domingo, 29 de março de 2020

4564) Bob Dylan e "Murder Most Foul" (29.3.2020)




O vídeo, com a letra:

Bob Dylan acaba de lançar uma canção nova; não um álbum novo, um disco novo, apenas uma canção. Voltamos aos tempos dos anos 1950, quando as canções eram lançadas individualmente, em discos “compactos”, com a faixa importante no lado A e um complemento qualquer no lado B.

“Murder Most Foul” tem 17 minutos e tanto, e é 23 segundos mais longa do que a recordista anterior na obra de Dylan, “Highlands” (Time Out Of Mind, 1997). Não venham me dizer que esses “recordes” não são propositais.

A música inteira é um monólogo introspectivo de Dylan, enquanto dedilha o piano, e um violoncelo e alguma percussão fazem ornamentações discretas ao fundo. É uma canção política, tendo como tema o assassinato de John Kennedy em 1963. Mas não é uma canção política “de dedo em riste”, como “Hurricane”, que era uma canção vibrante, gritada, cuspida na cara das autoridades. É uma espécie de ajuste de contas de um cara consigo mesmo, catando cacos, juntando o que sobrou de sua casa depois de um incêndio.

“Murder Most Foul” é um poema recitado com fundo musical, nada mais do que isto, sem nenhuma pretensão a interpretação vocal, arranjo, estrutura. Não é uma coisa nova. Dylan já fazia isso em "If Dogs Run Free”, um improviso poético-pianístico,  em tom jazzístico, gravado em um só take no álbum New Morning (1970). Aquele mesmo álbum traz um recitativo mais solene, mais cadenciado: “Three Angels”, também uma canção não-cantada.


Talvez a melhor experiência de Dylan nessas canções recitadas seja “Brownsville Girl” ou “Danville Girl”, em algumas versões ao vivo (Knocked Out Loaded, 1986), uma parceria com Sam Shepard, autor da longuíssima letra que faz uma ponte com a canção de 2020, porque começa dizendo: “Eu estava tentando me lembrar de um filme que vi com Gregory Peck, onde um cara o mata a tiros pelas costas”.

Mas “Brownsville Girl” também não tem nada a ver com esta canção nova, afora isso, porque é uma história de amor misturada com road movie, tipo Coração Selvagem de David Lynch. É uma canção “pra fora”, vigorosa, cantada como se o cantor estivesse diante de dez mil pessoas.

Uma das coisas marcantes de “Murder Most Foul” é esse tom de voz “pra dentro”, onde o cantor parece estar sozinho num estúdio enorme, tendo os outros músicos a dez metros de distância. Eles tocam discretamente, na penumbra, para não atrapalhar o Autor, que passeia os dedos pelo piano enquanto seus olhos acompanham uma dúzia de folhas manuscritas espalhadas em volta.


O piano aqui é diferente do piano floreado e despudoradamente musical que Al Kooper faz em “If Dogs Run Free”. É um piano meio distraído. Nós usamos o verbo “cantar” para exprimir uma ação clara, firme e concentrada, de quem entoa uma canção; mas temos o verbo “cantarolar” que exprime uma maneira descontraída, distraída e casual de fazer a mesma coisa.

Proponho, então, que o verbo “tocar” (=um instrumento musical) tenha como contrapartida análoga o verbo “tocarolar”, a ação de quem toca mas toca sem querer impressionar, sem se preocupar muito com exatidão.

Na última vez que vi Dylan ao vivo (Rio Arena, março de 2008) ele mal pegava na guitarra: tocarolava o teclado, em pé, num órgãozinho menor do que o órgão d’”Os Incríveis”. Maldo eu que exige menos esforço do que a guitarra, em se tratando de um septuagenário.

“Murder Most Foul” é uma canção septuagenária neste sentido de monólogo íntimo de quem dá balanço em coisas mal resolvidas, como um Riobaldo Tatarana tentando explicar por que motivo sua vida aparentemente tão próspera foi edificada sobre um cemitério-indígena de equívocos. Ou de um Hamlet monologando sem parar (“murder most foul” é uma fala do Fantasma, na peça) sobre o assassinato do seu Rei.


A voz de Dylan, nesta gravação, está parcialmente intacta, se a compararmos com os resmungos ininteligíveis dos shows mais recentes. Ao divulgar a música no Twitter, ele avisou que se tratava de uma canção gravada algum tempo atrás (“a while back”). Os fãs (é pra isso que existem fãs) situam o timbre vocal dele nessa faixa na época da gravação do álbum Tempest, de 2012, seu último lançamento de canções inéditas.

O formato da letra é o couplet, um dos mais tradicionais da poesia inglesa, linhas longas (10 ou 12 sílabas, geralmente) rimando AA-BB-CC-DD-EE... Chamo a isso um formato “aberto”, que não se fecha numa estrofe, mas pode ser prolongado indefinidamente em poemas com qualquer número de linhas.

Dylan encaixa esses versos numa melodia que tem a estrutura genérica do tradicional blue-de-12-compassos, o que lhe permite fechar estrofes, lançando mão da melodia, não do formato da letra. Uma linha melódica que aqui e acolá lembra “Not Dark Yet” (Time Out of Mind, 1997) em seus versos curtos, “Where Are You Tonight” (Street-Legal, 1978) nos mais atropelados. E muitas outras canções, claro. É um "templeite" pessoal dele.

Not Dark Yet:
https://www.youtube.com/watch?v=7JBHyE18L3o

Where Are You Tonight:
Falar em número de sílabas nos versos de Bob Dylan é mera força de expressão, porque justamente um dos pontos fortes de sua arte é a desobediência consciente e proposital a limitações desse tipo. Mesmo quando nos versos iniciais de uma canção ele propõe e segue uma contagem fixa, frequentemente as estrofes seguintes o mostram aumentando ou diminuindo essa contagem ao sabor dos versos. Para alguns é um verdadeiro sacrilégio – para quem tem, por exemplo, a formação rígida do cordel e da cantoria nordestina, onde o número de sílabas sempre tem que bater.

Dylan é um especialista em pegar esses formatos rígidos e diluir sua estrutura puxando-os para o caos silábico da prosa. É a maneira de cantar dos “talkin’ blues”, os blues canto-falados que ele tanto ouviu na meninice e reproduziu em seus primeiros discos, em faixas como “Talkin’ New York”, “Talkin’ World War III Blues” etc.


O modo de cantar de Dylan pode ser ilustrado por uma historieta nordestina que só tem graça dita em voz alta, mas vou tentar reproduzir. É a história de um grupo de beatas que sai para uma novena, em romaria, e no trajeto têm que subir e depois descer umas ladeiras. Lá vão elas cantando na subida íngreme, prolongando as sílabas:

As viiiiirge todas proclaaaaaama...
Tua gulora e fermosuuuuuuura...

Chegam no topo da colina, e aí cantam enquanto descem apressadamente:

És a rainha do povo,
aprotetoradessapopulaçãodopovodeNossaSenhora
(chegam no fim da ladeira)
...da Raiz!

Essa, mal comparando, é uma das artimanhas de Dylan como cantor. Ele se propõe uma base fixa de sílabas/notas em cada verso, e depois canta o que bem entende, esticando as sílabas quando não poucas, atropelando-as quando são muitas, e sempre dando um jeito (não me pergunte como) de parecer que elas se encaixam nas notas musicais pressupostas.



“Murder Most Foul” tem todos esses elementos de oralidade: versos de qualquer tamanho, letra mais recitada do que cantada, uma sensação pervasiva de uma música que não ficou totalmente pronta mas que o autor está registrando para não esquecer depois o feeling inicial que a criou. E a desconfiança de que aquilo é apenas um trecho de uma música ainda maior, da qual se perdeu o começo, e também o fim.

Tematicamente, é mais uma das “Canções de Assassinato e Denúncia” em que Dylan sempre foi excelente, usando fatos reais para criar uma pequena parábola dos tempos modernos: “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, “Only a Pawn in their Game”, “Oxford Town”, “Ballad of Hollis Brown”, “Hurricane” etc.

Que ele tenha escolhido o catastrófico momento atual para lançá-la tem decerto algum significado. Dylan está no grupo de risco, tal como nós, seus marinheiros desde a primeira viagem. Pode ser um “parting shot”, uma forma de cair atirando. De mostrar que nem tudo foi dito ainda, e não o será jamais.










quinta-feira, 26 de março de 2020

4563) De Machado de Assis a Bertolt Brecht (26.3.2020)




Machado de Assis era um escritor capaz de condensar toda uma estética (se não uma ética inteira) numa única frase. Entre tantos exemplos, me vem de vez em quando à memória o comentário cruel de Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas (1881).

Brás Cubas está no Alto da Tijuca, visitando D. Eusébia, uma senhora amiga da família, e começa a encompridar olhos para a filha desta, Eugênia, menina de dezesseis anos que ele chama “a flor da moita”. Em meio à conversa ele descobre, com direito a uma gafe, que a menina é coxa de nascença. E me vem com esta reflexão sublime:

“Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”

Não sei se tem nome esta figura de estilo, mas em literatura, onde tudo é nome, ter nome é o de menos. Chamo a esse artifício “A Ordem dos Fatores”, para fechar o meu raciocínio dizendo: em literatura, a ordem dos fatores altera, sim, o produto. (E completo, com certa ousadia: “Esta é a razão de ser da própria literatura”).

A respeito desse drible tipicamente machadiano, Flora Sussekind (em Cinematógrafo das Letras, 1987) lembra um comentário de Roberto Schwarz sobre os narradores da segunda fase de romancista de Machado:

Isto é, o narrador que a todo momento está se desidentificando da posição que ocupava na frase anterior, no parágrafo anterior, no capítulo anterior ou no episódio anterior. (...) É uma espécie de desidentificação permanente.

(em Machado de Assis: Antologia e Estudos, Ática, 1982)

Podemos começar um enunciado com A e terminá-lo com B; se invertermos o processo, as consequências serão outras. O que era premissa torna-se conclusão, e vice-versa. E a primeira lição que lucramos é: o primeiro termo é a concessão que fazemos ao interlocutor, é o elemento para o qual contamos com sua concordância tácita, para abrir o diálogo. O segundo elemento é o trunfo que estalamos na mesa, encerrando o assunto. Todo raciocínio assim é uma pequena armadilha retórica.

Bertolt Brecht, velho prestidigitador de dialéticas, maneja isto como ninguém. Veja-se este poeminha curto, que traduzi via inglês (“Everything Changes”), e que consta dos seus Poemas Americanos 1941-1947:

TUDO MUDA

Tudo muda. Você pode começar
tudo, de novo, com seu último suspiro.
Mas o que aconteceu, está acontecido. E a água
que você misturou ao vinho não pode ser
trazida de volta.

O que aconteceu, está acontecido. A água
que você misturou ao vinho não pode ser
trazida de volta, mas
tudo muda. Você pode começar
tudo, de novo, com seu último suspiro.

Nas duas vezes, é a palavra “mas” o gonzo em torno do qual o poema gira e mostra seu reverso. Isso é assim, MAS isso também é assado. O poeta sugere duas possibilidades, ambas plausíveis ao nosso senso comum. A primeira delas é o dado frio, objetivo, que o mundo nos propõe: a segunda é a nossa resposta, a linha de ação que decidimos seguir. Qual das duas ordens é a sua?

Brecht repetiu este artifício machadiano em pelo menos mais um poema, “Uma Cama Para Passar a Noite”, que também traduzi do inglês (“A Bed For The Night”), dos Poemas dos Anos da Crise, 1929-1933:

UMA CAMA PARA PASSAR A NOITE

Ouvi dizer que em Nova York
na esquina da Rua 26 com a Broadway
há um homem que fica durante os meses do inverno
pedindo aos transeuntes que passam por ali
um lugar para os sem-teto dormirem.

Isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração;
mas
alguns homens vão ter uma cama onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia.

Não abaixe o livro quando ler isto, leitor.

Alguns homens vão ter onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia.
Mas
isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração.

A estrutura é mais longa e complexa, mas o processo é o mesmo. O poeta enuncia duas verdades. Uma de ordem local, pessoal, meramente episódica; a segunda, de ordem impessoal e coletiva, tendo a ver com a situação social considerada de forma abstrata. E depois as inverte.

Muita gente, sabendo que Brecht foi comunista, vai dizer que ele menosprezava o episódio pessoal (a cama para passar a noite) e se preocupava apenas com as grandes mudanças sociais (o fim da era da exploração). Ou seja: que a mentalidade do poeta está reproduzida na segunda ordenação dos termos.

Em favor desta hipótese, há o fato de que foi a esse ponto de vista que o poeta deu a honra de “fechar”, sua argumentação com essas três linhas indignadas, implacáveis.

MAS essa interpretação talvez esteja esquecendo que Brecht, antes e acima de ser comunista, era um dramaturgo, e que um dramaturgo não lida com verdades abstratas, e sim com ações concretas. Ninguém pode colocar num palco “as relações entre os homens”, mas pode colocar um homem dormindo na calçada, sob a neve.

Essas idas e vindas permanentes entre idéias abstratas e cenas concretas são a base e o fundamento da dramaturgia de idéias. Acho que foi o cineasta Alberto Cavalcanti quem disse uma vez: “Você pode escrever um livro sobre o sistema nacional dos correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta”. É o concreto, sem o qual não se chega ao abstrato – pelo menos nas artes da encenação.

E outra: Brecht não apenas lançava mão desse processo como o explicitava, mostrava, exibia despudoradamente ao escrever poemas desse tipo. Se isso, então aquilo. Se aquilo, então isso. Era parte do seu teatro, essa auto-denunciação, como um mágico-de-palco que fosse o “Mister M” de si mesmo e, no próprio momento do truque, explicasse à platéia o passo-a-passo do truque.

Como ele aconselhava aos seus atores: “Mostre que está mostrando”.


(London/New York: Methuen, 1987)








segunda-feira, 23 de março de 2020

4562) A quarentena do planeta Terra (23.3.2020)




Quarentenas? A ficção científica tem algumas, talvez até mais interessantes do que A Peste do grande Albert Camus.

Vou pegar um exemplo apenas, um romance de um dos meus escritores preferidos de FC hard, Greg Egan. Quarantine (1999) foi o seu primeiro romance, depois de vários contos surgidos nas principais revistas de FC. 

O enredo de Quarantine começa de maneira simples.

Nick Stavrianos é uma espécie de detetive particular, no ano de 2067, em Perth, na Austrália (a cidade onde vive o autor). Ser detetive nessa época é uma atividade interessante, porque o desenvolvimento da nanotecnologia criou implementos chamados de mods, que são implantados no cérebro e funcionam mais ou menos como o que hoje chamamos de apps – aplicativos que executam funções específicas.

Isso possibilita a Nick ativar, apenas pela vontade, qualquer um desses aplicativos, como por exemplo o “... CypherClerk (Neuro Comm, $ 5.999)” que atende chamadas telefônicas, projetando-as diretamente no cérebro. Combinado com o “... The Night Switchboard (Axon, $ 17.999)”, espécie de secretária eletrônica que atende durante o sono, ele nem sequer precisa “escutar” o que diz o interlocutor do outro lado: ele já acorda sabendo do que se trata.

E assim Nick desperta, na primeira página, para investigar o desaparecimento misterioso de Laura Andrews, trinta e dois anos, paciente de uma clínica de reabilitação. Laura nasceu com uma grave deficiência cerebral e tem a capacidade mental de uma criança de seis meses. A família a internou ali para ser cuidada, e ela viveu a vida inteira numa pequena cela, sendo alimentada, medicada, etc., como qualquer paciente semi-inválido, de família rica.

Só que Laura desapareceu dias atrás dessa cela hermeticamente fechada, vigiada 24 horas por câmeras e enfermeiros. Todo mundo está perplexo. E lá vai Nick Stavrianos, ajudado pelos seus mods, investigar o caso.


Um desses mods, curiosamente, é um aplicativo que produz no cérebro de Nick a sensação da presença de sua esposa Karen, que morreu tragicamente. Quando o mod está ativado, ele vê “Karen” ao seu lado, conversa com ela, consegue tocá-la. “Karen” se manifesta de modo autônomo, recorrendo ao banco-de-dados das lembranças dele, mas usando algoritmos próprios, de modo que na “companhia” dessa projeção mental ele se sente como se a mulher estivessse viva ao seu lado.

E a quarentena?

Bem, todo esse enredo iniciado acima ocorre no contexto de um fenômeno cosmológico espantoso, chamado A Bolha. No dia 15 de novembro de 2034 (portanto, trinta e três anos antes da ação do livro) o nosso sistema solar foi, em questão de minutos, envolvido por uma gigantesca bolha de escuridão, como uma esfera opaca, apagando todas as estrelas do céu. A Terra foi trancada numa quarentena cósmica. Por quê? Por quem?  Ninguém sabe.


Aconteceu e ficou por isso mesmo, com as previsíveis consequências: pânico, destruição, crise universal da ciência, proliferação desordenada de seitas místicas e de profetas do apocalipse. Durante vários anos, o caos. Depois, a poeira foi baixando. Todo mundo precisava comer, viver, trabalhar. A materialidade de vida cotidiana se impôs. E em última análise, o Sol, a Lua e todos os planetas continuavam se movendo como sempre – só as estrelas (todas as estrelas) tinham sumido. E Nick filosofa:

Quanto às estrelas... nunca tinham sido nossas, de modo que não as perdemos. Na verdade, perdemos somente a ilusão de que elas estavam próximas.

Uma das seitas religiosas mais atuantes nesse mundo futuro é a das Crianças do Abismo, formada apenas por pessoas nascidas após o aparecimento da Bolha. (Lembra um pouco o tema de Midnight Children, de Salman Rushdie, o romance sobre as crianças nascidas exatamente na virada do Dia da Independência da Índia.) A seita tem propósitos nebulosos, que não excluem o assassinato em massa.

Seguindo uma pista possível do desaparecimento de Laura (como é possível uma pessoa comum, tida inclusive como retardada mental, desaparecer de um quarto trancado e vigiado?), Nick vai parar em New Hong Kong, uma região da Austrália que hospedou a migração em massa de habitantes de Hong Kong, após uma violenta crise desta com a China, a partir de 2029.

E é lá que Nick está expandindo suas investigações, acompanhado por “Karen”, o cyberghost de sua mulher, quando eles param numa tenda num mercado ao ar livre. Uma moça está redigindo horóscopos por um preço módico. “Karen” sugere a Nick que encomende um. Ele ri e diz que nenhum deles dois acredita naquilo, e além do mais...

– Horóscopo, quando nem existem mais estrelas?!

 Ela insiste. Ele diz à moça:

– 10 de abril.

– Não é o meu horóscopo, idiota. O de Laura.

Ele pede o horóscopo para o dia 3 de agosto de 2035, dia do nascimento da mulher desaparecida. Lê as previsões, que são banais, e volta para o hotel. Mas aquilo não sai de sua cabeça. Ele sabe que “Karen” é apenas um algoritmo que mexe em suas lembranças inconscientes – e está querendo lhe dizer alguma coisa.

Ele lembra que, no prontuário médico de Laura, na clínica, ele soube que o nascimento dela foi levemente prematuro. Gestação de trinta e cinco ou trinta e oito semanas, mais ou menos. Portanto... O momento da concepção de Laura teria sido num período de uma semana em torno do dia 15 de novembro de 2034. O Dia da Bolha.

E ele pensa: "Bem, que importância tem para mim o fato de que Laura pode ter sido concebida no momento exato em que a Bolha cercou o Sistema Solar?" 

E pensa em seguida: “Para mim, não. Mas para a Seita das Crianças do Abismo, pode ter uma importância enorme”.




Acreditem: não estou dando spoiler nenhum. O resumo acima se refere às primeiras 50 páginas de Quarantine, que tem 280. Nick Stavrianos avança muito mais em suas investigações, por entre perseguições, fugas, sequestros, lavagens cerebrais, violências individuais e coletivas.

O segredo que envolve A Bolha e o desaparecimento de Laura tem a ver com o modo como a mente humana faz “colapsar” um conjunto de futuros possíveis num único presente concreto. O exemplo clássico disto é o famoso “Gato de Schrodinger” – o gato que pode estar vivo ou morto até o momento em que o cientista abre a caixa onde ele está trancado. A mente humana tem o poder de destruir universos no instante mesmo em que toma uma decisão, optando por apenas um deles.

Quarantine é uma história de aventuras, um thriller tecnológico e uma meditação cosmológica sobre os perigos da existência humana. E se a nossa espécie fosse um risco não apenas para o planeta Terra, mas para o Universo inteiro?

Greg Egan é um personagem meio low profile na FC. Já ganhou inúmeros prêmios, publicou cerca de 20 livros, eu acompanho sua carreira há mais de duas décadas, e nunca vi uma foto dele. Consta que mora em Perth (Austrália) e trabalha com informática.



Egan é um desses escritores obsessivos, que pegam uma idéia e a examinam por todos os lados, avaliam todas as consequências possíveis, as dúvidas, as objeções de alguém, respondem a essas objeções... e escrevem essa idéia num parágrafo de oito ou dez linhas, numa prosa clara e direta, condensando ali informações que dão o que pensar por uma hora inteira.

Já publiquei dois contos dele em minhas antologias, aqui no Brasil: “Mais perto” (“Closer”, trad. BT), em Contos Fantásticos de Amor e Sexo (Rio: Ímã Editorial, 2011) e “A Carícia” (“The Caress”, trad. Fábio Fernandes) em Detetives do Sobrenatural (Rio: Casa da Palavra, 2014).





Websaite sobre o livro:
http://www.gregegan.net/QUARANTINE/Quarantine.html










sexta-feira, 20 de março de 2020

4561) Vou mandar o clone (20.3.2020)



(Henry James)

Quando inventaram essa história de “clones” eu já sabia do conceito, que a ficção científica cultiva há muitos anos. Um sósia produzido em laboratório! Um irmão gêmeo artificial! E alguns amigos meus desenvolveram uma teoria. Pra que serve um clone? Diziam eles: “Pra ir ao trabalho, às reuniões, ao batente... enquanto eu fico em casa, dormindo até meio dia.”

Pode parecer uma fantasia de preguiçosos, e é, mas há um lado que não devemos subestimar: o fato de que muitos de nós desenvolvem um “clone psicológico” em si mesmos. São indivíduos tímidos, introvertidos, meio angustiados no que diz respeito à vida social, às interações. O que fazem? Criam um clone.

Infelizmente, como não se trata de ficção científica, o clone tem que habitar o mesmo corpo, de modo que o sujeito precisa, sim, levantar às 7:00, tomar banho sim, tomar café sim, pegar o metrô sim, estar na reunião de trabalho às 8:30, com a obrigação de ser simpático com todos e de ter idéias inteligentes.

Pense num suplício.


(Wyslawa Zsymborska)

Não sou só eu. Vejam o caso de Wyslawa Zsymborska, uma das maiores poetas do século, em cuja cabeça caiu uma bigorna de ouro chamada Prêmio Nobel de Literatura.

Numa matéria publicada na revista Piauí, ela afirma:


“Estou apavorada, por não saber se vou conseguir enfrentar a cerimônia; toda a minha disposição é diferente, contrária a esse tipo de contatos, e é claro que nem sempre poderei recusar. Queria ter uma sósia. A sósia seria uns vinte anos mais nova do que eu, iria posar para as fotos e teria uma aparência melhor do que a minha. A sósia viajaria, a sósia daria entrevistas, e eu ficaria escrevendo.”

É pedir demais? Não creio. Em ocasiões assim, algumas pessoas estariam felizes como pinto-no-lixo se fossem obrigadas a essa gincana de coluna social. Conheço uma dúzia de poetas que dariam o braço esquerdo e a perna direita pela chance de ganhar o prêmio, fazer o discurso, sentar no banquete, tirar a foto, rabiscar os autógrafos, estender-se nas entrevistas.

Nem todos, contudo.

O tema do “duplo”, do “Doppelgänger” é um dos mais antigos da literatura fantástica.



Henry James tem um conto fantástico, “The Private Life” (1892), em que ele contribui com sua variante para este tema antigo e necessário. Ele fala de um grupo de pessoas ricas que estão a passeio num hotel chique, nos Alpes. O Narrador explica que eles têm ali a chance rara de conviver alguns dias com duas personalidades extraordinárias: o dramaturgo Clare Vawdrey e o aristocrata Lord Millifont. Dois indivíduos fascinantes, adorados em todos os ambientes sociais londrinos, etc. e tal.

Aconselho a leitura do conto, que é brilhante e cheio de sutilezas, falando sobre alta sociedade, teatro, a profissão de escritor, o amor distante de um solteirão por uma mulher casada. O Narrador (cujo nome não é revelado, e em cuja pessoa é impossível não ver uma projeção de James – inteligente, travado, punctilioso, gentil) comenta que o dramaturgo Vawdrey é uma das pessoas mais brilhantes que ele conhece, um conversador notável, inteligente, encantador. Suas peças teatrais encantam a todos, principalmente uma atriz que está no grupo, Mrs. Adney, que vive a lhe pedir “um papel”.

O Narrador e a sra. Adney comentam também a personalidade de Lord Millifont, um desses senhores graves, considerados um pilar da sociedade: na sua presença, todos se comportam e se distribuem de acordo com a direção do seu olhar, sua autoridade franca e serena, seu carisma.

História vai, história vem, o Narrador e a sra. Adney fazem uma descoberta espantosa. O dramaturgo Vawdrey tem duas personalidades, duas projeções físicas. Enquanto um está no terraço conversando com o grupo e encantando a todos, outro (um “clone” idêntico) está no quarto do hotel, escrevendo.

Logo em seguida, fazem uma descoberta similar. Lord Millifont, aquele poço de autoridade e de carisma, simplesmente desaparece quando ninguém está olhando para ele. Ele é deixado a sós num local e minutos depois uma pessoa, chegando ali, não o vê em lugar algum, e o chama em voz alta; num segundo o Lord se materializa a metros de distância, paradão, distraído. Estava ali. Mas se ninguém o vê... ele some.

O tema de Henry James não é muito distante do conto clássico de Machado de Assis, “O Espelho” (1882). Henry James é uma espécie de Machado angloparlante: a literatura dos dois é muito parecida, em vários aspectos. “O Espelho” conta a história do alferes Jacobina, elogiado por toda a família, e cujo status depende dessa patente militar. Ele vem a descobrir que, sozinho na casa, não consegue se ver no espelho – a não ser que vista a farda. Nesse instante, deixa de ser invisível.


("O espelho", adaptação para quadrinhos)

Henry James faz essa equação mordaz entre personalidade interna e persona externa; a pessoa que somos, e a pessoa que aparentamos ser, quando “em sociedade”. Ele próprio afirma, num prefácio a uma de suas coletâneas, que a idéia lhe surgiu ao contemplar um indivíduo famoso em seu meio social mas que, por mais brilhante que fosse, não aparentava ser capaz de escrever as coisas que escrevia. Diz ele:

Isto explicava, para a minha imaginação, todo o mistério: nossa celebridade inconcebivelmente agradável era um ser duplo, formado de dois compartimentos distintos e estanques  – um era representado pelo cavalheiro que sentava-se a sós a uma mesa, silencioso, longe das vistas de todos, e ali escrevia coisas profundas, intrincadas, corajosas; enquanto seu complemento era o cavalheiro que regularmente vinha sentar-se a uma mesa de natureza bem diversa, onde ceava de forma substancial, promíscua, multitudinária. (trad. BT)

Eu tenho pra mim que este inspirador misterioso era o próprio James, a quem não era estranho o dilema de escrever coisas geniais em seu gabinete e de, quando em público, ter que aparentar inteligência, bons modos, bom humor e paciência para com a parvoíce alheia. Para mim é fora de dúvida que, quando necessário, também Henry James sabia mandar o clone.








terça-feira, 17 de março de 2020

4560) Quatro arrependimentos (17.3.2020)



(ilustração: Davit Mirzoyan)

1
Hélcio Sussekind Nogueira, 30 anos, executivo júnior da SemperLife, uma empresa de seguros de ascensão meteórica nos primeiros anos desta década, mas não mais meteórica do que a do próprio Hélcio, conhecido rapidamente na cúpula da empresa por sua inteligência viva, elétrica, sempre um passo adiante de todos, o cara que pensava todas as hipóteses e alternativas em meros segundos e extraía disso a decisão certa, o cara que ganhava batalhas perdidas empregando um zás-trás de argumentos irrespondíveis, fazendo bambear as certezas de administradores-sênior mais calejados. Nesse dia, Hélcio preparou-se ao longo de uma noite insone de comprimidos, café e cigarros, fotografou mentalmente cada uma das 142 páginas do relatório geral do qual (ele sabia muito bem) cada vice-presidente na manhã seguinte só teria lido a parte que lhe dizia respeito, preparou sua estratégia, dali mesmo da poltrona juncada de papéis e notebooks abertos googlou duas ou três novidades recém-desabrochadas no mercado, visando efeito surpresa; e às onze da manhã, banhado, barbeado, fresco como uma madressilva, encarou o bureau de autoridades que esperavam seu apanhado; “Vamos,” provocou todo canchudo o Dr. Herthal, “mostre aí um dos seus raciocínios quânticos,” e não precisou mais, ele deslindou em dezessete minutos de solilóquio implacável o gigantesco blefe que preparara (porque na realidade contava mais com o que os colegas mais velhos ignoravam do que com o que ele próprio eventualmente soubesse), amarrou tudo em três minutos e oito ítens, desfechou seu veredito final diante da mesa enorme e muda... e, triunfante, tirou um cigarro do maço e o acendeu. Pelo filtro.

2
Harriet B. Weinberg, 41 anos, agente imobiliária na Filadélfia (EUA), andava com dores na coluna, dormia com dificuldade, nos momentos de bom-humor dizia que preferia ficar tetraplégica para nunca mais ter que levantar da cama, que vestir um terninho escuro, empunhar uma pasta estufada de contratos e planilhas e panfletos e plantas baixas e sair batendo calçada de salto alto elogiando para casais desconfiados e avarentos as supostas vantagens de adquirir algum daqueles chalés cambaios, um daqueles apartamentos infiltrados de mofo e vazamentos, daquelas quitinetes asfixiantes situadas a dois metros de um trem de subúrbio e seu trovão pontualíssimo; tanto se queixou que a filha lhe indicou um massoterapeuta em cuja maca ela se estirou cheia de expectativas, e o iraniano esfregou as mãos, garantiu-lhe que sairia dali sentindo-se “como se tivesse apenas 45”, e quando ela lhe pediu que tivesse cuidado com sua cervical, que lhe incomodava muito, ele garantiu que iria começar justamente por ali o milagre, e depois de alguns passeios exploratórios com polegares cruéis segurou-lhe a cabeça, aprumou-a num ângulo igual ao da ilustração do livro e puxou-a com força na direção norte-por-noroeste, produzindo um estalo fortíssimo que trouxe à porta a secretária e produziu uma exclamação sufocada de “oh my God” por parte do terapeuta, e uma dor lancinante que percorreu Harriet de cima a baixo como a espada de fogo de um anjo vingador, dor que se manteve latejante durante todo o tempo necessário para a convocação e a chegada dos paramédicos, a transferência dela para a padiola, para o elevador, para a ambulância, para o hospital e para a mesa de cirurgia urgente-urgentíssima onde seu último pensamento antes de mergulhar no torpor anestésico foi sobre as piadas irreverentes das quais agora se arrependia diante de Deus e de sua misericórdia, que dizem infinita.

3
Jakob Oberstreiter, 48 anos, bombeiro hidráulico, decidiu aceitar o convite para o natalino jantar-confraternização da firma onde trabalhava, botou a melhor roupa, raspou as economias, pegou o trem rumo ao clube na cidade vizinha onde o evento transcorreu com espumantes e girândolas, muitas bandejas, muitas opções, solícitos garçons ansiosos para que ele consumisse logo, e Jakob naquela de “é hoje só, amanhã não tem mais”, e poucas horas depois ele já se sentia um passageiro de uma espaçonave que oscilava, adernava para a direita, para a esquerda, chacoalhava e lhe fugia aos pés. Com o auxílio da uma parede à esquerda e outra à direita ele foi avançando pelo corredor que lhe indicaram, achou o logotipo tranquilizador, entrou no banheiro, foi à privada, trancou-se por dentro, arriou as calças, sentou, desmoronou ali todas as ruínas orgânicas que trazia dentro de si, como um Louvre malsão que recebesse ordem de despejo. Ao dar-se por terminado, e antes mesmo de apertar a descarga, limpou-se, ficou de pé, puxou as calças para cima, acertou correr o fecho eclé, acertou afivelar o cinto, e quando num gesto maquinal bateu a mão no bolso direito traseiro da calça para se certificar da presença reconfortante da carteira, constatou que o bolso estava frouxo e vazio, e a busca aleatória pelo chão do banheiro nada lhe revelou, mas erguendo-se de novo em toda sua estatura, ele vislumbrou a carteira, que evidentemente caíra do bolso onde estava, no exato momento em que a calça fora erguida de volta, e agora boiava cegamente ali, dentro da privada, encharcada de tudo, ensopada de tudo, embebida e bêbada de tudo que a vida tinha para lhe oferecer.

4
Rebeca Ubiratan da Silva, 31 anos, curso incompleto de Direito, recém-casada, residente em Campos dos Goytacazes (RJ), comoveu-se ao ouvir o marido, Lourival Carneiro da Silva, 36 anos, desempregado, descrever os percalços por que passava sua tia por parte de mãe, Genecy Barreiros, 45 anos, prendas do lar, enviuvada há meses após um horripilante acidente numa engarrafadora de refrigerantes, e por força dessa comoção sugeriu ao marido que durante o processo de despejo e descoberta de um novo lar a tia Gené passasse um tempinho na casa deles, com o que o marido concordou meio a contragosto, mas luto é luto, e a Tia Gené concordou também, só que de forma entusiástica, e transferiu-se para lá com armas e bagagens, dando início a um torvelinho de emoções que (confessou Rebeca depois a uma amiga muito próxima) “me pegou pelo rabo, deu dez voltas no ar e me jogou no Japão”, porque mal se abancou no quartinho-de-fora da casa onde viviam os dois pombinhos a Tia Gené mexeu no cardápio, interferiu na feira semanal, explodiu o cronograma de um casal pacato e provisoriamente sem filhos, instaurou novas despesas, valeu-se do conceito abstrato de feng-shui para ressignificar a mobília, brigou com o sem-teto inofensivo que dormia embaixo da árvore da esquina, arrumou uma encrenca com o gerente do mercadinho lá na praça por causa de um cartão magnético inválido, encrespou-se de rivalidades com a vizinha da esquerda, a evangélica Mirtes Alcoforado, 55 anos, a quem ela passou a provocar diariamente ligando em todo volume um Spotify de funks pornô, “só pra contrariar, eu não gosto”, explicou ela feliz aos anfitriões, e logo em seguida declarou guerra aos vizinhos da direita, o casal Belarmino, cujos cãezinhos magros, orelhudos e irrequietos foram misteriosamente amanhecendo em rigidez cadavérica, um por um, enquanto os Belarminos ensandeciam e a polícia coçava a cabeça, dizendo precisar de provas materiais, coisa que não havia, havia apenas a imaterialíssima prova do sorriso bem-dormido de Tia Gené, cuja janela dava para aquele lado, sendo que ela já apontava suas baterias rumo ao vizinho da frente, o doutor Wellington, ao descobrir em quem ele tinha votado, o que a levou a uma febre cívica de panfletos diários enfiados por baixo das portas ou janelas, de santinhos espargidos no gramado, de cumprimentos sarcásticos gritados da calçada oposta todas as manhãs antes que o doutor por isso mesmo abdicasse de sua mangueirada matinal na grama, situação esta que perdurou até que Rebeca meteu os pés e disse CHEGA, e a Tia Gené num instante arrumou um correspondente em Angra dos Reis disposto não somente a aturá-la como a ir buscar de van os seus pertences, cercada pelos quais ela acenou em despedida e sumiu na esquina, e o bairro inteiro escutou o suspiro de alívio do casal.












sábado, 14 de março de 2020

4559) A ficção científica de Nelson Leirner (14.3.2020)




O artista plástico Nelson Leirner faleceu recentemente no Rio de Janeiro, com 88 anos. Era uma figura muito conceituada no meio das artes plásticas, mas a primeira referência que eu tive dele foi como autor de ficção científica.

Foram muito importantes para minha geração as publicações de duas editoras, nos anos 1960: a GRD (RJ), do meu hoje amigo Gumercindo R. Dórea, e a EdArt (SP), de Álvaro Malheiros. 

Juntas elas publicaram algumas dezenas de títulos de FC traduzidos (Robert Heinlein, Ray Bradbury, H. P. Lovecraft, Evgeni Zamyátin, etc.) e publicaram numerosos autores nacionais que vieram a se tornar os grandes nomes da chamada Primeira Onda da nossa FC: André Carneiro, Rubens Teixeira Scavone, Jeronymo Monteiro e outros.

Uma das publicações mais importantes da EdArt foi a antologia Além do Tempo e do Espaço – 13 contos de ciencificção (São Paulo: EdArt, 1965).

A antologia já começava com esse neologismo, uma tentativa de criar um nome em português para uma literatura que, entre nós, era novidade. “Ciencificção” era uma maneira de tornar o nome próximo da sonoridade do termo original, “Science Fiction”. Não colou; e não sei dizer agora se foi usada na capa e nos demais paratextos dos livros da época.

Essa antologia, provavelmente organizada pelo próprio Álvaro Malheiros, tinha um dos projetos gráficos mais elegantes de toda a nossa FC, com capa de Luiz Dias e desenhos de Renato José. 

Os treze autores escolhidos eram André Carneiro, Domingos Carvalho da Silva, Antonio D’Elia, Álvaro Malheiros, Lygia Fagundes Telles, Clóvis Garcia, Nelson Leirner, Ney Moraes, Nelson Palma Travassos, Jeronymo Monteiro, Nilson Martello, Walter Martins e Rubens Teixeira Scavone.

O conto de Nelson Leirner intitulava-se “O Espelho”.

A narrativa, na primeira pessoa, começa com a reunião de vários astronautas num alojamento, enquanto esperam ser designados para as próximas missões espaciais. Um deles chama-se Enovacs, numa alusão direta ao autor paulista Rubens Scavone, que usou em algumas obras o pseudônimo “Senbur Enovacs”.

Enovacs descreve uma viagem que fez a Titã, a lua de Saturno, e ele descreve uma flor que avistou ali:

Aproximei-me, curvei-me e vi que de perto era ainda mais bela. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando estranhamente uma luz brilhante. E o bater do vento movimentando a haste docemente fazia com que a corola traçasse círculos e mais círculos luminosos. (pag. 107)

O Narrador conta então que voou para a Lua, e seu foguete a certa altura penetrou numa “...gruta cujas paredes lisas davam a impressão de serem torneadas pelo homem”. Ele perde contato com a base e logo em seguida vê-se planando num espaço desconhecido, onde avista um planeta não identificado. Ao descer, ele percebe que está na Terra – o túnel onde tinha penetrado na Lua o conduziu, inexplicavelmente, para um deserto na Arábia.

Ele fornece a data exata da viagem: 22 de outubro de 1982. Cruzando o deserto, chega a uma cidade, consegue ir até Riad e pegar um avião de volta para sua cidade (não diz qual é). Ao desembarcar, vai direto para sua casa, que parece estar deserta – ninguém atende aos seus chamados na porta. Os transeuntes passam sem prestar atenção, como se não o vissem. Ele fica vagando perplexo pela rua, e tem um sonho, onde vai parar numa espécie de templo, onde as paredes multiplicam a cena de um casamento que ocorre lá dentro:

Vejo meu retrato de casamento. As portas do antigo templo voltam a abrirem-se e recebem o cortejo que caminha lentamente. Tudo é preto. Encontro-me cercado por quatro paredes, em cada parede quatro celas, em cada cela quatro noivas e o teto coberto por enorme espelho. Sessenta e quatro noivas, dezesseis celas, quatro paredes e o teto coberto por enorme espelho. (pag. 110)

Ao despertar do sonho ele volta à rua onde ninguém ainda o reconhece, mas uma mulher estranha para ao seu lado e os dois começam a conversar. Tornam-se amigos. Fazem daquele local um ponto de encontro. O narrador conjetura:

Talvez um outro “eu” estivesse me substituindo. Talvez esta não era a descoberta de uma nova rota entre a Terra e a Lua. Talvez tivesse caído em outro planeta que não fosse a Terra. Talvez estivesse num planeta que fosse o espelho da Terra. (p. 111)

O narrador está feliz por ter encontrado aquela nova mulher, e agora se divide entre o impulso de voltar para a Terra original, onde estão sua esposa e seus filhos, e o de permanecer ali. E ele corta bruscamente para o foguete, onde volta a percorrer a gruta, e ao emergir dela recupera o sinal de rádio, o contato com a base, e para lá retorna – para reencontrar o amigo descrevendo a flor que descobrira em Titã: “... Uma, duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando estranhamente uma luz brilhante...”

O conto de Leirner tem essa estrutura em que o fim se cola no começo, anulando o tempo; tem uma prosa intensa e poética, de imagens vívidas, que compensa o enredo um tanto desconexo – não é uma ficção que traga respostas claras aos mistérios que propõe. Guarda essa curiosidade de ter sido escrito por alguém de fora do mundo literário (nos obituários recentes, não vi menção a nenhum livro de ficção escrito por Leirner), e com razoável competência.










quarta-feira, 11 de março de 2020

4558) Primeiras Estórias: "Famigerado" (11.3.2020)






“Famigerado” é o segundo conto do livro Primeiras Estórias (1962) de Guimarães Rosa. Como já andei comentando por aqui, este livro foi montado pelo autor a partir de contos que ele publicou no jornal O Globo ao longo do ano de 1961.

Contos publicados numa página fixa na imprensa geralmente recebem um tamanho padrão. Ficam todos com uma extensão mais ou menos a mesma, e é isso que ocorre com muitos contos deste livro.

No curto espaço de oito páginas (a média dos contos de Primeiras Estórias) deverá, portanto, caber tanto uma história que aconteça ao longo de anos quanto uma que decorre em poucos minutos.

É o caso de “Famigerado”. O conto é narrado em primeira pessoa e se inscreve numa lista de textos que resultam, imagino, das vivências de Rosa como médico do interior, e dos “cáusos” que ele escutava dos capiaus dali. Claro que pode ser tudo invenção, mas como sabemos da mania anotativa do autor e suas prodigiosas cadernetinhas, vale supor que alguma coisa do conto lhe aconteceu.

O narrador começa descrevendo a chegada, à sua casa, de um grupo a cavalo, no qual um indivíduo se destaca, aproxima-se, puxa conversa. E o narrador diz, a certa altura:

Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela – decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta.

Ser médico no interior coloca um indivíduo como o receptor de estórias, queixas, perguntas, fofocas, todo o varejo de informações que circula por um povoado, e do qual o médico rapidamente se torna um escoadouro natural. A ele tudo se pergunta, tudo se conta.

Outras estórias roseanas, como “Corpo Fechado” (Sagarana), derivam visivelmente dessa condição do autor, de ter sido uma espécie de ouvidor geral do vilarejo. O Doutor vira interpretador dos fatos, trazedor de notícias, aconselhador, avalista de opiniões. E dicionário, também.

Todo o episódio das quatro páginas e meia do conto resume-se a isto: Damázio, um pistoleiro temido naquela região, ouviu dizer que um “rapaz do governo”, recém-chegado naquelas bandas, o chamara de “famigerado”. Sem saber do que se tratava, resolveu pegar o cavalo e ir ao vilarejo perguntar ao Doutor.

O Doutor, suando frio, garante ao valentão que está tudo bem:

Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”... (...) É “importante”, que merece louvor, respeito... (...)  [O] que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!

A resposta dele não apenas sossega o pistoleiro, como dá-lhe um polimento na vaidade, e ele agradece ao médico, elogiando-o:

“Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!”

Isso é um conto? Eu diria que é um daqueles episódios pitorescos de linguajar matuto que Leonardo Mota matava em uma dúzia de linhas. É uma anedota, um “cáuso” – palavra, aliás, de jurisdição mais mineira e paulista do que nordestina; nordestino nenhum diz que vai contar um “cáuso”.

Guimarães Rosa tira um belo copo de leite dessa pedra aparentemente invulnerável. Alguns detalhes são bem saborosos: o primeiro deles é que Damázio não chega sozinho, mas acompanhado de três outros cavaleiros que durante o diálogo ficam meio de banda, e parecem contrafeitos:

Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos – coagidos, sim.

Não tarda que o Doutor perceba: são três pobres coitados que Damázio, sabendo que sua honra parece estar sendo ameaçada por uma palavra perigosa, trouxe ali sob ameaças, como testemunhas, para que escutassem a definição a ser dada pelo Doutor. Resolvida a questão, o jagunço autoriza:

Satisfez aqueles três: “-- Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...”

Logo nos primeiros parágrafos do conto, Guimarães Rosa usa um curioso efeito cuja origem não sei, mas lembro ter lido muitos anos atrás algum comentário dizendo que se trata de um efeito linguístico de algum idioma africano.

Ele diz:

O cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo.

E mais adiante:

O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O.

Acredito ter lido que essa repetição de uma partícula, nesse formato A–B–A, corresponde, em alguma língua, a um efeito de reforço, de intensidade. Como que colocando a palavra central entre aspas, entre parênteses, entre book-ends.


Lembro disso porque associo esse formato com um clássico da ficção científica "B", Ortog (“Aux Armes d’Ortog”, 1960), de Kurt Steiner, uma FC misturada com espada-e-feitiçaria. O herói chama-se Dâl Ortog e, depois de uma série de aventuras, e de ser submetido a testes de coragem e de habilidade, ele conquista o que lá no universo deles equivale mais ou menos ao título de cavaleiro. E passa a se chamar Dâl Ortog Dâl.

Não deve ser invenção de Kurt Steiner (cujo verdadeiro nome, aliás, é André Ruellan). Desde que comecei a escutar as canções de Gilberto Gil sempre me admirei da simetria do nome do poeta (“Gil Berto Gil”), e semi-conscientemente considerei que ele seria um cavaleiro espacial da mesma categoria heráldica de Dâl Ortog Dâl.



Quando Gil lançou em 1982 o álbum Um Banda Um, essa sensação ficou mais forte, e acabou se reforçando mais ainda quando, pouco tempo depois, lá por 1989, o grande Jorge Ben trocou seu nome artístico para Jorge Ben Jor (=Jor Geben Jor). Os exércitos de Ortog desfraldavam seus estandartes ao sol, famigerados.