sábado, 19 de novembro de 2011

2718) Cão do segundo livro (19.11.2011)




É uma dessas expressões bem nordestinas, equivalente a “cachorro da mulesta”, para qualificar um sujeito que está arrasando, que está botando pra quebrar. Um sujeito competentíssimo no que faz, sem rival, sem comparação. 

“Rapaz, esse Ayrton Senna é o cão do segundo livro... A caixa de marcha quebrou, e ele levou o carro até o fim só no muque!” 

"Meu amigo... aquele ponta-esquerda é o cão do segundo livro, recebeu dez bolas e cruzou todas dez na cabeça dos atacantes".

Fala-se no “cão chupando manga”, “cão chupando pena”, fala-se até no “raio da silibrina”, mas a discussão mais interessante é sobre a origem do “cão do segundo livro”. 

Minha primeira impressão foi de que o Cão seria o Diabo, e que o segundo livro seria o Novo Testamento. O tal termo de comparação seria portanto aquele Diabo melífluo e insidioso que leva Jesus lá em cima da montanha e diz: “Tudo isto será teu, se prostrado me adorares”, ao que Jesus responde, em aramaico: “Vôte, capirôto!”.

No Blog “Gandavos – Os contadores de histórias”, de Carlos Lopes (http://tinyurl.com/d9hnxld), discute-se a origem do termo. Um texto de Augusto Sampaio Angelim naquele blog, reproduzindo uma imagem da carta “O Diabo”, do Tarô, diz: 

“Usava-se a expressão ‘o cão do segundo livro’ em dois sentidos. Um de conotação negativa, quando se queria dizer que o indivíduo era ruim, feio ou horrível. Outro, positivamente, para identificar alguém como o melhor da turma, o melhor jogador, o mais astuto, o “tampa”, etc...” 

E o autor afirma que o poeta Soares Feitosa, no seu “Jornal de Poesia”, teria provado que a origem do termo era uma fábula moralista (em que o Diabo mergulha um rapaz no vício do álcool), que aparece no Segundo Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho, famoso livro didático que as gerações mais antigas estudaram na infância.

Essa informação coincide parcialmente com um artigo do pintor José Cláudio (Diário de Pernambuco, 23-2-1999), onde este também atribui a origem aos livros de Felisberto. Ele cita essa mesma imagem do Diabo do Tarô, mas com certo desdém, e afirma: “Cão, pra mim, é o do terceiro livro!”. 

O Terceiro Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho contém a imagem de um cão ameaçador. Esse artigo no DP reproduz ambas as ilustrações, do diabo e do cachorro, e de fato a imagem do cachorro é muito mais impressionante.

É curiosa esta hesitação entre os dois sentidos da palavra “cão” e o fato de dois livros do mesmo autor conterem ilustrações que podem ter dado origem ao termo. A menos (como sempre) que uma nova explicação apareça, engenhosa e plausibilíssima como costumam ser as explicações inventadas.