quinta-feira, 31 de outubro de 2019

4518) Carl Jung e Philip K. Dick (31.10.2019)




Durante uma fase crucial de sua vida, o psicólogo Carl G. Jung redigiu uma de suas obras mais intrigantes e menos conhecidas, onde ele próprio afirmou ter penetrado em regiões mentais desconhecidas e perigosas. Esse material só veio a ser publicado muitos anos depois de sua morte, sob o título de O Livro Vermelho (“The Red Book”).
A obra abarca “experiências imaginativas entre 1913 e 1916”, e os manuscritos são datados entre 1914-15 e 1917. Jung estava em plena maturidade, em torno dos 40 anos. Foi uma fase tensa de sua vida, seguindo-se ao rompimento de sua amizade com Sigmund Freud a partir de 1913, e logo em seguida o início da II Guerra Mundial.


(do "Red Book")

Jung afirma que nesse período teve uma série de visões e de alucinações controladas, em que ele se deparava com pessoas ou figuras arquetípicas, e travava longos diálogos que copiava depois em cadernos, chamados “The Black Books” pela sua encadernação preta.

Algum tempo depois, ele começou a passar a limpo esses textos para “The Red Book”, um volume de tamanho grande, encadernado em couro vermelho. Nessa páginas, de um papel especial, ele usava uma variedade de canetas, pincéis, e tintas, produzindo o equivalente aos manuscritos medievais com iluminuras. Jung tinha um talento apreciável para a caligrafia e a ilustração.


(do "Red Book")

O próprio Jung narra esse longo processo, com riqueza de detalhes e de exemplos, no seu livro autobiográfico Memórias, Sonhos e Reflexões, organizado por Aniela Jaffé, no capítulo “Confronto com o Inconsciente”.

Diz ele, a certa altura:

Foi no ano de 1913 que decidi tentar o passo decisivo – no dia 12 de dezembro. Sentado em meu escritório, considerei mais uma vez os temores que sentia, depois me abandonei à queda. O solo pareceu ceder a meus pés e fui como que precipitado numa profundidade obscura. Não pude evitar um sentimento de pânico. Mas, de repente, sem que ainda tivesse atingido uma grande profundidade, encontrei-me – com grande alívio – de pé, numa massa mole e viscosa. A escuridão era quase total; pouco a pouco meus olhos se habituaram a ela, que parecia um crepúsculo sombrio. Diante de mim estava a entrada de uma caverna obscura: um anão ali permanecia de pé. Parecia feito de couro, como se estivesse mumificado.
(Memórias, Sonhos, Reflexões, Nova Fronteira, 1978, trad. Dora Ferreira da Silva)

Conforme dizem Lance S. Owens e Stephan A. Hoeller, na Encyclopedia of Psychology and Religion, Jung percebeu que “sua atividade imaginativa focalizada podia evocar cenas visionárias autônomas, além de personagens e troca de diálogos”.


(do "Red Book")

De acordo com o Dr. Sonu Shamdasani, que supervisionou a edição recente de The Red Book, Jung empregou o processo de, evocando uma fantasia, plenamente desperto, passar a tomar parte nela, como se participasse de um drama. “Essas fantasias podem ser compreendidas como um tipo de pensamento dramatizado em forma de imagens.”

Me perdoem a informalidade, mas creio que o dr. Jung estava descobrindo um método de projeção mental que os ficcionistas em geral (romancistas, dramaturgos, roteiristas) põem em prática todo dia das 9 às 17, com pausa para o almoço. Para um cientista de um século atrás, todo cuidado era pouco ao contaminar uma atividade tão objetiva quanto a Ciência com suas fantasias subjetivas; mas em suma, era isto que Jung estava fazendo. Estava fazendo literatura.


(do "Red Book")

No extremo oposto disto (ou seja, quase se tocando) temos Philip K. Dick. Ele teve uma série de crises psicóticas entre fevereiro e março de 1974 (que em seus escritos ele chama de “2-3-74”) e dedicou os anos seguintes de sua vida a elaborar uma obra gigantesca a que chamou Exegesis, um texto com longas elucubrações religiosas e filosóficas, onde figuram inclusive diálogos com Deus.


(da "Exegesis")

Sobre a "Exegesis":
http://zebrapedia.psu.edu/#!/

Dick acreditava que estava de fato conversando com Deus? Não importa. Para um ficcionista profissional, era essa a forma mais espontânea e mais fluente de pensar. Ele estava praticando o que já fazia há trinta anos. Já o cientista Jung estava descobrindo um território novo, o território onde ele se sentia liberado, autorizado a inventar coisas que sabia que não existiam.

Jay Kinney, editor da revista Gnosis, de San Francisco, comenta a obra de P. K. Dick à luz das numerosas (alegadas) “revelações místicas” de figuras históricas que vão do renascentista John Dee à “besta do Apocalipse” Aleister Crowley e ao guru lisérgico Timothy Leary, antes de estabelecer um paralelo entre Jung e Dick.


(da "Exegesis")

Alguém pode torcer o nariz diante dessa comparação com o autor de Do Androids Dream of Electric Sheep?, mas o fato é que Dick era um sujeito de muita erudição, com vasta leitura de psicologia, filosofia e da cultura oriental, o que transparece o tempo inteiro em suas narrativas de FC sobre conspirações interplanetárias e universos paralelos.

Jung, psicólogo clínico, lidava o tempo inteiro com pessoas à beira da loucura, e tinha o dever profissional e pessoal de servir-lhes de guia, ou de farol, ou de qualquer outra metáfora para o papel de quem, conversando com uma pessoa transtornada, tenta dizer-lhe: “Continue, me explique o que está vendo, fique tranquilo, eu estou aqui”.


(do "Red Book")

Dick pertencia à contracultura californiana dos anos 1950-60, experimentou drogas até não poder mais (sua droga preferida eram os comprimidos farmacêuticos, em complexas combinações e enorme quantidade). Era ao mesmo tempo o doido que delira e o escritor que transforma o delírio em histórias de pulp fiction para pagar os boletos.

Jay Kinney comenta o caso famoso de um esquizofrênico, “Albert W.”, examinado (em The Exploration of the Inner World) pelo psicólogo Anton Boisen, e diz:

Em sua discussão de Albert W., Boisen nota o paralelo entre seu paciente e George Fox, o visionário fundador dos Quakers, e acaba concluindo que “não existe uma linha de demarcação entre as experiências religiosas válidas e as condições e fenômenos anormais que são, para o alienista, provas de insanidade.” Para Boisen, o que em última análise distingue a loucura do misticismo é a direção em que vai a vida do indivíduo afetado. Para o insano, a experiência resulta numa desintegração ainda mais acentuada; para o místico, ela conduz à unificação íntima e à cura.
(“Introdução”, In Pursuit of Valis: Selections from the Exegesis, Underwood-Miller, 1991, trad. BT)

A estes dois tipos, o Místico e o Louco, eu somaria um terceiro, o Escritor. Não todos os escritores, certamente, mas um tipo de escritor que produz numa espécie de “estado alterado de consciência”, que envolve visões, alucinações controladas, escutamento de vozes, convulsões emocionais intensas durante o ato da escrita.


(a HQ de Robert Crumb sobre as experiências de Dick)

Philip K. Dick conhecia bem a obra de Jung (a primeira tradução em inglês de Memórias... é de 1963). Além disso, tinha um profundo interesse por doenças mentais como modos alternativos de percepção da realidade, ou pelo menos da produção de uma interface possível entre o caos mental interno (de um psicótico, p. ex.) e o turbilhão de estímulos sensoriais fornecido pelo mundo externo.

Tanto Jung quanto Dick foram indivíduos corajosos que não hesitaram em abandonar a camisa-de-força da “sanidade mental” e cultivar uma loucura controlada que lhes serviu de energia criativa.

Jung escapou da loucura pela sua sólida formação científica e também (diz ele) porque o trabalho rotineiro e a vida harmoniosa em família lhe deram uma âncora, um fio de retorno à realidade mais concreta e mais consensual.

Dick provavelmente não escapou por inteiro (seus acessos de paranóia, seus casamentos desfeitos, suas brigas com os amigos atestam o tumulto pessoal em que sempre viveu), mas o ato da escrita o redimiu, e lhe deu um mínimo de controle sobre a ruptura da realidade que experimentou a partir de fevereiro e março de 1974 até sua morte em 1982.