uma vida dupla. Investiga a si mesmo, denuncia a si mesmo. O filme O Homem Duplo (2006) de Richard Linklater é uma boa adaptação (misturando atores e desenho animado) dessa narrativa paranóica.

Dick (nascido em 1928) e Pynchon (nascido em 1937) viveram como adultos a última época de ouro das drogas nos EUA, os anos 1960-70. O livro de Dick, que tecnicamente é de ficção científica, é dedicado, no final, a uma longa lista de amigos que, na vida real, foram destruídos pelas drogas. Pynchon, ainda vivo e em plena atividade, usa os temas do romance de detetive para percorrer em retrospecto (quatro décadas depois) o território minado de uma época em que as pessoas tomavam drogas por idealismo romântico ou por necessidade de uma experiência espiritual. É o título mais recente na estante das obras em que a busca do Sonho Americano se transformou na Bad Trip terminal que ainda assola a América.

2032) O “flâneur” de Baudelaire (12.9.2009)



O “flâneur”, segundo Baudelaire, é o cara que passeia sem compromisso e sem pressa pela grande cidade, registra tudo que vê, interessa-se por tudo que cruza seu caminho, entra em ruas desconhecidas, espia a vida alheia, envolve-se de maneira indireta com o que acontece à sua volta. Já foi definido como o primeiro grande personagem moderno e urbano, típico das nossas grandes cidades. Apesar de ser sido “fotografado” por um poeta, é um personagem do mundo do Romance, da narrativa em prosa em que ação, descrição, diálogo e digressão autoral se fundiram para criar o grande gênero literário urbano na segunda metade do século 19.

Há precedentes, e pensando em Baudelaire não há como não pensar em Edgar Allan Poe e seu conto-crônica “O Homem da Multidão”, a história de um velho misterioso que passa a madrugada caminhando a esmo pelo centro de Londres, abandonando um bairro mal o movimento começa a rarear, e indo às pressas para áreas da cidade em que, pela presença de cafés, restaurantes, etc., o vai-e-vem de pessoas nunca cessa. O homem da multidão é o primeiro mutante urbano, e carrega dentro de si (diz Poe) um crime não confessado, um segredo que não se pode revelar. Personagens misteriosos com este perfil estão no centro dos grandes romances de Balzac, Flaubert, Charles Dickens, Stendhal; e também nos folhetins popularescos (mas que não servem menos como radiografias da sociedade) de Eugene Sue e Ponson du Terrail. Na obra de escritores como Conan Doyle, Arthur Machen, G. K. Chesterton, Robert Louis Stevenson e outros a arte de caminhar pelas ruas à noite em busca de aventuras transformou-se num gênero literário que a crítica nunca formalizou, distribuindo essas obras por gêneros já existentes como “novela policial”, “romance de aventuras”, “histórias de terror” e assim por diante.

O “flâneur” é também o escritor-personagem, ou o personagem-escritor. Em How Fiction Works James Wood diz que este personagem baudelairiano vem do Frédéric Moreau, de Flaubert em Educação Sentimental, e prefigura o narrador dos Cadernos de Malte Laurids Brigge de Rilke. Diz ele: “Esse personagem é essencialmente um dublê do autor, é sua sentinela avançada: ele passeia indefeso, inundado por impressões. Anda pelo mundo como a pomba enviada por Noé, para trazer de volta seu relatório. A ascensão desse personagem está ligada à ascensão do urbanismo, ao fato de que esse gigantescos conglomerados de seres humanos despejam sobre o escritor, ou sobre seu preposto, enormes, espantosas quantidades de detalhes”. Wood associa esse personagem (que é “ao mesmo tempo uma espécie de escritor, sem ser escritor”) ao estilo moderno de narrar, o estilo livre indireto, em que autor e personagens observam juntos, reportam juntos, descrevem juntos, a tal ponto que o leitor não distingue (nem precisa distinguir) a qual deles se deve esta ou aquela observação.