quinta-feira, 11 de agosto de 2011

2631) Quando acabar o maluco sou eu (10.8.2011)



Sou maluco? Tudo bem, então sou maluco. 

Maluco porque quando tinha 12 anos improvisei uma bicicleta com duas rodas traseiras porque eu caía muito e na vizinhança mangavam de mim. Concluí que precisava de mais estabilidade, correto? Não ficou cem por cento, eu não tinha ideia de como é difícil cortar e soldar metal, usei material de segunda mão, continuei caindo e mangaram mais ainda. Dizem que sou maluco.

Na verdade já diziam antes, inclusive os professores. A professora de Português me botou de castigo porque eu disse que só quem liga para a diferença entre preposição e conjunção é professor de Português. Me perguntou o que eu queria ser na vida. Eu disse: “Tudo, menos professor de Português”. 

Não que o professor de Matemática escapasse. Passei um fim de semana debruçado na mesa, aos 14 anos, com uma descoberta que fiz. Vocês já repararam que a diferença entre os quadrados dos números naturais sucessivos são os números ímpares sucessivos? Vejam os quadrados: 1, 4, 9, 16, 25, 36, 49... Confere? Veja as diferenças entre eles: 3, 5, 7, 9, 11, 13... Confere? 

Mostrei àquela anta de óculos, ele leu minhas folhas de anotações e rasgou, dizendo: “Zero. Você é maluco. Eu não mandei fazer isto, mandei praticar raiz quadrada”.

Não vou fazer uma lista completa, não sou maluco. Namoradas? Eu perdoo porque sou um cara romântico e de bom gosto, só me apaixono por mulher linda. 

Perdoei Norminha quando ela me deixou dizendo que estava cansada de tentar técnicas telepáticas, estava começando a pensar coisas que não eram da cabeça dela, e nunca mais falou comigo. (Não precisa. Há onze anos leio o pensamento dela e me divirto de montão.) 

Perdoei Selma quando me trocou por Vélber da Recebedoria, porque eu desenhei pra ela um vestido (nem existia velcro naquele tempo!) que bastava um puxão na direção certa pra sair todinho de uma vez. Disse que eu era maluco e que se tinha jeito pra figurinista é porque eu devia ser gay. 

Perdoei Dulce que não queria dormir na cama que eu construí (dizia: “isso nunca foi cama nem aqui nem na China”), Laura porque tudo bem, aquele remédio que matou o bassê dela era uma dosagem experimental (reduzi desde então). E a todas eu dizia: “Sou maluco é por você, vem cá, deixa de ser linda”.

E assim caminha a humanidade. Agora estou com 37 anos e continuam me chamando de maluco. 

Porque pendurei o celular (que eu vivia esquecendo) num cordão ao pescoço. 

Porque tatuei no lado de dentro do braço que sou alérgico a AAS. 

Porque descobri um jeito de pintar a óleo e manipular as cores no microondas. 

Porque peguei um software combinatório, entrei no banco de dados e criei um sistema de justapor temas e estilos para criar histórias. 

Porque estou escrevendo quatro autobiografias diferentes e verdadeiras, uma página por dia. Ora que diabo, a vida tem mais soluções do que problemas, a prova disso é que vocês vivem se queixando e eu sou o único homem verdadeiramente feliz.







2630) A palavra Zumbi (9.8.2011)



Cresci numa época em que filmes de zumbi eram raros, não estavam na moda como hoje. É interessante que não havia “livro de zumbi”, pelo menos que eu me lembre; era um gênero exclusivamente cinematográfico, e a imagem que me ficou mais bem gravada foi a de um filme B que vi nos anos 1960, Invasores Invisíveis, em que alienígenas davam um jeito de entrar no corpo de pessoas mortas e sair vagando por aí, com manchas escuras no rosto e os braços estendidos horizontalmente.

Logo depois surgiram as notícias sobre um show de MPB fazendo sucesso no Rio de Janeiro, chamado Arena conta Zumbi. Viciado em ver as coisas sob o prisma do “trash movie”, durante muito tempo imaginei que o título era “Arena contra Zumbi”. Não era. Contava a história de Zumbi dos Palmares, o líder negro dos escravos foragidos, cujo quilombo virou símbolo da resistência negra, e na época virou também símbolo da resistência de intelectuais, artistas e estudantes contra o golpe militar de 1964.

É claro que a coincidência de nomes me chamou a atenção, mas a essa altura eu já sabia que os “zumbis” eram produzidos artificialmente através do vudu, uma espécie de magia negra do Haiti, que enfeitiçava as pessoas e as transformava em mortos-vivos. Uma consulta ao Online Etimology Dictionary (www.etymonline.com) diz que a palavra é registrada desde 1871, com origem na África ocidental (do kikongo “zumbi”, fetiche, e do quimbundo “nzambi”, deus); originalmente era o nome de um deus-serpente e depois virou sinônimo de “cadáver reanimado” no culto vudu. Também pode vir da palavra do idioma crioulo da Louisiana que significa “fantasma, espectro”, vinda do espanhol “sombra”. O sentido “pessoa bronca, estúpida, apática” é registrado desde 1936.

O mais interessante disso tudo é que a mesma palavra significa “morto vivo” em dois contextos e duas culturas totalmente diversas. Na cultura branca, significa alguém que morreu e deveria permanecer morto, mas que foi artificialmente obrigado a se comportar como se estivesse vivo, embora esteja em decomposição. Na cultura negra (no sentido específico de Zumbi dos Palmares), significa alguém que foi declarado morto mas que para seus seguidores permanece vivo e atuante, um morto que se recusa a morrer. Note-se que após a morte de Zumbi sua cabeça foi fincada numa estaca e exposta em praça pública (tal como ocorreu com Tiradentes) para “atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal”, segundo carta do governador de Pernambuco ao Rei.

O morto sempre vivo, o morto que se recusa a morrer, é um mito de cultos sagrados e profanos. Jesus Cristo é também um morto que emerge vivo da tumba. Heróis dos mais diversos feitios (Padre Cícero, Lampião, Elvis Presley) são tidos como ainda vivos pelos seus seguidores. O zumbi do cinema de terror é um Zumbi sem Palmares, sem propósito, sem projeto, sem ideal. É o que somos quando queremos simplesmente viver, sem nada mais além disso.


2629) High tech, low life (7.8.2011)



Esta é uma das palavras-de-ordem do movimento cyberpunk que surgiu nos anos 1980 na ficção científica dos EUA. Ao pé da letra, significa algo como “alta tecnologia nas mãos de gente de baixa classe social”, sendo que nessa “baixa classe social” está implícita uma dose considerável de marginalidade, transgressão, violação das leis. 

Essa frase é simétrica à própria palavra “cyberpunk”, e lhe serve como uma espécie de glosa ou diluição explicativa. 

“Cyber” significa tudo que se refere à cibernética, à informática, à eletrônica, à tecnologia digital; e “punk” se refere a tudo que exprime uma atitude agressiva, e violenta contra isso que os jovens chamam O Sistema (até que amadurecem e percebem que o Sistema é maior do que eles imaginavam, e os inclui, mas isso é outra história).

O movimento punk no rock foi isso: guitarras elétricas nas mãos de quem não sabia tocar, microfone na mão de quem não sabia cantar. 

O punk rock foi a reação ao sucesso autocomplacente do rock e pop internacional, com seus artistas multimilionários desfilando em limusines e comprando um castelo para fazer uma orgia de fim de semana. 

Os punks de origem, rapazes e moças das periferias operárias, cuspiam com desprezo em cima disso. Toda a vida cuspiram, desde a Idade Média. Mas na década de 1970 começaram a cuspir com alta tecnologia em punho.

“High tech, low life” parece uma promessa utópica e otimista redigida a quatro mãos por Charles Fourier e Arthur C. Clarke. 

É como se vislumbrássemos no horizonte um futuro em que todo mundo fosse rico por igual, e políticos e operários, industriais e camponeses, ministros de Estado e tecelãs, não apenas ganhassem exatamente o mesmo, mas tivessem em mãos, para seu trabalho e seu lazer, “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, como diz Caetano Veloso. 

Será que isso resultaria num Éden ultracientífico, em que os pobres disporiam das mesmas tecnologias que os ricos, mas, sutilmente, os privilégios se manteriam intactos? De certa forma, estamos indo nessa direção – hoje em dia a madame liga pro celular da diarista e avisa: “Clementina, não precisa vir amanhã, vamos viajar”.

O que ocorre no mundo real, entretanto, é que no momento em que a alta tecnologia começa a se espalhar pela baixa classe social adquire o irritante hábito de servir aos interesses dos usuários, e não dos criadores! (Perguntem aos executivos da Polygram, Ariola, EMI-Odeon, Columbia Records, etc.) 

A baixa classe social tem seus próprios planos sobre como usar as tecnologias. A literatura cyberpunk é o primeiro passo de uma literatura futura (acordem-me daqui a 50 anos, por favor!) em que a produção cultural das elites se diluirá (sem desaparecer) no tsunami quantitativo da produção cultural dos “low life”, para o melhor ou para o pior. 

Da baixa classe surgirá a Grande Arte. Não se assustem – nós mesmos já somos isto. Não somos de maneira alguma o que a Renascença e o Iluminismo sonharam.