sábado, 15 de abril de 2023

4932) A tristeza e a música (15.4.2023)




No conto que abre o livro Sagarana (1946), “O Burrinho Pedrês”, Guimarães Rosa encastoa uma série de pequenas histórias, “causos” que os vaqueiros contam uns aos outros enquanto conduzem uma boiada, num trajeto longo e vagaroso até a vila onde passa o trem.
 
Uma dessas histórias é contada pelo vaqueiro João Manico. Ele diz que anos atrás o atual patrão deles, Major Saulo, era apenas “Seu Saulinho”, e os levou para trazer uma boiada que acabava de comprar. Como na volta tinham que passar pela cidade de Curvelo, o vendedor do gado lhes pediu um favor: que deixassem lá um menino, um pretinho de uns 7 anos, para ser entregue ao irmão que ali morava. 
 
Os vaqueiros trazem o pretinho à garupa, mas o menino está inconsolável porque está indo embora. Ele não quer ir, pede para ser levado de volta, implora... 
 
E, aquilo, ele chorava, sem parar, e de um sentir que fazia pena... Não adiantava a gente querer engambelar nem entreter... Eu pelejei, pelejei, todo-o-mundo inventava coisa para poder agradar o desgraçadinho, mas nada d’ele parar de chorar... (...) ...O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima... Então eu falei: — “Olha os bois também com saudade dos pastos lá da fazenda”... — Para que foi que eu fui dizer isso! Ele abriu ainda mais no bué, e começou a gemer: — “Ai, seu mocinho bom! Ai, seu mocinho bom! Me deixa eu ir-s’embora para trás! Me deixa eu ir-s’embora para trás!”... 
 
Quando ele viu que não adiantava nada pedir, garrou só a exclamar: — “Ai, seu mocinho ruim! Ai, seu mocinho ruim!... Eu só queria poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem lá no rancho de minha mãe... Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que deve de estar batendo feijão, lá no fundo do quintal!”... 
 
Os vaqueiros ficam naquela sinuca, porque todo mundo está comovido com o choro do garoto mas não fazia sentido voltarem atrás com boiada e tudo. E lá vão eles. Montam acampámento para passar aquela primeira noite.
 
E foi aí, bem na hora em que o sol estava sumindo lá pelos campos e matos, que o pretinho começou a cantar... ...Ah, se vocês ouvissem! Que cantiga mais triste, e que voz mais triste de bonita!... Não sei de onde aquele menino foi tirar tanta tristeza, para repartir com a gente... Inda era pior do que o choro de em-antes... 
 
A voz do menino chega a lembrar (ou será que estarei me sugestionando?) a voz de um Milton Nascimento infantil mas já capaz das nuances futuras de um Milton Nascimento – que já era nascido quando Rosa publicou seu livro: 
 
Era assim uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim... Mas, linda, linda como uma alegria chorando, uma alegria judiada, que ficou triste de repente:
...“Ninguém de mim
ninguém de mim
tem compaixão...” 




Os vaqueiros ficam indóceis, todo mundo nervoso. Um bebe cachaça, o outro puxa do bolso as cartas da família, outro cantarola triste... A história do pretinho tem um final trágico e meio sobrenatural, que fica reservado a quem se dispuser a ler o conto. 
 
O episódio do negrinho me trouxe à lembrança uma cena parecida, num dos meus contos preferidos de Mark Twain, “Uma Estranha Aventura” (“A Curious Experience”, 1881). 
 
Um adolescente pede para se alistar nas tropas do Norte, durante a Guerra Civil norte-americana, e é designado para ajudar na banda de música do quartel. O problema que surge é porque toda noite, no alojamento, antes de dormir, o menino (que tem uns 14 ou 15 anos) reza em altas vozes pedindo a bênção do céu para cada músico da banda; e depois desata a cantar hinos religiosos. 



(Mark Twain)
 
Um oficial relata o fato ao Major:
 
Mas o mais grave de tudo é que quando acaba a reza – quando ele finalmente acaba a sua reza – ele ergue a voz e começa a cantar. Bem, o senhor sabe que a voz dele, quando fala, é doce como o mel; sabe como seria capaz de persuadir aquele cão de ferro do portão a descer os degraus e vir lamber-lhe a mão. Creia na minha palavra, isso não é nada diante da cantiga! Ah, ele se limita a entoar aqueles versos , numa voz tão doce e tão suave, ali no escuro, que faz a gente pensar que está no céu. (...) E ele canta: “Assim como eu sou – um coitado, um cego, um desvalido...”  (...)  E ele faz um homem se sentir o bruto mais ingrato e mais canalha que já existiu. E quando ele canta sobre a casa em que viveu, e sua mãe, e sua infância, e as lembranças de antigamente, e os amigos que morreram e se foram para sempre, isso traz para a mente daqueles homens tudo que eles amaram e perderam em sua vida... 
(trad. BT)
 
Os hinos do garoto fazem aqueles soldados rudes chorarem aos soluços, e na manhã seguinte levantam-se todos fungando, com olhos vermelhos, sem coragem para olhar na cara uns dos outros. 
 
Ficam tal como os vaqueiros do conto de Rosa – que numa entrevista ao Correio da Manhã em 1946 asseverou ter misturado à história dos vaqueiros um personagem real: um menino preto que ele conheceu numa pensão onde morou, quando era estudante na capital mineira. 
 
A poética da tristeza ganha uma dimensão maior quando estabelece esse contraste entre a inocência da infância e o temperamento calejado de homens guerreiros. 
 
E existe o poder hipnótico da tristeza, a tristeza como uma emanação irresistível que brota de alguém e envolve os sentimentos de quem esteja em volta. É algo que foi expresso de maneira inesquecível por Samuel R. Delany em sua noveleta interplanetária Empire Star (1966; no Brasil, “Estrela Imperial”, Ed. Morro Branco, trans. Petê Rissati)).



O protagonista desta história é Comet Jo, um rapaz meio andarilho, que costuma tocar uma ocarina, e precisa pegar carona numa espaçonave para ir a outro planeta, cumprir uma missão qualquer. (Não é uma “missão qualquer” – este livro é cheio de coisas interessantes, mas que não vêm ao caso para esta citação.)  Ele é aceito na nave, e outro rapaz, também músico, chamado Ron, começa a lhe mostrar o que há lá dentro. 
 
Uma das coisas que há lá dentro é um carregamento de “Lll” (=a letra L, três vezes repetida), seres alienígenas.
 
Jo seguiu Ron por um corredor, passaram por uma escotilha, desceram uma pequena escada.
– Os Lll estão aqui – disse Ron, diante de uma porta circular. Ainda estava segurando o braço do violão. Empurrou a porta, e alguma coisa agarrou o estômago de Comet Jo e o virou pelo avesso. Lágrimas cresceram nos olhos dele, e sua boca se abriu. Respirou com dificuldade.
– É uma porrada, hein? – disse Ron em voz baixa. – Vamos entrar.
Jo estava amedrontado, e quando penetrou naquela penumbra sentia-se afundar dez metros a cada passo. Piscou os olhos para clarear a vista, mas as lágrimas voltaram.
– Esses são os Lll – disse Ron.
Jo viu lágrimas no rosto queimado de sol de Ron. Olhou para diante.
Eles estavam acorrentados ao piso pelos pulsos e tornozelos; Jo contou sete deles. Seus enormes olhos verdes piscavam na luz azulada do compartimento de carga. Seus torsos eram encurvados, as cabeças hirsutas. Seus corpos pareciam imensamente fortes.
– O que é que eu estou... – Jo tentou dizer, mas tinha alguma coisa presa na garganta. – O que é que eu estou sentindo? – sussurrou ele, pois era o mais alto que conseguia falar.
– Tristeza – disse Ron.
E assim que recebeu um nome aquela emoção se tornou reconhecível – uma tristeza vasta, avassaladora, que sugava todos os movimentos de seus músculos, toda a alegria dos seus olhos.
– Eles me deixam... triste? – perguntou Jo. – Por que?
– São escravos – disse Ron. – Eles constroem; constroem de uma maneira muito bela, maravilhosa. São extremamente valiosos. Construíram metade do Império. E o Império os protege desta maneira.
– Protege? – perguntou Jo.
– Ninguém pode se aproximar deles sem se sentir assim.
– Nesse caso, quem iria comprá-los?
– Não muitas pessoas. Mas existem em número bastante para que eles sejam escravos incrivelmente valiosos.
– Por que não soltam eles?! – perguntou Jo, e a frase soou no final quase como um grito.
– Economia – disse Ron.
– Como é que alguém pode pensar em economia sentindo-se deste jeito?
– Não é muita gente que consegue – disse Ron. – Essa é a proteção dos Lll.
Jo esfregou os olhos.
– Vamos sair daqui.
– Vamos ficar mais um pouco – retrucou Ron. – Vamos tocar para eles agora. – Ele sentou num caixote, empunhou o violão e fez um arpejo num acorde modal. – Toque. Eu lhe acompanho.
(Empire Star, trad. BT)
 
À maneira típica de Delany, vários conceitos estão expostos de forma entrelaçada nesse trecho: o esboço rápido das relações econômicas do Império interplanetário, a dominação de uma raça por outra, o conceito aparentemente contraditório de que um escravo é protegido pela tristeza que desperta nos outros (o que os trancafia na esfera do “não quero pensar nisso”); e o uso da música como fator de equilíbrio ou tentativa de comunicação. Sem falar no nome da raça escravizada – os “Lll”, um nome impronunciável, um conceito que (do ponto de vista do leitor, que neste momento é o mais “alienígena” de todos) pode ser lido mas não pode ser compartilhado em voz alta. 
 
A tristeza pode ser revelada através do canto, como no pretinho de Sagarana, pode ser provocada nos outros através do canto, como no conto de Mark Twain, e pode ser uma aura que, exalada telepaticamente (por assim dizer), pode ser atenuada pela música. 
 

 
(Samuel Delany, 1966)