Greil Marcus é um dos melhores críticos de rock dos EUA,
e um dos que melhor escrevem sobre a obra de Bob Dylan (ele, Michael Gray e
Paul Williams). Seus livros e seus artigos na imprensa (ele colabora na Rolling Stone, Village Voice, etc.) fazem sempre uma série de pontes entre a
música popular, a literatura, a política, e a vida das pessoas da “América
profunda”, aquela que num livro de 1997 ele batizou de Invisible Republic.
No livro Mystery
Train (1975) ele conta um episódio engraçado do tempo em que o presidente
dos EUA era Lyndon Johnson. Johnson era um texano rude e bronco, obstinado, conhecido
tanto por dar continuidade às políticas de direitos civis iniciadas por John
Kennedy (de quem era o vice, e a quem sucedeu após seu assassinato em 1963) quanto
pelo seu pesado investimento na Guerra do Vietnam.
Segundo Marcus, um jornalista perguntou a Johnson por que
motivo a Presidência da República não revelava ao povo norte-americano o que de
fato estava ocorrendo na região da Indochina. E Johnson respondeu:
– Meu amigo, quando você tem em casa uma sogra com um
olho só, e esse olho é no meio da testa, você não deixa ela vir na sala de
visitas.
É uma resposta texana, sertaneja, uma resposta meio
surrealista e meio rude cuja inspiração nasce daquela América profunda de onde
brotou a literatura de William Faulkner e Flannery O’Connor.
Eu gosto demais dessa resposta, por esse lado
surrealista, esse lado Picasso; mas ela revela outro lado, o jeitão desabusado,
meio brutal, com que Johnson (e outros, antes e depois dele) conduzia sua
política. Johnson foi, depois de Kennedy (que era um típico herói louro e hollywoodiano)
o primeiro presidente dos EUA que eu enxerguei como sendo uma pessoa real. Abraham
Lincoln era uma figura dos livros de História. Lyndon Johnson aparecia na
primeira página do Diário da Borborema.
De Johnson talvez se pudesse dizer o que alguém disse do
ator William Holden: que quem olhava seu rosto tinha a sensação de ver o mapa
dos Estados Unidos. Esses dois rostos podiam ser duas faces da mesma moeda.
À frente, na “cara”, o rosto bronzeado e os dentes
alvíssimos de Holden, a masculinidade descontraída de quem parece estar sempre rumo
a uma partida de tênis numa tarde de sábado.
Atrás, na “coroa” (o Poder), o rosto de Lyndon Johnson,
talhado a faca, queimado de sol, seu nariz adunco de ave de rapina, a
concentração carrancuda de quem está disposto a remover com o ombro qualquer
obstáculo que o separe do Bem, ou do Mal, tanto faz.
Lyndon Baines Johnson ficou famoso, entre muitas outras
coisas, ao ser comparado com Macbeth (que também sucedeu a um rei assassinado) na
peça MacBird (1966) de Barbara
Garson, um grande sucesso alternativo daquela década feroz.
A peça brinca com o apelido familiar, “Lady Bird”, dado à
esposa de Johnson, reforçado pela coincidência entre as iniciais dela e as do
marido (as duas filhas do casal, aliás, se chamaram Lynda Bird e Lucy Baines).
Johnson era um caipira engravatado. Apreciava
demonstrações rudes e joviais de camaradagem sem mimimi. Em janeiro de 1964 ele
convidou à Casa Branca um grupo de jornalistas para almoçar. Antes do almoço,
fez todo mundo, a começar por ele mesmo, tirar toda a roupa e tibungar nu na
piscina da Casa Branca. Ficaram todos durante uma meia hora, “em trajes de
Adão”, contando anedotas e tomando uísque.
No ano seguinte Bob Dylan gravou a canção “It’s Alright,
Ma”, com o famoso verso de que “mesmo o Presidente dos Estados Unidos tem que
ficar nu”.
Uma parte considerável de qualquer eleitorado vê com
alívio certas atitudes até grosseiras da parte de seus líderes, porque se
identifica com elas, porque também faz aquilo em seu dia-a-dia, e tem a
impressão, nem sempre verdadeira, de que “agora sim, não está vendo a
encenação, está vendo as coisas como elas são na realidade”. Numa política toda
melíflua, cheia de picaretas engravatados e de cabelo lambido falando em
família e valores, até um peido diante das câmeras passa por espontaneidade e
espírito sincero.
Qualquer democracia baseada no voto popular mostra essa tensão
permanente (e flutuante) entre os kennedys e os johnsons, os cavalheiros e os
cavaleiros, os sofisticados e os grossos, os de sangue azul e os “daquilo
roxo”.
De um lado o arquétipo do líder fino, educado mas viril, atento
às minúcias da etiqueta e à liturgia do cargo. Revelam que “têm berço”, “são
preparados”, manejam com desenvoltura e cordialidade o verniz verbal da diplomacia.
Conseguem manter, sem muita tensão, a postura serena e resguardada de quem
aparenta espontaneidade mas está sempre atento para não ser pêgo sequer num deslize
gramatical.
No lado oposto estão os que “têm apelo popular”, são
“gente como a gente”, são expansivos, espaçosos, falastrões. Metem os pés pelas
mãos, mas dão uma gargalhada e fica tudo por isso mesmo. São vistos como alguém
“sem papas na língua”, “sem rabo preso”. Têm suas próprias regras de figurino e
de culinária, e a toda hora deixam alguém chocado ou perplexo. Desobedecem às
formalidades, aos rituais, aos rapapés. Sugerem (com ou sem sutileza) que ser
diplomático é ser hipócrita, que cultivar uma boa imagem é mentir ao público; e
esse público específico respira com alívio discreto: “ele é sincero, ele não
tem nada a esconder, ele diz o que pensa e faz o que diz”.
Com diz outra canção gravada por Dylan (em Self Portrait: “Take me as I am, or let
me go.”)
Nada disso – é preciso lembrar – garante sucesso nem
fracasso; está entrançado com outros fatores pessoais e coletivos. Nada disso,
também, tem a ver com “esquerda” e “direita” tradicionais. São Arquétipos do Inconsciente
Eleitoral, e muitas vezes uma coligação deixa de lançar um candidato mais
competente para lançar um “intuitivo” que faz apelo a essa dimensão
pré-consciente.
Um indivíduo rude não chega ao Poder da noite para o dia,
a não ser em casos muito raros. Ele vai sendo lapidado ao longo do caminho,
recebe um banho de loja, um verniz de civilização, um curso da Socila para não
pagar muito mico diante dos outros eleitores, os que praticam essas cerimoniazinhas
desde os dez anos. Isto lhe dá dois kits de recursos: ser o rei ou o bufão,
obedecer aos protocolos ou arrotar diante da câmera e dizer “desculpe”.
Tudo é imagem, tudo é encenação; até o que é mesmo
espontâneo tem que passar por uma brecha previamente autorizada. Como dizia
Nelson Rodrigues, “o dinheiro compra tudo, até amor sincero”. Depois que Tarzan
aprende a usar terno, ele se instaura na dualidade permanente de não ser
totalmente lorde nem totalmente selvagem. Jorge Luís Borges conta (“História do
Guerreiro e da Cativa”) sobre uma mulher do lado inglês de sua família, que foi
raptada pelos índios do pampa, criada entre eles, e depois de muitos anos
resgatada de volta à civilização. Um dia, vai viajando toda britânica pelo
campo e vê uma ovelha sendo degolada: de um salto corre até lá, e bebe as
golfadas de sangue.
A espontaneidade impensada é sempre perigosa. Melhor a
espontaneidade lapidada por um redator, um fonoaudiólogo, um técnico em
expressão corporal; só assim o político consegue fingir que é ardor o ardor que
deveras sente.
O embaixador Assis Chateaubriand recebeu como assessor um
jovem diplomata do Itamaraty; um rapaz de berço. Arrumando às pressas a própria
bagagem no quarto do hotel, disse ao rapaz que guardasse as cuecas sujas em
separado. “ – Dr. Assis, e como vou saber as que estão sujas? – Ora, meu filho...
Cheira.” Essa nonchalance não está
distante da descontração com que Lyndon Johnson reunia o gabinete dentro do WC,
enquanto ele, sentado no vaso, arriava um barro.
Linguagem chocante, posturas chocantes, fazem parte do
repertório de intimidades com que essas figuras parecem tocar de leve com o
cotovelo nas costelas do eleitor e dizer: “Tá vendo? Eu sou como vocês. Eu
também faço assim.” E receber de volta:
“Então você me representa”.