terça-feira, 6 de setembro de 2011

2654) A Razão Cruel (6.9.2011)




(Goya, Que valor!)

A Razão Cruel, tão na moda, pode ser subdividida num feixe de quase sinônimos: egoísmo, insensibilidade, pragmatismo egocêntrico, auto-interesse, isolacionismo, preconceitos, etc.

Ela nos diz, com variados discursos e argumentos, que preocupar-se com a sorte dos outros (com a fome dos outros, a doença dos outros, a guerra dos outros...) só faz a gente perder tempo. Cada um deve cuidar de si. O mundo é uma corrida, ganha quem chega primeiro. E assim por diante.

Fico tentado a dizer que é a Razão fundadora do Capitalismo, sistema com o qual vivo num perrengue que não tem fim; e o Capitalismo, afinal, descreve o mundo como uma livre concorrência, um cada-um-por-si-e-o-governo-atrapalhando-todos.

A verdade, porém, é que a coisa está presente também em todos os sistemas que já presenciamos. A Razão Cruel é um individualismo inato do bicho humano. O Eu acima de tudo. A sobrevivência, alimentação, reprodução, conforto, luxo e regabofes do Eu acima de tudo. O resto que se explôda.

“Farinha pouca? Meu pirão primeiro!”. Parece que é um provérbio baiano, ou pelo menos foi numa canção de um baiano (Caetano, “Eles”) que ouvi pela primeira vez esta fórmula exemplar.

Régis Frota me ensinou uma versão do Ceará, muito repetida em sua proliferante família sobralense: “Quanto menos somos, melhor passamos”.

Os cantadores têm um mote-de-uma-linha que serve para muitos tipos de glosa: “Faz pena, mas é o jeito”, idéia que expressa uma certa compunção (fingida ou sincera) de quem vai tomar providências em seu benefício às custas de terceiros.

Uma fórmula mais rude e impiedosa é o nosso popular “quem fôr fraco que se quebre” (ou “quem for podre...”, “quem for pobre...”, conforme o caso), dita, é claro, por alguém que já encontrou seu jeito de não se quebrar.

Em outra canção tropicalista, o “Mamãe Coragem” de Caetano & Torquato Neto, vem essa fórmula de preciosa ambiguidade: “Eu posso, eu quero, eu quis, eu fiz... Mamãe, seja feliz”. É a frase do filho adulto que vai embora de casa “correr mundo, correr perigo” e avisa à Mama que se conforme.

E que frase perfeita, que cadência impiedosa de sílabas caindo como marteladas, pregando os pregos de um caixão! Todo jovem é impiedoso quando se trata de quebrar a casca do ovo e sair voando. Não posso censurar o poeta por um verso que em tantos momentos da vida cantarolei e me acalentou como se tivéssemos sido feitos um para o outro. Mas do ponto de vista do coração materno, minha gente, é uma expressão límpida da Razão Cruel, da que diz: “Eu tenho mais o que fazer, te vira, corre atrás do teu prejuízo, vou cuidar é de mim, sai da frente, não me atrapalha, problema teu”.






2653) A Segunda Idéia (4.9.2011)





Fernando Pessoa talvez tenha pensado em escrever algo como:

O poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a alegria que sente.

Mas achou essa primeira idéia boba, e continuou pensando. Achou uma segunda idéia que ficou muito melhor, e tornou o verso famoso. 

O primeiro impulso criador na arte é o impulso de fazer alguma coisa parecida com algo que vimos e gostamos, é o impulso de quem pensa: “Eu também quero fazer isso”. E quando fazemos, acabamos fazendo um isso parecidíssimo com o isso original, o que nos emocionou. Toda arte começa como imitação. 

E é uma imitação tão pura, tão inocente, tão destituída de maus sentimentos que se nos disserem “Você está escrevendo igualzinho a Marcel Proust!”, responderemos com fervor: “É mesmo?! Obrigado, obrigado!”.

Não custa nada ficar olhando aquilo que acabamos de escrever e pensar: “Muito bem, esta é a primeira idéia que tive, quando estava com a obra ou o estilo de Fulano ocupando minha cabeça. Vou esquecer Fulano agora, e pensar em mim. O que posso colocar de meu nessa frase, nesse verso, no enredo dessa história? Onde posso mexer para que ela se torne algo completamente diferente, e melhor?”.

Existe um ramo da crítica literária que examina os manuscritos originais dos textos, tentando ler tudo aquilo que o autor riscou, borrou, cancelou. 

São as primeiras idéias. Ele escreveu aquilo achando que estava arrasando. Depois releu e percebeu que ainda estava meio fraquinho. Riscou e escreveu por cima outra coisa. 

Sempre que examinei textos dessa forma cheguei à conclusão de que a segunda idéia é invariavelmente melhor do que a primeira. Basta comparar (por exemplo) os sonetos de Augusto dos Anjos conforme foram publicados nos jornais, e depois como foram publicados no Eu. Sempre há uma mudança de algumas palavras. E essas mudanças são sempre para melhor, e isto nada tem a ver com o fato de estarmos acostumados com a versão oficial do poema. A primeira idéia é sempre mais fraquinha, mais frouxa, mais clichê.

Graciliano Ramos ia dar ao livro Vidas Secas o título de “A Vida Cheia de Penas”. Felizmente o arcanjo Gabriel, ou outra autoridade do mesmo escalão, o visitou antes do manuscrito ir para a gráfica e ele teve uma segunda idéia, não é mesmo? 

Reza a lenda que o musical Oklahoma!, um dos grandes sucessos da Broadway em todos os tempos, estava pronto para estrear quando alguém teve a idéia de adicionar o ponto de exclamação depois da palavra-título; dezenas de milhares de cartazes foram reimpressos com este pequeno detalhe. 

Não sei se isto aumentou a bilheteria, mas mostra que sempre há tempo para dar uma injeçãozinha numa idéia, um “diferencial” como diz o pessoal da publicidade. 

A publicidade, aliás, é uma área que chega a exagerar, porque muitas vezes a galera vira noites em claro diante da 27ª. idéia, enquanto o Diretor de Criação incentiva: “Vamos lá, pessoal... Deve haver alguma idéia ainda melhor!"