sábado, 13 de julho de 2013

3238) Ensaios literários (14.7.2013)




(Flip 2013: Pires, Dyer, Sullivan)

Nascer na Paraíba foi uma das melhores coisas que poderiam ter me acontecido, porque eu sou por natureza um cidadão do mundo. Se nascesse em Paris ou Nova York, eu me diluiria em generalidades e irrelevâncias, ainda que lucrativas. Ser paraibano, estar por assim dizer perto da bandeirinha de corner do Palco do Universo me serviu (como serve a todos nós) de alerta. O alerta parece dizer: você é o centro do seu mundo mas não é o centro do mundo. O mundo é maior do que você, e não vai perceber sua existência, a menos que você faça alguma coisa importante. Te vira, véi.

Isso me vem à mente ao considerar a mesa realizada na Flip, entre os ensaístas Geoff Dyer (Inglaterra) e John Jeremy Sullivan (EUA), mediados pelo brasileiro Paulo Roberto Pires. Dyer e Sullivan são dois ensaístas literários da velha escola, ou seja, escrevem textos longos, meditativos, críticos, geralmente na primeira pessoa, mas envolvendo, em torno do objeto principal do texto, uma grande quantidade de referências pessoais, literárias, culturais, políticas, etc. Um ensaísta da velha escola, ao escrever sobre um parafuso, coloca por alguns minutos o parafuso no centro do seu mundo mental, e faz convergir tudo que sabe na direção desse pequeno objeto.

Paulo Roberto Pires observou com propriedade que no Brasil o termo “ensaio” se aplica muitas vezes ao ensaio acadêmico: duro, árido, cheio de jargão, manietado por uma estrutura referencial e demonstrativa que deixa muito pouco terreno para a expressão pessoal. Já o ensaio que estou chamando aqui de “velha escola” nada impõe em termos de estilo ou de estrutura. O autor é livre para concebê-lo, e cada um vai na direção de si mesmo. Um inglês como Dyer talvez derive (não li nada dele ainda) na direção de autores como G. K. Chesterton, capaz de falar longamente e interessantemente sobre qualquer assunto; ou na de George Orwell, cujos ensaios são tão agudos e ácidos quanto sua ficção. Um norte-americano como Sullivan (comprei dele a coletânea Pulphead) pode recorrer à farta inspiração literária de um Edmund Wilson ou à experiência de Norman Mailer, desde que saiba temperá-las com a doidice de Hunter Thompson ou Lester Bangs.

Enfim: o ensaio literário é quando o autor mobiliza tudo que sabe, tudo que leu, tudo que viveu, para falar de assuntos tão bobos quanto um show de rock evangélico, uma luta de box, uma convenção de delegados de polícia, uma eleição presidencial, uma dose de mescalina, uma briga de vizinhos... Um autor, e todo o seu mundo mental, convergindo de uma vez só sobre um assunto. Se o autor e o mundo valerem a pena, o assunto pode ser até um parafuso.


3237) O trem de Gotán City (13.7.2013)




(foto: Gavin Hammond)

Gotán City tem 32 roteiros turísticos de trem.  Comprei o carnê “Vida de Charles Windstern”. O trem chia, o vapor silva, a engrenagem rumoreja e se põe em movimento, e eu tiro da pasta o Guia Informativo.  Desfilam na janela armazéns com vidraças quebradas e manchas verdes de infiltrações antigas.  Outdoors descascando como pele após a praia.  Homens gordos de macacão, sentados em pilhas de dormentes, com charuto apagado na boca.  A primeira parada do trem é na Rua 152, a 1 km da estação. 

Vemos a placa indicando o lugar onde havia a casa em que Charles nasceu, em 2011.  Em seu lugar ergue-se hoje uma pet-shop de oito andares, toda de vidro fumê, luzes de mercúrio, comerciais em loop na fachada de cristal líquido. O altofalante do trem refere-se a Charles como “o último grande pensador do século”. O trem arranca.

A próxima parada, na Rua 200, mostra de longe o soturno Colégio Gospel onde Charles estudou até os 16 anos.  Continua intacto; é mantido por subvenções coletadas em oito países.  No tempo de Charles formava 400 alunos por ano, agora forma 55 (o Reitorado afirma que os critérios tornaram-se mais exigentes). A estátua de Charles no jardim foi removida temporariamente para conserto na tubulação de esgoto.  Está deitada na horizontal, perto do muro, sua mão erguida se projeta sobre o laguinho onde bóiam folhas secas.

As paradas seguintes mostram a praça onde Charles foi alvejado durante uma manifestação sindical; o hospital onde ficou interno durante os seis anos seguintes, cruciais para sua formação teórica, quando leu tudo que estava ao seu alcance; o primeiro shopping onde pregou, pela primeira vez, após a cura e a conversão. Cada vez que o comboio se detém, os vidros-telas das janelas superpõem imagens históricas e texto escrolado à paisagem que observamos lá fora. 

Eu deveria sentir gratidão pela qualidade dos écrans das janelas, a alta definição das imagens que se superpõem ao que vem lá de fora, o esfumado das sombras e das cores, o delineamento das formas. Eu deveria agradecer pela exatidão com que a arte se superpõe ao mundo em pedra e osso.  Eu deveria ler tudo aquilo e acreditar piamente que existiu um dia um cara chamado Carlos Windsurf ou coisa parecida e que o que quer que esse camarada tenha feito mudou a vida, mudou o mundo como o conhecemos. Karl existiu? Foi um líder? Um messias? Um caudilho impiedoso e que falava bem? A viagem continua, e, diz um item no “Você Sabia?” do folheto promocional, “a biografia estocada de Charles tem certa de seis milhões de items para acesso aleatório, de modo que nenhuma vida, nenhuma história é igual à outra em Gotán City.”