quinta-feira, 31 de outubro de 2019

4518) Carl Jung e Philip K. Dick (31.10.2019)




Durante uma fase crucial de sua vida, o psicólogo Carl G. Jung redigiu uma de suas obras mais intrigantes e menos conhecidas, onde ele próprio afirmou ter penetrado em regiões mentais desconhecidas e perigosas. Esse material só veio a ser publicado muitos anos depois de sua morte, sob o título de O Livro Vermelho (“The Red Book”).
A obra abarca “experiências imaginativas entre 1913 e 1916”, e os manuscritos são datados entre 1914-15 e 1917. Jung estava em plena maturidade, em torno dos 40 anos. Foi uma fase tensa de sua vida, seguindo-se ao rompimento de sua amizade com Sigmund Freud a partir de 1913, e logo em seguida o início da II Guerra Mundial.


(do "Red Book")

Jung afirma que nesse período teve uma série de visões e de alucinações controladas, em que ele se deparava com pessoas ou figuras arquetípicas, e travava longos diálogos que copiava depois em cadernos, chamados “The Black Books” pela sua encadernação preta.

Algum tempo depois, ele começou a passar a limpo esses textos para “The Red Book”, um volume de tamanho grande, encadernado em couro vermelho. Nessa páginas, de um papel especial, ele usava uma variedade de canetas, pincéis, e tintas, produzindo o equivalente aos manuscritos medievais com iluminuras. Jung tinha um talento apreciável para a caligrafia e a ilustração.


(do "Red Book")

O próprio Jung narra esse longo processo, com riqueza de detalhes e de exemplos, no seu livro autobiográfico Memórias, Sonhos e Reflexões, organizado por Aniela Jaffé, no capítulo “Confronto com o Inconsciente”.

Diz ele, a certa altura:

Foi no ano de 1913 que decidi tentar o passo decisivo – no dia 12 de dezembro. Sentado em meu escritório, considerei mais uma vez os temores que sentia, depois me abandonei à queda. O solo pareceu ceder a meus pés e fui como que precipitado numa profundidade obscura. Não pude evitar um sentimento de pânico. Mas, de repente, sem que ainda tivesse atingido uma grande profundidade, encontrei-me – com grande alívio – de pé, numa massa mole e viscosa. A escuridão era quase total; pouco a pouco meus olhos se habituaram a ela, que parecia um crepúsculo sombrio. Diante de mim estava a entrada de uma caverna obscura: um anão ali permanecia de pé. Parecia feito de couro, como se estivesse mumificado.
(Memórias, Sonhos, Reflexões, Nova Fronteira, 1978, trad. Dora Ferreira da Silva)

Conforme dizem Lance S. Owens e Stephan A. Hoeller, na Encyclopedia of Psychology and Religion, Jung percebeu que “sua atividade imaginativa focalizada podia evocar cenas visionárias autônomas, além de personagens e troca de diálogos”.


(do "Red Book")

De acordo com o Dr. Sonu Shamdasani, que supervisionou a edição recente de The Red Book, Jung empregou o processo de, evocando uma fantasia, plenamente desperto, passar a tomar parte nela, como se participasse de um drama. “Essas fantasias podem ser compreendidas como um tipo de pensamento dramatizado em forma de imagens.”

Me perdoem a informalidade, mas creio que o dr. Jung estava descobrindo um método de projeção mental que os ficcionistas em geral (romancistas, dramaturgos, roteiristas) põem em prática todo dia das 9 às 17, com pausa para o almoço. Para um cientista de um século atrás, todo cuidado era pouco ao contaminar uma atividade tão objetiva quanto a Ciência com suas fantasias subjetivas; mas em suma, era isto que Jung estava fazendo. Estava fazendo literatura.


(do "Red Book")

No extremo oposto disto (ou seja, quase se tocando) temos Philip K. Dick. Ele teve uma série de crises psicóticas entre fevereiro e março de 1974 (que em seus escritos ele chama de “2-3-74”) e dedicou os anos seguintes de sua vida a elaborar uma obra gigantesca a que chamou Exegesis, um texto com longas elucubrações religiosas e filosóficas, onde figuram inclusive diálogos com Deus.


(da "Exegesis")

Sobre a "Exegesis":
http://zebrapedia.psu.edu/#!/

Dick acreditava que estava de fato conversando com Deus? Não importa. Para um ficcionista profissional, era essa a forma mais espontânea e mais fluente de pensar. Ele estava praticando o que já fazia há trinta anos. Já o cientista Jung estava descobrindo um território novo, o território onde ele se sentia liberado, autorizado a inventar coisas que sabia que não existiam.

Jay Kinney, editor da revista Gnosis, de San Francisco, comenta a obra de P. K. Dick à luz das numerosas (alegadas) “revelações místicas” de figuras históricas que vão do renascentista John Dee à “besta do Apocalipse” Aleister Crowley e ao guru lisérgico Timothy Leary, antes de estabelecer um paralelo entre Jung e Dick.


(da "Exegesis")

Alguém pode torcer o nariz diante dessa comparação com o autor de Do Androids Dream of Electric Sheep?, mas o fato é que Dick era um sujeito de muita erudição, com vasta leitura de psicologia, filosofia e da cultura oriental, o que transparece o tempo inteiro em suas narrativas de FC sobre conspirações interplanetárias e universos paralelos.

Jung, psicólogo clínico, lidava o tempo inteiro com pessoas à beira da loucura, e tinha o dever profissional e pessoal de servir-lhes de guia, ou de farol, ou de qualquer outra metáfora para o papel de quem, conversando com uma pessoa transtornada, tenta dizer-lhe: “Continue, me explique o que está vendo, fique tranquilo, eu estou aqui”.


(do "Red Book")

Dick pertencia à contracultura californiana dos anos 1950-60, experimentou drogas até não poder mais (sua droga preferida eram os comprimidos farmacêuticos, em complexas combinações e enorme quantidade). Era ao mesmo tempo o doido que delira e o escritor que transforma o delírio em histórias de pulp fiction para pagar os boletos.

Jay Kinney comenta o caso famoso de um esquizofrênico, “Albert W.”, examinado (em The Exploration of the Inner World) pelo psicólogo Anton Boisen, e diz:

Em sua discussão de Albert W., Boisen nota o paralelo entre seu paciente e George Fox, o visionário fundador dos Quakers, e acaba concluindo que “não existe uma linha de demarcação entre as experiências religiosas válidas e as condições e fenômenos anormais que são, para o alienista, provas de insanidade.” Para Boisen, o que em última análise distingue a loucura do misticismo é a direção em que vai a vida do indivíduo afetado. Para o insano, a experiência resulta numa desintegração ainda mais acentuada; para o místico, ela conduz à unificação íntima e à cura.
(“Introdução”, In Pursuit of Valis: Selections from the Exegesis, Underwood-Miller, 1991, trad. BT)

A estes dois tipos, o Místico e o Louco, eu somaria um terceiro, o Escritor. Não todos os escritores, certamente, mas um tipo de escritor que produz numa espécie de “estado alterado de consciência”, que envolve visões, alucinações controladas, escutamento de vozes, convulsões emocionais intensas durante o ato da escrita.


(a HQ de Robert Crumb sobre as experiências de Dick)

Philip K. Dick conhecia bem a obra de Jung (a primeira tradução em inglês de Memórias... é de 1963). Além disso, tinha um profundo interesse por doenças mentais como modos alternativos de percepção da realidade, ou pelo menos da produção de uma interface possível entre o caos mental interno (de um psicótico, p. ex.) e o turbilhão de estímulos sensoriais fornecido pelo mundo externo.

Tanto Jung quanto Dick foram indivíduos corajosos que não hesitaram em abandonar a camisa-de-força da “sanidade mental” e cultivar uma loucura controlada que lhes serviu de energia criativa.

Jung escapou da loucura pela sua sólida formação científica e também (diz ele) porque o trabalho rotineiro e a vida harmoniosa em família lhe deram uma âncora, um fio de retorno à realidade mais concreta e mais consensual.

Dick provavelmente não escapou por inteiro (seus acessos de paranóia, seus casamentos desfeitos, suas brigas com os amigos atestam o tumulto pessoal em que sempre viveu), mas o ato da escrita o redimiu, e lhe deu um mínimo de controle sobre a ruptura da realidade que experimentou a partir de fevereiro e março de 1974 até sua morte em 1982.





segunda-feira, 28 de outubro de 2019

4517) Cantigas de escárnio e de maldizer (28.10.2019)




No meu tempo de estudante secundarista, a cadeira de Português examinava várias formas antigas de literatura portuguesa, nomes e títulos que eu decorava de má vontade – pra que diabo eu tinha de estudar Cancioneiro d’Ajuda, Gil Vicente, Paio Soares de Taveirós?... Eu queria que o professor falasse de Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Cecília Meireles, Dalton Trevisan, que eu estava descobrindo justo naquela época.

Não foi tempo perdido porque muita coisa me ficou. Como o gênero poético intitulado “Cantigas de Escárnio e de Maldizer”, que já na época eu achava mais interessante do que as “Cantigas de Amor e de Amigo”, onde tudo era muito previsível, muito bonitinho e me cheirava a mera conversa-pra-levar-pra-cama.

Pelo que me lembro (e fui checar) as cantigas de escárnio eram meio na base da ironia, podiam ser cantadas na frente do “alvo” porque permitiam duas interpretações. Já as de maldizer eram cantigas de insulto mesmo, de passar-o-rodo.

Quando mergulhei de ponta-cabeça no estudo da Cantoria de Viola, reencontrei esse modo de versar nos desafios acalorados onde estrofes inteiras, páginas inteiras, torrencialmente, martelam sem descanso uma metralha de invectivas, todas centradas no tema Você Não Presta.


Como cita Luís da Câmara Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores, este verso de Daniel Ribeiro cantando com Manuel Ninô:

Capanga do beiço arrebitado,
fateiro, bode da mão torta,
maldizente, machado que não corta,
preguiçoso, cachorro arrepiado;
negligente, luzório, acanalhado,
lambareiro, frei-sabugo, pela-bucho,
língua preta, bigode de capucho,
barulhento, sufocante e abafado,
sem vexame, pateta debochado,
sapo-sunga, faminto, rosto murcho.

Em termos de maldizer, a Cantoria de Viola não fica atrás da lírica trovadoresca, e criou estilos específicos de maledicência rimada. Sem perder de vista a ironia presente nas “canções de escárnio”, com dribles retóricos que permitiam ao poeta insultar o contendor através de si mesmo.


O livro de Mário Lago Chico Nunes das Alagoas,  sobre o grande glosador alagoano, cita um desafio em que o poeta Pedro Basílio teria dito:

Sou rico, sou potentado,
sou um poeta de direito,
sou um homem de respeito,
sempre fui considerado
como um cantador honrado
desde o norte até o sul.
Até o barão de Traipu
me daria confiança.
Vivo cheio de esperança...
Eu sou melhor do que tu.

E o “Rouxinol da Palmeira”, conhecido pelo seu temperamento sarcástico e irreverente, devolveu a glosa:

Sou ladrão de mandioca
sou a lama de um barreiro
sou um tipo cachaceiro
sou embuá, sou minhoca
sou como sapo na toca
sou baba de cururu
sou poleiro de urubu
sou chocalho sem badalo
sou um ladrão de cavalo...
mas sou melhor do que tu.

Insultar é uma arte refinada, garantia Jorge Luís Borges em seu ensaio (pequenino, mas rico de exemplos) “Arte de injuriar” (em História da Etermidade, 1955). E para isto tanto vale o sarcasmo educadíssimo quanto a ofensa brutal em plena cara.


O que me traz à mente o forró clássico de João Gonçalves, “Resposta”, segundo dizem dedicado aos críticos musicais cariocas que zombaram dos seus elepês:

Bicho dos quadris de trinchete
banguelo da venta de bolão
um dia tu entra no cacete
pra não ser metido a gostosão...
Bicho do sangue de brocotó
tu tivesse a ousadia de criticar meu forró...
Disse que eu sou mau compositor
que bom mesmo é discoteque que xote não tem valor...
Vai tomar banho na cacimba!
Quando tu levanta os braços
ninguém aguenta a catinga...

João Gonçalves, chamado O Rei Do Duplo Sentido, é bem capaz de falar num sentido único, quando não quer deixar dúvidas.

Chamar na chincha os detratores e os críticos é um esporte preferencial de muitos compositores, e nem Bob Dylan resistiu a essa tentação. “Positively 4th Street” (1965), uma das canções mais virulentas de seu repertório, é um acerto de contas com muitos inimigos que fez na sua subida para o sucesso:


            Você tem muita cara-de-pau em dizer que é meu amigo:
quando eu estava por baixo, ouvi suas risadinhas.
É muita cara-de-pau dizer que quer me dar a mão:
você só quer estar do lado que está por cima. (...)
Eu sei por que motivo você fala de mim pelas costas:
eu já andei com essa turma com quem você anda. (...)
Eu queria que por um instante você fosse eu,
só para sentir que merda é olhar pra você.

E por aí vai. Dylan chegaria a suplantar essa música como “Idiot Wind” (1975):

É um vento idiota que sopra, sempre que você abre a boca,
você é uma idiota, baby,
é um prodígio que ainda saiba como respirar.


Uma característica da cantiga de maldizer é que ela é sempre dirigida a um “tu” ou “você”. Não é alguém dizendo à distância “Fulano não presta”: é dizendo, de dedo na cara, “você não presta”.

Como John Lennon com seu eterno parceiro/adversário Paul McCartney, em “How do you sleep” (1971):

Você vive rodeado de caretas
que lhe consideram um rei,
e dá um pulo quando sua mulher
diz qualquer coisa.
Como é que você consegue dormir de noite?!


John e Paul dariam entrevistas depois minimizando essas vergastadas, mas o fato é que a pressão de compor, a pressão de gravar, a necessidade de descarregar as tensões pessoais, tudo isso leva muitos compositores a criarem essas verdadeiras bombas atômicas.

E nem precisa ser algo dirigido a uma pessoa específica. Basta se referir a um tipo de pessoa, infelizmente tão comum, aquele que Gilberto Gil chamou de “Pessoa Nefasta”, num dos seus melhores discos (Raça Humana, 1984):

Tu, pessoa nefasta,
vê se afasta teu mal
teu astral que se arrasta tão baixo no chão.
Tu, pessoa nefasta
tens a aura da besta
essa alma bissexta, essa cara de cão!
Reza! Chama pelo teu guia!  (...)
Pede que te façam propícia
que retirem a cobiça, a preguiça, a malícia
a polícia de cima de ti...
Basta ver-te em teu mundo interno
pra sacar teu inferno: teu inferno é aqui! (...)

Não é a mera cantiga de maldizer resmungada pelas costas. É uma surra terapêutica, sem pretensão de superioridade por parte de quem fala, apenas a descrição sem meias palavras, sem rodeios, sem anestesia.







sexta-feira, 25 de outubro de 2019

4516) "W, ou a Memória da Infância" (25.10.2019)




Este livro de Georges Perec (publicado em 1975) é uma mistura de memorialismo, romance de aventuras e distopia política.

Perec declarou certa vez o seu propósito de nunca escrever dois livros do mesmo tipo (ou “pertencentes ao mesmo gênero” – não lembro se ele chegou a verbalizar assim). Pelo que sei, conseguiu. Até sua morte, em 1982, cada obra sua tem perfil único, feição única.

O romance de Aventura Marítima de W começa na primeira pessoa, contado por um sujeito que faz um vago resumo de si mesmo, afirma que desertou do Exército e recebeu papéis falsos com o nome de “Gaspard Winckler”. Com isso foi morar na Alemanha onde agora, modestamente, obscuramente, trabalha numa oficina mecânica.

Um homem misterioso faz contato com ele. Diz saber que ele usa documentos falsos, e como os obteve. Explica que o verdadeiro “Gaspard Winckler” é um menino surdo-mudo de oito anos, filho de uma famosa cantora lírica. A mãe tentou de tudo para quebrar o isolamento do filho, que hoje seria considerado um pouco autista. Numa viagem de barco perto da Terra do Fogo, o barco naufraga, todos morrem – e o menino surdo-mudo desaparece.

O desconhecido incumbe o falso Gaspard Winckler de viajar para lá e encontrar o verdadeiro dono do seu nome.

Neste ponto, a narrativa se interrompe. Há um hiato indicado pelo sinal: 

(...) 

Acontece (em termos retóricos) uma aposiopese, uma interrupção do discurso sem que se conclua a idéia iniciada. O livro anuncia a sua “Segunda Parte”.

E o capítulo seguinte começa:

Lá longe, na outra extremidade do mundo, haveria uma ilha. Ela se chama W.

E tem início a descrição da Distopia Política: uma ilha onde vigora uma civilização masculinista voltada para os esportes e as competições em estilo olímpico. As descrições são minuciosas. Aquele mundo é só dos homens, e para os homens: as mulheres são em número reduzido, vivem presas em gineceus, servem apenas para executar trabalhos domésticos e para serem fecundadas.



Deduzimos que o falso Winckler viajou para o Atlântico Sul para localizar o menino e, de algum modo, foi parar nessa ilha, que fica nas imediações. Mas os capítulos, daí em diante, não são mais narrados por ele, e sim por um observador distanciado, que descreve, explica, afirma, comenta, mas jamais assume um “Eu” pessoal.

A ilha de W tem quatro aldeias que vivem em permanente competição atlética umas com as outras, num sistema complexo de campeonatos e torneios. A princípio temos a impressão de uma cultura saudável, voltada para o lema “mente sadia em corpo são”, mas aos poucos vão sendo descritos os jogos de poder, as imposições ditatoriais, a opressão das mulheres, as catimbas, as violências, as tramoias e as conspirações extra-campo que acabam decidindo os torneios atléticos.

A história que começara como uma romântica e aventurosa narrativa de Julio Verne acaba se transformando num pesadelo onde se mistura o culto ao corpo dos filmes nazistas de Leni Riefenstahl, a opressão kafkeana tipo Na Colônia Penal, e o jogo de controle e aleatoriedade que mergulha numa passividade perplexa as cobaias da “Loteria em Babilônia” de Jorge Luís Borges.

Essas duas narrativas se sucedem, com esse “buraco” bem no meio, quase como se o primeiro narrador tivesse sofrido um trauma que o deixou amnésico, incapaz de lembrar quem era ou o que buscava ali, e podendo apenas descrever o pesadelo olímpico em que acabou mergulhando.

E toda essa narrativa é intercalada pelas memórias intensamente pessoais do autor Georges Perec, sua escassa autobiografia: quem eram os pais, como morreram (o pai lutando pela França na II Guerra, a mãe no campo de Auschwitz), como foi criado pelos tios, onde estudou, com quem brincava, as casas onde morou, as coisas que lhe aconteciam sem que ele, pequeno, as compreendesse de todo.

Os capítulos são alternados: aventura, biografia, aventura, biografia... E também a narrativa pessoal sofre um “buraco” entre a Primeira e a Segunda Parte – justamente no trecho em que Perec, com seis anos, é embarcado às pressas num trem, pela mãe, para a casa de parentes, e nunca mais a vê.

Esse corte simétrico nas duas narrativas assinala a ruptura em ambas. Uma mãe morre. Um menino perde seu “chão”, desaparece. Um adulto vê-se impelido a salvar esse menino, mas o mundo agora virou um pesadelo totalitário.

Podem me chamar de doido, mas eu vejo um paralelo psicológico e estrutural entre essa narrativa e o Ciclo da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.


Ambos os autores tentam resgatar, através de uma narrativa com início aventuroso e excitante, uma infância que foi cortada bruscamente por uma tragédia. Essa narrativa de aventuras, fraturada pela tragédia, não é contada até o fim.

No caso de Ariano, a história de Quaderna, de Sinésio e do mistério da Pedra do Reino tem um “buraco” no centro – até hoje não sabemos direito o que aconteceu entre 1935 (quando a “Estranha Cavalgada” invadiu a vila de Taperoá) e 1938 (quando Quaderna presta seu depoimento ao Juiz Corregedor, narrando os fatos, mas nunca cobrindo todo o período).

As partes publicadas do romance de Ariano (o Romance da Pedra do Reino, sua continuação Ao Sol da Onça Caetana e o folhetim As Infâncias de Quaderna) se esvaem e ficam incompletas, pelo menos na forma com que foram iniciadas. (Tal como a “Aventura Marítima” em Perec.)

A obra romanesca posterior de Ariano é o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores (2017), que ainda não li por inteiro, mas que não é uma retomada dos romances anteriores, tal como no livro de Perec a Segunda Parte não é uma retomada da Primeira. Entre essas duas metades, há um buraco, um vazio, um corte, um trauma.

Como se a aventura romanesca se revelasse, a meio caminho, insuficiente para dar conta de todos os conteúdos traumáticos ainda por despejar. E fosse preciso jogar para o ar tudo que fora escrito e recomeçar de outro ponto, de outra voz, de outro eu, de outra realidade, porque no meio daquela história a ser contada havia um buraco negro sugando para dentro de si toda a energia psíquica que dali se aproximasse.











terça-feira, 22 de outubro de 2019

4515) Calma, é somente um livro (22.10.2019)




As coleções de livros de bolso da Tecnoprint/Edições de Ouro, a partir do final dos anos 1950, trouxeram para o Brasil centenas de títulos de romances curtos da pulp fiction norte-americana e francesa, principalmente. 

Quase toda a Coleção Futurâmica de ficção científica, por exemplo, eram traduções da coleção “Anticipation”, da editora “Fleuve Noir”.  E na coleção Terror apareciam os mesmos autores que a “Angoisse”, da mesma editora francesa.

A pulp fiction que absorvi na pré-adolescência era de segunda mão: eram os escritores franceses que liam e imitavam os norte-americanos.

Eram livros pequenos, texto compacto, traduções de qualidade imprevisível, capas coloridas, e bastante propaganda. Cinquenta anos antes disso, “livro brasileiro” eram aquele tomos encadernados da Garnier. Os de agora tinham capas policromadas e, nas páginas do fim, o inevitável catálogo para futuras encomendas. Aquelas mesmas indicações que os folhetos de cordel trazem, geralmente na quarta capa: endereços dos distribuidores, dos pontos de revenda...

As propagandas eram boas, e com nove ou dez anos eu me entretinha lendo a retórica publicitária da “Seleção Terror”, que anunciava os três primeiros títulos, Drácula (Stoker), Frankenstein (Shelley), e Jack o Estripador” (Gardner F. Fox):

Não deixe de ler estes romances cujos enredos prendem e arrebatam. Páginas cheias de tragédias e mistérios que criam uma atmosfera horripilante. Fortes dramas de horror sem igual!... Os mais espantosos que jamais se têm escrito!... Suplicamos não os ler à noite, em local pouco iluminado e sem alguém perto, pois do contrário... se alguém gritar, será você!

Por que motivo um leitor gritaria de medo ao ler um livro? O medo é uma reação um tanto extrema, mas a pergunta pode ser feita assim: Por que as pessoas se emocionam, chegam a chorar, preocupam-se com o destino de criaturas que não passam de palavras impressas?

Alguns leitores nunca se fazem essa pergunta porque ler e emocionar-se lhes é uma coisa tão natural quanto respirar. Outros nunca a fazem porque acham que a leitura foi inventada para isso mesmo, para distrair as pessoas, e acabou-se o assunto. Mas os escritores e um certo tipo de leitor-crítico têm a obrigação de perguntar (a si mesmos, pelo menos) obviedades como essa.

Quem entra num livro a ponto de “acreditar” nele, acreditar na “realidade dele” durante aqueles minutos, volta para fora do livro com uma percepção melhor da realidade. É uma pessoa que é capaz de fantasiar de forma coerente, seguindo instruções (o texto de um romance é mais ou menos isto: instruções para o leitor fantasiar uma situação).

O livro desenvolve a sua capacidade de se colocar no lugar de outras pessoas, identificar-se temporariamente com elas, não porque elas “sejam de verdade”, mas porque esse processo faz com o intelecto do leitor algo como a ginástica faz com o seu físico.

Já conheci muitas pessoas altamente inteligentes e capazes, mas que não gostavam de ler ficção, achavam perda de tempo ler “histórias que nunca aconteceram, envolvendo gente que nunca existiu”. Em geral eram profissionais bem sucedidos, pessoas focadas, sem tempo para irrelevâncias. Alguns, no entanto, pareciam não compreender que o mundo não é feito de coadjuvantes e extras do seu filme: cada pessoa daqui é um filme para si mesma, tanto quanto ele.

“Calma, é só um livro”, é uma frase que de vez em quando digo para mim mesmo, quando estou tão mergulhado no suspense que a frequência cardíaca começa a se turbulizar. Não precisa ser um suspense hitchcockiano ou kinguiano, algo aterrorizante e macabro. Não, é o suspense da vida real, o mais perigoso de todos.

Lembro de estar lendo o terço final de Tia Júlia e o Escrevinhador de Vargas Llosa, quando o casal vai de vilarejo em vilarejo, correndo contra o relógio, à procura de um juiz que os case e lhes forneça o precioso documento antes que uma catástrofe qualquer aconteça. (Reencontrei há pouco este tema como o objetivo da fuga dos amantes de Mandacaru Vermelho de Nelson Pereira dos Santos.)

Eu levantava os olhos, do texto para a parede, e dizia: “Calma, é só um livro.” Porque pra mim um subgênero do filme de suspense é o Filme de Contratempo: alguém que precisa desesperadamente cumprir uma tarefa, prosaica ou extraordinária, e o Universo inteiro parece estar conspirando contra.

Artistas como Buster Keaton ou Harold Lloyd exploraram isso no tempo do cinema mudo. Comédias modernas como Depois de Horas (“After Hours”, Scorsese) ou O Homem Que Perdeu a Hora (“Clockwise”, C. Morahan, 1986, com John Cleese). Não é um subgênero apegado apenas à comédia. Direcionado para o campo do romance policial ou criminal, foi muito bem cultivado por autores como Fredric Brown ou Cornell Woolrich.  

Se alguém quiser recuar até o Dom Quixote e a Odisséia, fique à vontade.

É só um livro. Os horrores de Lovecraft ou Dean R. Koontz existem, sim, durante o momento da leitura. A mente do leitor decodifica as palavras, concatena as frases, projeta-se em visualizações e encenações íntimas, envivecendo aquilo. As peripécias e os personagens podem não ser reais, mas as reações físicas que eles provocam no leitor o são.

Ler literatura é como jogar um videogame na primeira pessoa, onde, em vez da gente acompanhar o personagem, o personagem somos nós, a câmera, a narração. Mesmo que o livro seja narrado na terceira pessoa, a experiência da leitura e da fantasiação é única, intransferível.

É só um livro, e é interessante como as obras ditas de vanguarda ou experimentais abrem mão disso, desse tipo de manipulação. Há leitores para tudo, até para os experimentalismos cerebrais da OuLiPo; mas por essa mesma razão há leitores também para a boa-e-velha história com personagens “com quem a gente se identifica”.

Ser capaz de ler sem se envolver é considerado às vezes um estágio superior de leitura, um estágio brechtiano, mais sofisticado, que denota mais cultura, mais experiência, critérios mais exigentes. O leitor que se emociona, que se deixa levar, é considerado nesse critério um leitor mais ingênuo, mais bitolado.

Sou capaz de entender esse tipo distanciado de texto, sou capaz de escrevê-lo até. Mas o autor ideal para praticar isso é o que seja capaz de produzir também a identificação emocional do leitor, e saiba refiná-la até um ponto em que ela coexista com a leitura lúcida. 

Assim como o melhor pintor abstrato teria que ser como (por exemplo) Picasso, que começou como um excepcional pintor figurativo, e soube manter nos seus quadros cubistas algumas das técnicas figurativas subjacentes: composição, movimento, relevo, ação corporal, o que garante em qualquer quadro seu a inconfundível presença humana.














sábado, 19 de outubro de 2019

4514) A Canção Fantástica: "Downbound Train" (19.10.2019)




Falamos o tempo todo em “literatura fantástica”, mas é sempre no domínio da prosa: romance, conto, novela. Os temas fantásticos, contudo, estão presentes onde quer que haja a Narrativa, e isso inclui também a poesia. Nem vou falar em outros gêneros. Lembro apenas que na Encyclopedia of Fantasy editada por John Clute o verbete mais longo é o que se refere a “Ópera”, indo da página 709 à página 733.

Uma canção excelente mas pouco comentada do repertório de Chuck Berry é “Downbound Train” gravada em 1955, o ano em que Berry começou a trabalhar com a famosa Chess Records, gravadora que deu um impulso enorme ao blues e ao rock dos anos 1950, e lançada no começo de 1956. A canção era o lado B do compacto que tinha como faixa principal “No Money Down”.

“Downbound Train” é uma daquelas histórias de terror a respeito de um indivíduo bêbado e desordeiro que um dia tem uma visão terrificante dos castigos do inferno, e graças a isso se regenera. Um exemplo conhecido é “Cavaleiros no Céu” (“Ghost Riders in the Sky”, com versão gravada no Brasil por Carlos Gonzaga, Milton Nascimento e outros: “Vaqueiro do Arizona, desordeiro e beberrão... / Seguia em seu cavalo pela noite do sertão... Ipiaê, ipiaô...”

“Downbound Train” é uma variante de um poema anônimo tradicional, “The Hell Bound Train”, e há várias gravações desse material, com mudanças no título, na letra e na melodia, como aliás é típico de todo material que tem origem na cultura oral e anônima, de domínio público.

A gravação de Chuck Berry procura reproduzir o ritmo contínuo e repetitivo de um trem em movimento, efeito que cada artista busca recriar no palco com a instrumentação que dispõe. Guitarra, baixo e percussão criam uma batida hipnótica, constante, muito diferente do rock-and-roll nascente da época em que surgiu.

Muito se fala nas letras modernas e inovadoras de Chuck Berry, com sua crônica social bem humorada e irreverente. Deve-se reconhecer também que sua maneira de tocar guitarra e as “levadas” que ele concebia com seus músicos davam a cada álbum seu uma variedade musical muito superior à de qualquer contemporâneo, e que só os Beatles foram capazes de superar.

A letra é composta de estrofes de quatro versos com aproximadamente doze sílabas, cada quadra rimando AABB. Abaixo, uma tradução aproximada, sem tentar reproduzir a métrica ou as rimas.


O TREM PARA O INFERNO

Um desconhecido estava caído no chão de um bar;
tinha bebido tanto que não aguentava mais.
E assim adormeceu, com a mente atormentada,
e sonhou que viajava num trem para o inferno.

A locomotiva estava coberta de sangue e umidade
e nela ardia uma lâmpada de enxofre;
duendes com pás alimentavam com ossos
a fornalha que rugia com mil gemidos.

A caldeira estava cheia de cerveja até a borda
e o Diabo em pessoa era o maquinista;
os passageiros eram uma multidão misturada
alguns eram forasteiros, outros ele conhecia.

Homens ricos, mendigos esfarrapados,
jovens bonitas, velhas feias como bruxas,
e o trem avançava a toda velocidade
fumaças de enxofre queimavam suas mãos e seus rostos.

Em volta deles se alargavam os campos
e cada vez mais veloz o trem avançava,
e mais alto e mais alto soava o trovão
e os relâmpagos ofuscavam com seu clarão.

E o ar ia ficando cada vez mais quente
até que suas roupas começaram a arder
e por sobre o ruído um grito se ergueu
ha ha, disse o diabo, estamos perto de casa.

Oh, os passageiros gritavam de dor
indo rumo a Satã no seu trem infernal;
e o desconhecido com um grito acordou
com a roupa encharcada, e os cabelos em pé.

Ele ficou de joelhos no chão do bar
e rezou como nunca rezara antes;
e suas preces e juras não foram em vão,
porque nunca mais viajou no trem para o inferno.


Esta é a versão da letra cantada por Chuck Berry, para mim a “original”, por ser a primeira que conheci. O tema do “trem para o inferno” é aberto para mil variantes, sempre com o conceito de um veículo cheio de pessoas aparentemente aleatórias, que entram nele pensando em fazer uma viagem comum, mas no meio do trajeto percebem que estão se encaminhando para um destino sobrenatural.

O filme recente dos Irmãos Coen, A Balada de Buster Scruggs, termina com um episódio que é uma versão sofisticada desse tema: uma diligência onde várias pessoas trocam reflexões sobre a vida e no final chegam num ambiente fantasmagórico.

A letra original da gravação de Chuck Berry:

A gravação de Berry, no disco original da Chess Records:

Uma boa versão da mesma música, com George Thorogood:

No videogame Red Dead Redemption, personagens cantam a letra gravada por Berry, mas com melodia tradicional:

A banda Those Poor Bastards canta aqui a letra cantada por Berry, com outra melodia:

A banda Delta Moon tem também uma versão diferente, com pontos de contato com a original: