Na adolescência eu era leitor cativo da revista “Seleções”, e uma das coisas que mais gostava era a “Seção de Livros”, onde apareciam romances condensados. Um livro de 300 páginas enxugado para cinquenta? Maravilha. Por ironia da sorte, muitos anos depois, no Rio, virei tradutor da editora “Reader´s Digest” e vim a traduzir vários desses livros, que o pessoal da editora chama brincando de “leite condensado”. Livros resumidos são uma coisa bem moderna, né? Se juntar isso com leitura dinâmica, aí é que se dana mesmo, o cara lê “Guerra e Paz” no tempo que dura o filme.
Aí eu li certa vez um artigo de Ray Bradbury reclamando de uma adaptação desse tipo que um livro dele sofreu. Bradbury, um grande contador de histórias e dono de um belo estilo, queixava-se da carnificina a que seu texto tinha sido submetido. Todos os adjetivos, todas as metáforas, todas as detalhadas descrições visuais, tudo isso tinha sido cortado impiedosamente. Tinham deixado só a história.
Um caso parecido ocorreu quando eu, como bom autodidata, estava estudando inglês com um livro aberto e um dicionário do lado. Era um volume de contos de Edgar Allan Poe daquela editora Longman, onde clássicos da literatura são recontados com um vocabulário de 2 mil palavras apenas, próprio para estudantes. Eu li e reli um conto, creio que era “O Poço e o Pêndulo”, e não conseguia me convencer que o texto tinha sido reduzido, porque eu já tinha lido a história mais de dez vezes, e estava tudo ali, cada detalhe, cada passagem.
Fui consultar o texto original e tive um susto. O texto tinha sido de fato passado numa peneira, só saindo do outro lado as 2 mil palavras do dicionário estudantil da Longman. O estilo de Poe (barroco, florido, cheio de exotismos, de palavras raras, citações em várias línguas, períodos interpolados) tinha sido moído, fervido, filtrado, e servido numa xicrinha. Mas... milagre dos milagres! A história estava toda ali, cada detalhe, cada peripécia, cada passagem.
A moral da história? Não sei. Acho que isso sugere que a experiência literária é sempre uma experiência múltipla. Assim como o cinema nos entra pelos olhos e pelos ouvidos, a literatura excita ao mesmo tempo duas áreas diferentes do cérebro: uma área sensível ao enredo, e outra área sensível ao estilo. Uma delas tem prazer em acompanhar uma história, em se identificar com os personagens, em supor o que vai acontecer em seguida, em conectar o que está acontecendo com o que aconteceu páginas atrás. E outra área da mente tem o prazer de saborear a palavra surpreendente, o borboletear das sonoridades, os ziguezagues da prosa, a visualização nítida de detalhes concretos, a rapidez e a verossimilhança dos diálogos... Os grandes autores trabalham nestes dois canais ao mesmo tempo. Só depois que nos acostumamos com o estilo de Guimarães Rosa, por exemplo, é que percebemos o quanto as histórias que ele conta são inusitadas e cheias de mistérios.
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