domingo, 14 de outubro de 2018

4394) A única família normal é a minha (14.10.2018)







O websaite Metafilter abriu com seus numerosos leitores um questionário interessante, nos seguintes termos: “Quais são os hábitos da sua família que para você eram normais e comuns, e você só percebeu que eram excentricidades quando foi morar fora?”.

As respostas variam muito, e fazem a gente pensar de novo que “ninguém é normal visto de perto” ou que “nenhuma família é normal vista de fora”, e assim por diante.

É bom lembrar que a imensa maioria dessas respostas vem de pessoas nos EUA, e que talvez respostas brasileiras trouxessem uma variedade interessante de hábitos malucos que são só nossos. 

Abaixo, algumas respostas que me chamaram a atenção. Cada parágrafo é de uma pessoa diferente.

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Minha família comia arroz de colher. Ainda hoje afasto os olhos quando vejo alguém comendo arroz com garfo.

Minha mãe ensinou a gente que não se usa uma toalha duas vezes, é um hábito grosseiro. Perdi esse costume depois de adulto, quando fui usar lavanderias pagas. Fico pensando no que era usar três toalhas para um único banho de chuveiro.

Quando saí de casa, as pessoas me olhavam esquisito porque eu comia comida vencida e não me incomodava de cortar partes mofadas ou podres de algo e comer o resto. Meus pais cresceram durante o racionamento de comida da II Guerra, e minha mãe ainda hoje prefere comer o pão “dormido”.

É um pecado grave o fato de nós, filhos, não sermos capazes de impedir nossa mãe de agir assim. Mas ela lava o peixe antes de preparar. Ela lava com detergente.

Quando criança eu não tinha a impressão de viver num lar muito religioso, mas sempre ouvi dizer que nossos amigos de famílias não-cristãs eram gente inferior, que pais que deixavam seus filhos ver filmes proibidos para menores eram imorais, que eu devia lamentar as crianças filhas de pais separados, etc. Eu não tinha noção do que era a vida dos adultos até passar a viver só. A religião deixou de fazer sentido para mim no momento em que ninguém me obrigou mais. E todas aquelas pessoas que eu cresci vendo como imorais, deixaram de parecê-lo.

Em nossa casa, costumávamos ter longas discussões em formas de cartas compridas e formais que eram entregues na mão do destinatário, com seriedade absoluta. Descobri que isso não é um costume universal.

As pessoas da minha família sempre levam um isopor de cerveja quando vão a um velório, e quando as coisas começam a ficar muito emotivas, saem para beber lá fora.

Lá em casa se lava a banheira antes e depois de cada banho, mesmo quando as pessoas tomam banho sucessivamente. Quando falo nisso fora de casa, todo mundo fica chocado. Ao que parece, eles só lavam a banheira uma vez por semana.

Nas velhas fazendas da minha infância, ninguém usava a porta da frente. Todo mundo (com exceção do padre local) entrava direto pela porta da cozinha, que era também o local onde as pessoas passavam 90% do tempo, porque fazia menos frio.

Quando eu era garoto, a família de um amigo meu mantinha toda a mobília da sala de visitas ainda embrulhada em plástico, do jeito que veio da loja, para não se estragar.

Uma coisa da minha família que nunca encontrei em nenhuma outra foi que minha avó e a irmã dela gostavam de cachorros, e todos tinham sempre o mesmo nome. Os cães da minha avó se chamavam Smokey, e os da minha tia-avó eram Duke. Elas tiveram dezenas de cachorros ao longo da vida, e todos sempre tiveram esses mesmos nomes.

Durante anos, na minha infância, tínhamos uma reunião familiar todo domingo. Repassávamos as anotações do domingo anterior, depois cada um de nós dizia uma coisa de que podia se orgulhar da semana que passou, e cada um fazia um elogio a cada membro. Depois encerrávamos cantando uma canção.

Éramos cinco filhos e havia só um banheiro, de modo que não tínhamos o conceito de privacidade. Era muito normal um de nós estar sentado na privada enquanto outro escovava os dentes ou tomava um chuveiro. Acho que somente aos doze anos percebi que as demais pessoas fechavam a porta quando iam ao banheiro.

Quando a gente dizia a mamãe que estava com fome e ainda não era hora do jantar, ela tirava hotdogs do congelador, e a gente comia como se fossem picolés. Depois fiquei sabendo que isso não é a norma.

Quando a gente queria um gole rápido de água, abria a torneira e colocava a boca embaixo. Ainda lembro O HORROR no rosto da minha amiga do colégio quando fiz isso na casa dela.

A gente tinha um piano na sala, junto da porta de entrada. Quando meu pai chegava, tirava as chaves e a carteira do bolso, e punha em cima dele. Depois o piano foi vendido e substituído por um mesa, que todo mundo continuou chamando “o piano”. Quando meus pais se mudaram e levaram a mesa, ela foi parar na sala de jantar da casa nova, e ainda era “o piano”, e meu pai ainda hoje põe as chaves e a carteira em cima dela.

Meu pai era um trabalhador autônomo e tinha o hábito de encerrar o dia de trabalho às 16:00, vir para casa, e todo mundo jantava às 16:30. Quando cresci, fiquei uns dias na casa de alguém e quando deu 18:00 e nada de ninguém pôr a mesa, comecei a pensar: “Esse povo idiota não janta não?!”

Na minha casa não tinha isso de Papai Noel. Eu já era adulto quando percebi que muitas crianças, em algum ponto da vida, acreditam que ele existe, e os pais fazem encenações a sério, neste sentido. Quero dizer, a gente o via nos filmes e na TV, mas sempre achou que era um personagem como os demais.

Na minha família a gente cantava e dançava pela casa com frequência, como se fosse um musical.

Uma amiga minha da faculdade vinha de uma família onde havia o costume de apertar a mão de todas as pessoas dentro do carro, quando se cruzava a divisória entre dois Estados. Imaginem a surpresa dela e o choque das outras pessoas quando ela quis fazer isso em nossa primeira viagem da turma.

Minha família viajava pouco, de modo que eu não tinha a menor noção dos processos envolvidos nisso. Eu já tinha mais de 30 anos quando entendi que a gente podia usar as gavetas e os armários quando se hospedava num hotel.

Minha mãe passava uma hora inteira à noite fazendo suas preces, e ai de quem a interrompesse. Ela sempre tomava um drinque à noite, antes de dormir. Com sete anos de idade eu já sabia preparar uma vodka com suco de laranja, ou um gim com tônica.

Quando tínhamos visitas, minha mãe já estava limpando a casa antes mesmo deles irem embora. As pessoas estavam conversando descontraidamente na sala e ela já estava pegando os copos para lavar (mesmo que elas não tivessem acabado de beber), e passando o aspirador de pó em volta dos pés delas. Quando todo mundo ia embora, a casa já estava limpa e reluzente.

Quando meu marido e o irmão dele eram garotos, toda vez que queriam alguma coisa realmente importante tinham que apresentar uma proposta por escrito.

Meus irmãos e eu tínhamos cores predeterminadas para tudo que era nosso: toalhas, xícaras, escova de dentes, peças de jogos de tabuleiro. Meu primeiro companheiro de quarto na universidade se horrorizou ao saber que eu nunca pude ter uma caneca verde, mesmo sendo minha cor favorita.

Na família do meu marido, todo mundo cresceu acreditando que se não rezassem antes de cada refeição iriam contrair botulismo.

Acho muito estranho quando as pessoas vestem crianças todas de preto quando as levam para um velório ou funeral. As crianças deveriam vestir algo formal, mas não tem que ser tudo preto.

Cresci numa família numerosa, onde em dias de festa (Natal, etc.), depois da ceia todo mundo ia para a cozinha, ajudar a lavar os pratos. Era um momento agradável, de brincadeiras, convivência, ninguém se incomodava. Entendia-se que as pessoas que tinham dado duro para preparar o jantar estavam desobrigadas disto. Tive momentos desconfortáveis na casa dos pais da minha esposa quando tentei ajudar a lavar os pratos, porque lá homens NÃO LAVAM prato nenhum. Eles ficam sentados na cadeira de balanço.


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Tem muito mais coisas, mas cabe ainda um comentário. Muitas vezes uma pessoa toma uma atitude qualquer, e nós interpretamos essa atitude como sendo uma decisão intelectual ou moral dela. Mas pode ser apenas um desses “modos de ser” que assimilamos muito cedo.

No contexto paterno-materno-fraterno, milhares de hábitos e valores se formam sem que nem nos passe pela cabeça questionar aquilo. Afinal, uma criança aprende dezenas de coisas diferentes por dia. Fica tudo internalizado e ninguém questiona mais. A gente aprende um jeito, e em geral morre sem sequer perguntar o “por quê” de ser assim, e não assado.

Algo parecido ocorre com valores, costumes, conceitos e preconceitos. Opiniões políticas, religiosas, informações sobre o mundo e a vida em geral. O que uma criança aprende tem chances de ficar sendo para ela a pura expressão da verdade.

Como dizia o filósofo, é mais fácil matar e morrer por uma idéia do que questionar essa idéia, seja ela qual for.