quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

4913) O nome de Quaderna (16.2.2023)


Escolher o nome de um personagem principal é muito trabalhoso. É como escolher o nome de um filho. No caso de um filho, os pais conversam entre si, trocam idéias, consultam a família e os amigos. O nome do personagem, em geral, é uma escolha solitária. 

 

E uma escolha mais definitiva. Já vi muitos filhos insatisfeitos que pedem para trocar de nome, depois da maioridade. E não me vem à memória nenhum caso de personagem cujo nome o autor tenha resolvido trocar depois da estréia. (Há o famoso caso do personagem de Jorge Luís Borges cujo nome foi trocado na versão inglesa, mas aí são arteirices do tradutor.) 

 

Reza a lenda que Sir Arthur Conan Doyle entreteve durante algum tempo a idéia de batizar seu personagem mais famoso como “Sherringford Holmes”. Felizmente não o fez. 




Quando Ariano Suassuna escreveu o Romance da Pedra do Reino (1971), tinha como plano inicial contar a história de Sinésio Garcia-Barreto, “O Alumioso”. Já pelo epíteto, Sinésio é sugerido como um personagem iluminado, especial, uma espécie de herói de romance de cavalaria (como Percival, ou como Galahad), “sem medo e sem mácula”. 

 

O nome “Sinésio” indica provavelmente a sua origem de predestinado (a sua “sina”), de alguém cuja missão foi profetizada e deve ser cumprida. (Além de ser um nome marcado na poesia popular pelo poeta Sinésio Pereira, de Olinda.) E esse nome faz um contraponto com o de seu irmão Arésio Garcia-Barretto – o brutal e belicoso Arésio, cujo nome Ariano Suassuna admite ter sido inspirado por Ares, o deus da guerra. 


(Sinésio Pereira)


E Quaderna?

 

O Romance da Pedra do Reino foi escrito em ondas sucessivas, entre 1958 e 1970. Ariano explica que o livro não é uma autobiografia. 

 

É mais uma caricatura do meu mundo interior, isto é, todas as vivências aí estão. Tenho alguma coisa de padre desonesto, de poeta preguiçoso e cangaceiro frustrado.

(cit. em Narrativas e Narradores em A Pedra do Reino, Maria-Odilia Leal-McBride, ed. Peter Lang, 1989) 

 

Ele explica também que foi ficando meio difícil ter Sinésio como foco principal da narrativa e até como narrador. Foi quando transferiu esta segunda função a Quaderna que Ariano “engatou” a escrita e não parou mais. 

 

Claro. O herói sem defeitos é um símbolo imóvel. Ou pelo menos um símbolo meio manietado.  “Não pode isso, não pode aquilo...”  Como ele é puro e idealista, existe uma lista gigantesca de coisas que ele é proibido de fazer. 

 

Já o personagem picaresco desfruta de uma liberdade que o herói não tem. Com ele, tudo é possível, tudo pode acontecer, porque ele é humano, mercurial, escorregadio, pode ser leal num momento e desleal no outro, pode ser sincero e depois hipócrita, pode ser honesto e ao mesmo tempo desonesto. É essa ambiguidade, ou multiplicidade, que faz de Quaderna um herói tão tipicamente brasileiro, tão característico de um povo de moral negociável, que dá um jeitinho em tudo, desde que consiga o que quer. 



O período da escrita do romance coincide, curiosamente, com o período de preparação e escrita do livro de poemas Quaderna de João Cabral de Melo Neto, que na edição de sua Obra Completa pela Aguilar recebe a referência cronológica de “1956–1959”. 

 

No meu ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007), comentei as possíveis inspirações para o nome do livro de Cabral. Entre elas esta definição, do dicionário Lello

 

QUADERNA, s. f. (lat. quaternus). A face do dado que apresenta quatro pontos.  Heráld. Objecto composto de quatro peças em quadrado, de ordinário em forma de crescentes. Pl. Os quatro pontos de uma face dos dados.

QUADERNO, s. m. (Forma desusada de caderno).

(Lello Universal)

 

E esta citação do Romance da Pedra do Reino, quando o Dr. Pedro Gouveia confere a Samuel, Clemente e Quaderna seus títulos de nobreza, e lhes explica os correspondentes brasões heráldicos:

 

O escudo dos Quadernas é esquartelado.  No primeiro quartel, há, em campo de ouro, um veado negro vilenado, inscrito numa quaderna de quatro crescentes vermelhos. No segundo, em campo vermelho, cinco flores-de-lis de ouro, postas em santor, ou aspa, e assim os contrários.  O timbre, é um cavalo castanho, com asas, com as patas dianteiras levantadas e as traseiras pousadas, entre chamas de fogo!
(Romance d’A Pedra do Reino, Folheto 80)

 

Uma “quaderna”, em termos heráldicos, são quatro imagens de um “crescente”, simetricamente dispostas, como vemos na imagem abaixo, onde quatro crescentes rodeiam tanto a figura da Onça quanto a do Veado: 


Estas são fontes possíveis de inspiração para a escolha de um sobrenome tão importante, além de outras que desconhecemos. 

 

O lançamento recente do Caderno de Textos e Imagens (Nova Fronteira, 2021), organizado por Carlos Newton Júnior, trouxe um novo dado para esta pesquisa. O volume inclui a “Conclusão” escrita por Ariano para ajudar na adaptação do romance para a minissérie da Rede Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. 

 

Nessa conclusão, a ação é retomada após o tumultuado final da narrativa de Quaderna, no Romance da Pedra do Reino.  É o dia em que a cidade de Taperoá foi invadida pela “estranha cavalgada” que tinha à frente, num cavalo branco, o jovem Sinésio, tido como morto. Com o tiroteio que se estabelece na cidade, Quaderna e seus amigos se refugiam no “tabuleiro” onde fica o cemitério, e dali iniciam sua fuga. 

 

A certa altura, eles avistam à distância um acampamento cheio de cavaleiros, e com tendas que parecem as de um Circo. Quaderna se oferece para ir até lá e averiguar quem são essas pessoas.  Vai com a intenção de permanecer incógnito, para que ninguém saiba que ele é um dos fugitivos que estão sendo caçados pela polícia de Taperoá. 

 

Ele fica sabendo que se trata do grupo teatral “Olinélson”, dirigido por D. Olindina e “Seu” Nélson, atores errantes, artistas de estrada. Quaderna lhes propõe, então, que reúnam os dois grupos. 

 

Nélson olhou para mim, como se me avaliasse de acordo com os vários aspectos da questão. Depois falou:

– É uma proposta tentadora, mas que devo pesar juntamente com meus companheiros de Direção, a quem vou apresentá-lo. Mas para isso preciso saber seu nome. Como se chama?

– Antonio Quaresma, o Decifrador – respondi cautelosamente, pois ainda não me sentia inteiramente seguro.

(Caderno de Textos e Imagens, p. 233-234) 

 

Quando li esse trecho pela primeira vez, em 2006, duas associações de idéias vieram se impor, no mesmo instante. 


A primeira, o fato de que para Ariano Suassuna um dos personagens centrais da Literatura Brasileira, é o Policarpo Quaresma, do romance de Lima Barreto. Nacionalista radical e um pouco ingênuo, mas sincero e obstinado, Quaresma é chamado de doido e de quixotesco pelos vizinhos e pelos colegas de trabalho. São inúmeras as menções de simpatia de Ariano, em suas entrevistas e em aulas-espetáculo, a esse personagem que, contra todos os obstáculos, luta pelo que acredita ser a nação brasileira autêntica. 

 

Por outro lado, Quaresma o Decifrador, é um personagem de Fernando Pessoa em alguns contos policiais pouco conhecidos, mas várias vezes republicados. 

 

Há uma menção a ele nas Obras em Prosa da Nova Aguilar, mas uma edição brasileira trouxe este personagem mais para perto do nosso leitor: A Alma do Assassino (segundo o Dr. Quaresma), São Paulo, Editora Horizonte, 1988, com introdução de Luiz Roberto Benati. 




Comentei estes contos em minha publicação mais recente neste blog:

https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/02/4912-o-detetive-fernando-pessoa-1222023.html

 

O prefácio de Fernando Pessoa neste livro diz: “Fui verdadeiramente amigo de Quaresma”. Os detetives lidos da época de Pessoa tinham amigos que narravam suas aventuras: o Dupin de Edgar Allan Poe e o Lupin de Maurice Leblanc têm narradores anônimos, Sherlock Holmes tem Watson, Martin Hewitt (um dos detetives favoritos de Pessoa) tem o jornalista Brett. 

 

Voltando a Ariano Suassuna e Quaderna: o nome falso usado por este me parece prova suficiente de que Ariano, grande admirador de Fernando Pessoa, conhecia, mesmo superficialmente, essas aventuras detetivescas do Dr. Quaresma, e gostou do nome. Se influenciou na criação de “Quaderna” ou se só lhe surgiu depois, não importa. Suassuna, como Pessoa, era basicamente um poeta místico, e nenhum dos dois era imune à Sedução do Enigma.

 

Deve existir, portanto, um certo sopro de Fernando Pessoa na criação de Quaderna e de seu “romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalarias épico-sertanejas!”.