Nas discussões literárias, quando se invoca o nome “Fantasia”, todo
mundo pensa imediatamente em histórias envolvendo guerreiros medievais com
espada e armadura, cercados de magos, dragões, castelos. Ou seja, para a
maioria dos leitores, “fantasia” é a Fantasia Heróica, também chamada de “High
Fantasy”, aquilo que vemos em obras como O
Senhor dos Anéis, Game of Thrones
ou Conan o Bárbaro.
Nada contra esta fantasia, que eu, pelo menos, aprecio muito. Só que
aprecio mais ainda, por outros motivos, o que a gente chama de “Fantasia
Urbana” ou “Fantasia Contemporânea”: as histórias fantásticas (que podem
inclusive envolver magos, elfos, encantamentos, etc.) transcorridas na época
atual, por entre automóveis, televisões, celulares, etc.
A Fantasia Urbana pode até ser ambientada num momento de cem ou
duzentos anos atrás. Alguns dos meus livros preferidos neste gênero fazem isso.
The Prestige (1995), romance
de Christopher Priest (filmado por Christopher Nolan como O Grande Truque) transcorre na Inglaterra vitoriana, e mostra dois
mágicos-de-palco rivais, criando truques cada vez mais extraordinários,
recorrendo inclusive à ciência da época (Nikolas Tesla aparece na história).
The Anúbis Gates (1983), de
Tim Powers, acontece a partir de 1810 em Londres, quando um viajante-no-tempo
fica acidentalmente preso nessa época e tem que se virar como pode, baseado nos
seus conhecimentos literários. (No Brasil, Os Portais de Anúbis, Ed. 34, trad. Heliana Sabino.)
São histórias fantásticas, com tinturas de ficção científica, mas que
são basicamente fantasia, porque a maioria dos efeitos fantásticos a que
recorrem não têm nada a ver com ciência.
E são histórias tipicamente urbanas, que extraem dramaticidade das
condições de vida numa metrópole – Londres, em ambos os casos.
Um relançamento recente nos EUA tem motivado novas discussões sobre o
tema: o do romance Little, Big (1981)
de John Crowley, um clássico moderno, que na época em que saiu ganhou o World
Fantasy Award, e recebeu elogios entusiasmados do crítico Harold Bloom, que o
incluiu no seu livro O Cânone Ocidental.
Diz Bloom, comentando a obra de Crowley:
“Little, Big” me parece tão miraculoso
quanto Shakespeare ou Lewis Carroll: é como se o livro sempre tivesse estado
aqui, tal como se Falstaff ou Humpty Dumpty estivessem aqui desde o princípio
das coisas, e Shakespeare e Carroll os tivessem simplesmente encontrado. Sempre
tive a impressão de que “Little, Big” já estava aqui e John Crowley apenas o
encontrou e o trouxe para casa, a dele e a nossa.
(prefácio a Snake’s
Hands: The Fiction of John Crowley, trad. BT)
O romance tem o subtítulo “O Parlamento das Fadas” e trata-se na
verdade de uma história sobre fadas, mas contada de um ponto de vista quase
contemporâneo, pois a história se passa no século 20, entre a cidade de Nova
York e uma região não muito perto nem muito distante, chamada Edgewood, uma
espécie de zona de fronteira entre o nosso mundo e o mundo que em inglês é
chamado de “Faerie”, o país das fadas.
Uma das teses centrais do livro é clássica: o desenvolvimento
industrial, técnico e científico, com suas intensas fontes de energia (vapor,
eletricidade, eletrônica, etc.) e o crescimento urbano, empurrou para longe o
mundo das fadas e das criaturas fantásticas, que se refugiaram de volta à
Natureza.
Little, Big é a história de
uma família, a família Drinkwater, ao longo de praticamente um século de
gerações sucessivas Isto fez alguns comentaristas, como Ted Gioia, compararem o
livro com Cem Anos de Solidão de
Garcia Márquez: aquela complicada árvore genealógica cheia de pessoas
excêntricas, nomes repetidos, desaparecimentos misteriosos, paixões
clandestinas, e um microcosmo de gente interiorana com um pé no mundo real e o
outro no umbral de outra realidade.
Um personagem que atravessa a história de ponta a ponta é Evan “Smoky”
Barnable, um rapaz tímido, livresco, distraído. Ele casa com Daily Alice, uma
das moças da família Drinkwater, descendente de um arquiteto misterioso que
construiu a casa também chamada “Edgewood”. John Drinkwater construiu essa
mansão enorme em forma de estrela de cinco pontas, cada uma dessas pontas num
estilo-de-época diferente, talvez para servir de mostruário aos futuros clientes.
Acontece que o formato da casa possibilita a passagem para planos
diferentes da realidade, de modo que chegando ao fim de um corredor e virando a
esquina a pessoa não está somente noutro “estilo de época”, está em outro
mundo. Morando com a recém-esposa nessa
casa desconcertante, Smoky passa a conviver com a mitologia particular da família
Drinkwater – a de que estamos no limiar entre nosso mundo e o mundo das Fadas,
e que existe uma História que está sendo contada e todos eles precisam
encaixar-se nela para que a História (“the Tale”) aconteça.
Como a melancólica observação de uma personagem menor, mera figurante
da História, após seu encontro com uma das protagonistas:
Marge ficou parada na porta observando-a,
repleta da estranha sensação de que
tinha sido apenas para essa visita tão rápida que ela tinha vivido toda
sua longa vida. Que esse chalé à beira da estrada e essa lanterna em sua mão e
toda a série de acontecimentos que a fizeram existir tinha como único objetivo
fazer com que aquela visita acontecesse. (p. 532, trad. BT)
E em outro momento vemos a reflexão de outro personagem, Auberon, que
em Nova York ganha a vida escrevendo novelas de televisão:
E no entanto ele precisava apenas sentar
diante da maltratada máquina de escrever
(e como ela sofria!...) para que os capítulos começassem a se desdobrar tão
habilmente e tão impossivelmente quanto uma fila interminável de lenços-de-seda
coloridos que um mágico extrai da própria mão vazia. Como fazer uma história
terminar com a promessa de que não terminará nunca? (p. 572)
O livro tem uma porção de sub-plots, impossível resumir
todos aqui. Há um pacote de cartas de algo como Tarô passando de geração em
geração, uma mulher que pratica a magia e a Arte da Memória (projetando suas
lembranças nos sucessivos aposentos de um palácio), um bloco de apartamentos em
Manhattan que mantém as quatro fachadas mas no interior abriga uma fazenda de
animais leiteiros, um rapaz que consegue das Fadas o poder de apaixonar
qualquer mulher por que se interesse...
Há um aspecto sinistro também, no surgimento de um líder
populista e violento que acaba se elegendo presidente dos Estados Unidos, e é
chamado O Tirano:
Porque o Tirano, Russell Eigenblick, não seria esquecido. Um longo
período de tempo se estendia diante do seu povo, um tempo amargo em que aqueles
que se opuseram a ele iriam, na aus ausência, se voltar uns contra os outros, e
a frágil República seria partida e recomposta de vários modos diferentes.
Naquele longa disputa, uma nova geração viria a esquecer os sofrimentos e as
dificuldades que seus pais haviam sofrido no tempo da Besta, iria olhar oara o
passado com nostalgia crescente, com a dor profunda de uma perda, para aqueles
anos já além do horizonte da memória viva, para aqueles anos em que,
parecia-lhes, o sol sempre estava brilhando. (pág. 694)
Little, Big é
uma história de fadas mas é ao mesmo tempo uma história da substituição de
gerações em que os mais novos herdam dos mais velhos os sonhos, as dúvidas, os
mistérios, as lacunas. A prosa de John Crowley é tradicional, clássica, muito
elegante, a mesma que eu já tinha experimentado em livros como The Translator (2002), Antiquities: Seven Stories (1993), Novelty (1989), Great Work of Time (1989) ...
Aqui, escrevi sobre o ótimo The Translator:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/01/1590-o-transleitor-1742008.html
Esses livros de Fantasia Urbana são para mim uma
demonstração de que é possível pegar mesmo o mais clichê dos temas e dar-lhe uma perspectiva nova. Basta
apenas fazê-lo chocar-se com temas afastados dele, e ver que tipo de fagulha
esse choque produz.