sexta-feira, 7 de março de 2008

0050) O Penitente (20.5.2003)




Insistentes pedidos de Astier Basílio me obrigam a comentar um personagem: o Penitente. 

O Penitente é um tipo não abordado por Guilherme de Figueiredo em seu saboroso Tratado Geral dos Chatos. O Penitente foi batizado nos velhos tempos do “Buracão”, a palhoça cult mantida por Noaldo Nery por trás do Ginásio da AABB. 

O Buracão seria o bar ideal, se não fosse pela quantidade de Penitentes que apareciam ali, chovesse ou fizesse lua.

O Penitente é aquele chato que quando nos avista nos elege como Meu Melhor Amigo, mesmo que nunca nos tenha visto. Ele conclui que você é a solução para os problemas dele, e foi designado pela Providência Divina para ser o confidente dele, o pagador-de-doses dele, o apartador-de-brigas dele, o carregador-de-bêbo dele, o levador-em-casa dele. 

E tudo isso na noite em que você conheceu o cara! Mas não importa. O Penitente, como os vampiros, desperta na vítima uma curiosa compulsão de ser vitimado.

O que seduz no Penitente, muitas vezes, é percebermos que ele tem uma aura trágica, um selo de Caim. Pense num cara que só trouxe problema pro mundo! Ele gruda em você, agarra seu braço como um náufrago agarrando uma corda, bombardeia sua orelha com perdigotos a noite inteira, pede cigarros, pede uma dose, pede seu telefone, pede atenção, pede desculpas... 

Você levanta para ir embora e ele diz: “Eu vou com você.” Você sai correndo, pega um táxi, manda ir para outro bar, bem longe. Senta, pede uma cerveja, tranquilizado. Aí o Penitente entra esbaforido pela porta.

A vida interior do Penitente é um permanente desmoronamento no vácuo, por isso, ao encontrar um coitado que lhe dá atenção, ele salta sobre a vítima como uma sanguessuga salta sobre a bochecha de uma camponesa suíça. 

O Penitente é assim chamado porque é uma alma penada, alguém que está cumprindo um castigo nesta terra, alguém para quem esta vida é uma permanente expiação, mas é uma expiação que só conta tempo no taxímetro se fôr uma expiação feita às custas de alguém. Daí a enorme necessidade que o Penitente tem de uma testemunha, um compartilhador de destinos. 

Ele precisa de nós para existir. É um vampiro, mas não se alimenta de sangue, alimenta-se de nosso Tempo: minutos e horas a que nunca mais teremos direito, horas irrecuperáveis, sugadas para sempre por essa Solitária externa.

Paciência. Matá-los não resolve: já matei uns vinte, e ressurgem sempre, com outro rosto, outras roupas e outro nome. Mas são sempre os mesmos velhos Penitentes, marchando ao léu por este mundo indiferente e mordaz. 

Que pecado estarão pagando? Talvez seja justamente isso que eles tentam me contar, mas a voz é sempre pastosa, a narrativa desconexa. Ó Penitente, meu semelhante, meu irmão! Quem na vida nunca foi igual a ti? 

Acho que eles estão aqui cumprindo um fenômeno de homeostase cósmica: para cada hora que passamos explorando a paciência de alguém, pagaremos uma hora com um Penitente explorando a nossa.







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