sexta-feira, 6 de agosto de 2021

4731) José Ramos Tinhorão, 1928-2021 (6.8.2021)




Um amigo mais velho me disse, décadas atrás, que para marcar presença nos meios culturais brasileiros, para tornar-se conhecido e respeitado, era preciso polemizar, atacar pessoas (atacar suas idéias, claro), inventar disputas. “Por que?”, perguntei. E a resposta: “Na cultura brasileira, pelas nossas características históricas e sociais, há sempre uma briga de muita gente por pouco espaço. Em situações assim não prevalece a cooperação, e sim a competição. Ter inimigos é tão importante quanto ter amigos, desde que esses inimigos sejam também afeitos à polêmica. Essas pessoas falarão de nós com muito mais assiduidade e mais veemência do que nossos próprios amigos e seguidores”.
 
Não sei se a teoria procede; mas muita gente parece se comportar assim. “Falem bem ou mal, mas falem de mim”, já cantava Erasmo Carlos, que nem é tão polemista assim, é só um provocador bem humorado.
 
Erasmo: “Eu Não Me Importo”
 
Foi-se agora, aos 92 anos, um dos personagens mais polêmicos da cultura musical brasileira. José Ramos Tinhorão virou, para muita gente, o sinônimo de sujeito reacionário, quadrado, careta, inimigo da modernidade. Em muitos círculos onde convivi ao longo da vida, elogiá-lo era receber uma saraivada de gozações, quando não de provocações furibundas. Gostar dele era quase como gostar de Gustavo Corção.
 
E de fato, minhas divergências como os escritos de Tinhorão eram muitas. O primeiro arrepio de horror me percorreu a espinha quando o vi, num jornal carioca ou paulista, comentando algum disco recém-lançado por João Bosco. O autor de “Agnus Sei” estava então no movimento ascendente de sua primeira fase, em que cada disco era ainda melhor do que o anterior. Era o que a gente em Campina chamava de “fase trezeana” dele (Galos de Briga, Caça à Raposa, etc.).
 
Pois Tinhorão tinha o desplante de elogiar as letras de Aldir Blanc (também uma unanimidade entre nós) mas dizia que as músicas de João Bosco estavam erradas, eram malfeitas, estragavam as letras... Sei lá o que ele dizia. Eu jogava o jornal para longe, indignado. E de fato nunca cheguei a entender por completo.
 
Rapidamente me dei conta de que Tinhorão militava nas fileiras (a metáfora é proposital) dos defensores da música brasileira pura, sem influência do jazz, do rock, etc. Mas... e João Bosco? Era roqueiro, por acaso? Eu via em João (e continuo a ver, até hoje) a destilação pura, mas personalíssima, dos batuques afro, dos sambas urbanos, dos boleros luz-vermelha, das toadas dos Gerais...
 
Parece que aos poucos os próprios “perseguidos” por Tinhorão foram se acostumando ao jeito ranheta dele, não por gostarem de quem é ranheta, mas por reconhecerem o trabalho gigantesco e único que ele fez a vida toda pela história da música popular brasileira.
 
Aldir Blanc, citado numa excelente matéria de Fábio Victor sobre Tinhorão na Folha de São Paulo (14-2-2019), fez comentários bem humorados a respeito dele. Aldir alude ao fato de que “tinhorão” é uma planta venenosa, e de ter citado o nome do crítico num verso de “Querelas do Brasil” (“tinhorão, urutu, sucuri”):
 
"Acho que dei duas solas no Tinhorão, uma na música citada, outra em texto para o 'Pasquim', mas quero deixar muito claro que Tinhorão é sinônimo de polêmica enriquecedora e que sua obra crítica e histórica engrandecem nossa cultura. Eu não só respeito o Tinhorão. Também o admiro muito, graças ao meu amigo Nei Lopes, que me tirou de um antagonismo que não afeta o Tinhorão mas que me diminuiria. Mando de público um abraço agradecido para minha 'sucuri' favorita"
 
Folheando os livros de Tinhorão que fui encontrando por acaso nos sebos, e depois levando-os para casa, me dei conta de que ele era de fato uma pessoa única (mesmo que implicante), fazendo um trabalho raro, que poucos se dispõem a fazer. A busca, leitura e anotação paciente de fontes primárias, a escuta de milhares de discos com som precário, a comparação de datas, de nomes, o rastreamento de algo tão impalpável quanto semelhanças melódicas, influências rítmicas, inovações harmônicas, parentescos vocais.
 
Pesquisar literatura é mamão-com-açúcar, comparado com pesquisar música popular e cultura oral.



Quem, se não Tinhorão, poderia produzir uma obra como A Música Popular no Romance Brasileiro, em 3 volumes, onde ele sai pinçando em nossa literatura todas as referências a canções, toadas, versos, serestas, capadócios, violões, repentes, batuques?  Foi graças a ele que cheguei a Dona Guidinha do Poço (1892), de Oliveira Paiva, que tem trechos brilhantes de reconstituição dos folguedos sertanejos do Ceará no século 19, com repentistas improvisando versos em público. Quando a cantoria de pé-de-parede ainda nem existia.
 
Em 1989 viajei a Lisboa para receber o Prêmio Caminho de Ficção Científica. A Editorial Caminho, que patrocina o prêmio, é a editora que lançou José Saramago. Chegando lá, passei mais de uma tarde conversando com os editores Belmiro Guimarães e Zeferino Costa. E eles me mostravam os livros de Tinhorão que a Caminho estava lançando em Portugal, com elogios rasgados da crítica e dos leitores.
 
Me lembro de folhear com o polegar o exemplar maciço de Os Negros em Portugal: uma Presença Silenciosa (1988), e tentar explicar a Belmiro por que motivo Tinhorão era tão criticado no Brasil.
 
– Belmiro, Tinhorão é muito conservador para o gosto dos brasileiros da minha geração. Ele não gosta de jazz e de rock, de música norte-americana. E mais: desdenha a Bossa Nova, o Tropicalismo, toda a música que nós ouvimos e admiramos.
 
– E o que tem?! – redarguia ele. – Que diferença faz o gostar ou não, disto ou daquilo? Não veem o trabalho gigantesco que esse homem vive a fazer por si só?!
 
Não veem; não viam, não víamos. Porque ele não gostava de rock. Creio que existe em todas essas “críticas de opinião”, entre nós, uma insegurança básica. Quando alguém que é famoso ou conceituado discorda de uma opinião nossa, deixa de ser um possível avalizador de nossa opinião (que geralmente é intuitiva, afetiva, pouco fundamentada) e transforma-se num possível desmascarador de nossa possível ignorância. Um adversário, portanto.
 
Encontrei Tinhorão pessoalmente apenas uma vez, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1990. Estávamos ambos no estande das editoras portuguesas na Bienal, eu para autografar A Espinha Dorsal da Memória, ele com um de seus títulos pela Caminho, talvez o mesmo que eu tinha manuseado em Lisboa no ano anterior
 
Apresentamo-nos, e sentamos lado a lado na mesa, canetas a postos, à espera dos leitores. Começamos a conversar. Curiosamente, quase não falamos em música. Falamos de literatura, das diferenças entre Brasil e Portugal, dos amigos em comum. A certa altura ele pediu para ver meu livro. Expliquei a ele que era pesquisador também, e que vivia rastreando a ficção científica no Brasil. Ele por acaso conheceria algum livro do gênero, no Brasil do século 19?...
 
– Como não? – disse ele. – A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, uma escritora cearense obscura, no fim do século.
 
Bingo! Batia com uma dica que já me havia sido dada por Carlos Emílio Corrêa Lima, e isto resultou num artigo que publiquei sobre o livro no fanzine Somnium, em 1993.
 
Ficamos por ali, por umas três horas. Leitores vinham, olhavam para a cara da gente, e iam embora, como em toda Bienal. Ele não vendeu nenhum livro, a tarde inteira. Eu vendi um – para a filha dele, que veio cumprimentá-lo, e que ele convenceu a comprar um exemplar de A Espinha Dorsal da Memória.