quarta-feira, 7 de outubro de 2020

4628) Os que voltaram da Morte (7.10.2020)



Há um filme francês chamado Les Revenants (2004; em inglês, They Came Back) com uma premissa fantástica desenvolvida de maneira curiosa.
 
A premissa é que um belo dia os mortos voltam à vida.  Na cena inicial do filme eles saem do cemitério, caminhando devagar, mas não são como os zumbis. Voltam intactos, vivos mesmo, aparentemente saudáveis, trajando roupas limpas e normais. Seriam as mesmas pessoas que foram um dia, se não fosse o fato de algumas semanas, ou meses, ou anos atrás terem falecido e sido sepultados por suas famílias.
 
A cena inicial do filme, arrepiante, mostra esse êxodo vagaroso de pessoas bem vestidas, de cabelos brancos, saindo do cemitério numa procissão silenciosa e introvertida.
 
Voltam, inteiros, mas meio amnésicos. Parecem não saber que tinham morrido. Alguns se dirigem de volta a suas casas, outros ficam vagando. As autoridades providenciam espaços para recolhê-los, em galpões, em ginásios, porque são milhares que ressuscitam do dia para a noite. É como se fosse uma invasão de refugiados; ou de desabrigados por um furacão, algo assim.
 
Um dado comum a todos é essa amnésia, essa relativa ausência, esse descolamento da realidade. Falam pouquíssimo, e quando falam é para dizer banalidades, frases cotidianas, como se a vida fosse a vida normal de sempre mas eles estivessem meio tontos, meio convalescentes, meio maldormidos.
 
Lembrei do que acontece no livro Aniquilação (2014) de Jeff VanderMeer. Nessa história, algumas expedições militares são enviadas à misteriosa “Área X”, que parece ter sido bloqueada por uma força alienígena. As pessoas que entram ali não voltam mais, mas há algumas exceções. A Bióloga (um dos personagens principais) conta assim como o seu marido, um dos expedicionários, reapareceu inesperadamente em casa:
 
Uma noite, cerca de um ano depois que ele tinha partido para a fronteira, eu estava deitada sozinha na cama, e ouvi alguém na cozinha.  Armei-me com um bastão de beisebol, saí do quarto e acendi todas as luzes da casa.  Encontrei meu marido junto do refrigerador, ainda vestindo seu uniforme da expedição, bebendo leite e derramando-o pelo queixo e pelo rosto, e devorando furiosamente restos de comida.
 
Fiquei sem fala.  Só conseguia olhar para ele como se ele fosse uma miragem e se eu me mexesse ou dissesse qualquer coisa ele iria se dissipar no nada, ou em menos do que nada.
 
Sentamos os dois na sala, ele no sofá e eu numa poltrona em frente.  Eu precisava de alguma distância em relação àquela aparição repentina.  Ele não sabia dizer como tinha deixado a Área X, não lembrava absolutamente de como tinha chegado ali em casa.  Tinha apenas uma vaga lembrança da expedição propriamente dita.  Demonstrava uma calma estranha, rompida apenas por alguns breves momentos de um remoto pânico, quando eu lhe perguntei o que acontecera e ele reconheceu que sua amnésia não era natural. (...)
 
Depois de algum tempo, não aguentei mais aquilo.  Tirei a roupa dele, obriguei-o a um banho de chuveiro, depois levei-o para o quarto e fiz amor com ele, eu por cima.  (...) O tempo inteiro em que esteve dentro de mim ele ergueu os olhos para o meu rosto com uma expressão que me disse que ele lembrava, sim, de mim, mas somente através de uma névoa.  (...) O que quer que tivesse acontecido na Área X, ele não tinha voltado.  Não mesmo.
(trad. BT)
 
É mais ou menos assim que reagem as pessoas “retornadas” do filme escrito e dirigido por Robin Campillo. Algumas são idosas, e seu alheamento nos dá uma arrepiante impressão de Alzheimer. Casais jovens, sem filhos, sentam numa sala de visitas olhando um para o outro, e em certos momentos a gente não sabe se quem retornou da morte foi ele ou foi ela.



Alguns erguem-se no meio da noite, vestem a roupa e saem caminhando devagar de volta à repartição onde trabalhavam, aparentemente sem perceber que são três horas da madrugada. Reúnem-se. Manuseiam mapas, falam em voz baixa, como se tentassem se lembrar coletivamente; são rituais ominosos e patéticos. Parecem com a Ilha do Dr. Moreau de Wells: os conciliábulos dos bichos-homens repetindo ladainhas e tentando convencer-se de que são pessoas normais.
 
E ao que parece ninguém toca no assunto. Os familiares procuram poupá-los (e a si próprios) de perguntas terríveis tipo “como é estar morto?”. Tratam-nos como em tantos lugares se tratam os soldados que voltam da guerra traumatizados. Procuram facilitar tudo para eles, e ninguém toca jamais naquele assunto.
 
As matérias sobre o filme lembram de Invasion of the Body Snatchers, filmado em 1956 por Don Siegel e em 1978 por Philip Kaufman. A única semelhança é a atitude meio sonâmbula que nestes dois filmes acomete as pessoas que foram “invadidas” pelos alienígenas; no mais, semelhança nenhuma.
 
O saite IMDB cita o nosso Incidente em Antares de Érico Verissimo, por esse retorno dos mortos; mas, mais uma vez, a semelhança se esgota no ponto inicial. No filme francês, os mortos estão limpos e intactos, mas têm um comportamento passivo e ausente; no livro de Érico, apresentam uma leve decomposição, mas falam, riem, discutem, têm muito mais iniciativa, estão até mais “vivos” do que muitos outros personagens.
 
O filme tem alguns desdobramentos meio inexplicados, e me passa impressão de um sintoma muito comum nas narrativas da literatura e do cinema. São as histórias de Começo e as histórias de Fim. Às vezes a gente tem uma idéia sensacional para o começo de uma história, mas não sabe onde aquilo vai dar. Outras vezes, a gente imagina um desfecho arrasador, mas precisa inventar um começo que conduza até aquele ponto.
 
Les Revenantes é claramente uma História de Começo; “E se os mortos voltassem?...”, etc etc.  O final do filme sugere dois ou três desenvolvimentos, nenhum deles conclusivo – não é um filme com desfecho, é um filme que se esvai aos poucos. (Li por aí que foi adaptado para uma série de TV que já vai com duas temporadas; não creio que uma idéia tão tênue possa render muito, esticada a esse ponto).
 
O mais interessante do filme é esse clima de indecisão, de imprecisão, de perguntas não respondidas. Que lembra as palavras de Arthur Rimbaud em Uma Estadia no Inferno:
 
“Fraqueza ou força: repara bem, é a força. Não sabes aonde vai nem por que vais, mas entra em toda parte, aberto a tudo. Não te matarão mais do que se já fosses cadáver.”  Pela manhã, meu olhar era tão vago e minha aparência tão morta, que as pessoas que encontrei talvez nem me tenham visto.
(trad. Ivo Barroso)