quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

4300) Alguns livros de 2017 (28.12.2017)




Não faço listas dos “melhores do ano”, porque como não trabalho no jornalismo cultural não tenho a obrigação de ler os lançamentos recentes. Leio mais livros antigos do que livros recentes, não porque menospreze a literatura contemporânea, mas porque os livros antigos têm um histórico de referências, que despertam minha curiosidade. O que se segue abaixo é o registro de alguns bons livros que li este ano, por ordem aproximadamente cronológica. Ainda pretendo escrever mais a vagar sobre alguns deles.



Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto. O romance é um retrato de um intelectual mais velho feito por um amigo mais jovem, e de quebra uma série de quadros vívidos sobre o centro e o subúrbio do Rio de Janeiro, cheios das observações originais e bem argumentadas do autor. É um livro crepuscular e humano, menos satírico que Isaías Caminha ou Policarpo Quaresma, menos cruel do que Clara dos Anjos.



Os Invisíveis 1, de Grant Morrison. Uma das coisas mais curiosas nas HQ é o filão que mistura ficção científica e ocultismo, com rupturas brutais no tempo e no espaço. Pretendo avançar mais nesta série que tem algo de Philip K. Dick  e da “gonzo fantasy” de Tim Powers.



Circo Nerino, de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki. Pesquisando sobre circos, peguei com Eduardo Rios (o Escaramuça do Suassuna - o Auto do Reino do Sol) este álbum notável com a história (numa profusão de fotos excelentes) de um dos grandes circos brasileiros, que infelizmente nunca frequentei. (“Meus” circos foram o Tihany, o Gran Bartholo e o Garcia.) Biografias de inúmeros artistas, episódios curiosos, viagens pelo Brasil inteiro (há inclusive transcrição de um artigo de Ednaldo do Egypto, quando o circo passou pela Paraíba.)


The Life Cycle Of Software Objects, de Ted Chiang. Não sei ainda se vai ser este o título da coletânea de contos de Chiang (o autor de “A Chegada”, filmado por Denis Villeneuve) que traduzi para a Intrínseca. É um dos melhores contistas da FC contemporânea, um dos meus preferidos, e este volume, embora sem o peso de Stories of Your Life and Others, recheado de clássicos, tem histórias excelentes como “The Merchant at the Alchemist’s Gate”, uma narrativa de viagem no tempo no universo das Mil e Uma Noites. (A capa acima é da edição isolada do conto-título.)



Red Harvest, de Dashiell Hammett. O romance de estréia de Hammett é um clássico em que o Continental Op, o detetive anônimo, chega a uma das cidades mais corruptas do país e joga todas as quadrilhas dentro de um frenesi de extermínio recíproco. Política, mentira, traição, ação constante e uma versão cruel do “jeitinho americano” de liquidar bandidos.



Consternação, de Jadson Barros Neves. Contos ambientados principalmente na região do garimpo de Tocantins, uma fronteira rude com garimpeiros, pistoleiros assalariados, indivíduos sem rumo e sem escrúpulos, crimes passionais, assassinatos por dinheiro. Histórias ganhadoras de prêmios literários no Brasil e fora dele.




Conclave e Munich, dois romances de suspense de Robert Harris (o autor de Enigma), que traduzi para a Companhia das Letras. Harris tem um estilo seco, enxuto, detalhado e rápido que dá inveja. O primeiro livro é sobre os bastidores da eleição de um Papa; o segundo, sobre uma conspiração para matar Hitler durante a Conferência de Munique de 1938.


Now Wait For Last Year, de Philip K. Dick. Traduzi para a Suma de Letras este romance de Dick, que eu não tinha lido ainda. Achei uma ótima narrativa, meio desconcertante devido a freqüentes saltos irregulares no Tempo. Tem um dos melhores personagens messiânicos de PKD, Gino Molinari, líder da Terra numa guerra interestelar; drogas mirabolantes, um casamento cruelmente disfuncional e a empatia dickiana em alguns dos seus momentos mais verdadeiros.


A Hipótese Humana, de Alberto Mussa. Um romance policial ambientado no Rio do século XIX, com boas descrições de ambientes e tipos. Parte de uma série que fiquei com vontade de conhecer melhor.


The Edge Of Running Water, de William Sloane. Um romance esquecido de um autor bissexto, de quem eu já li e comentei To Walk the Night (aqui: https://tinyurl.com/yajmdedc). Sloane é um excelente escritor, e esta história tem momentos arrepiantes numa mistura entre FC e sobrenatural.


O Fogo Na Floresta, de Marcelo Ferroni. Um romance ambientado no mercado editorial (uma editora que está sendo comprada e reformulada por um grande grupo econômico), com uma protagonista que se debate de forma alternadamente cômica e trágica nos absurdos do mundo corporativo, do casamento, do adultério, das catástrofes financeiras, da maternidade e do cuidado com os pais idosos, tudo ao mesmo tempo como na vida real.


The Drowned World, de J. G. Ballard. Um dos primeiros romances-catástrofes de Ballard, mostrando uma Inglaterra submersa pelo aquecimento global, transformada num pântano semelhante aos do período Triássico.


Presos No Paraíso, de Carlos Marcelo. Um romance policial ambientado em Fernando de Noronha com algumas reviravoltas hábeis de enredo, recriação eficaz de ambiente humano e geográfico e uma alternância de pontos de vista que ajuda o leitor no esforço detetivesco. Do mesmo autor de O fole roncou, perfil histórico do forró nordestino.

Registro também os numerosos bons livros de poesia que li ao longo do ano, e destaco estes: João Paraibano, O Herdeiro Dos Astros (org. Ézio Rafael, Marcos Passos e Santanna o Cantador), Servir A Quem Vence (Astier Basílio), Velório Sem Defunto e Aprendiz De Feiticeiro (Mario Quintana), Miolo Da Rapadura (Klévisson Viana), O Vendedor De Berimbau (Chico Pedrosa), A Desmedula da Seta (Alan Mendonça), O Mínimo Possível (Adriano Cabral).

Além destes, outros livros interessantes que comentei neste blog durante o ano:

O Espírito Da Ficção Científica, Roberto Bolaño

No Tempo De Almirante, Sérgio Cabral

A Lua Vem Da Ásia, Campos de Carvalho

Santaninha, Arievaldo Vianna e Stélio Torquato

O Bigode, Emanuel Carrère.

O Horlá, Guy de Maupassant.

Baudolino, Umberto Eco

Mar Paraguayo, Wilson Bueno

Incrível! Fantástico! Extraordinário!, Almirante

Malpertuis, Jean Ray

The Yiddish Policemen’s Union, Michael Chabon.














segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

4299) Natal 2017 (25.12.2017)





(ilustração: Galina Kim)

...e o mundo gira a sua bolandeira
de planetas, satélites e luas
como giramos no vaivém das ruas
e no círculo astral do calendário.
Fim de ano é igual aniversário:
um ano a menos resta à nossa frente.
Quem quiser comemore este presente:
mas eu celebro o fluxo, e não o saldo,
a travessia, e não o esforço baldo
de guardar este rio em algum bolso.

As alcatéias cantam, e eu só ouço,
esperando chamarem minha senha,
escutando o machado sobre a lenha,
respirando a fumaça da fogueira,
vendo a vida passar Aleph-inteira
cada vez que me deito pra dormir,
sendo ainda capaz de ler, sorrir,
já que tudo é clicar aplicativos;
cada vez que desperto ao sol dos vivos
sou eu mesmo de novo, e sou um só.

E eu fui feliz, no meu Bodocongó!
Tocando, via o dia amanhecer...
Era uma luz que não voltei a ver
uma alegria de elevar balões
um aconchego de saber canções
sentimento de noite de luar
ascendendo na perpendicular
rumo ao zênite bom de um dia claro
sentimento tão puro, forte e raro
que deve ser produto da memória.

Sentir saudade é maquilar a História;
um direito de todo cidadão!
Ah, se não fosse a imaginação
como ficar em paz dentro de si?
Tudo quanto eu sonhei, pensei, vivi,
era o centro vital daquele Instante,
um “agora” em que todo ser pensante
tem ponto de chegada e de partida,
cartesiano zero, o “x” da vida,
onde o espaço e o tempo entram em foco.

Pois este mundo só existe “in loco”,
o átimo, o momento, o here-and-now,
o passo à frente, o quantum-leap, o vau,
o fotograma que “eppur si muove”.
Porque tudo que pulsa e nos comove
só pulsou desta vez, neste presente;
é o Tempo do corpo, e não da mente;
a mente é transversal, não-linear,
randomizada, ortogonal – lugar
capaz de superpor tempos distintos.

Então... vamos brindar brancos e tintos.
Eu morrerei, e tudo vai passar.
Meus átomos irão se dispersar
e nessa hora não serão mais meus;
só me faltava que existisse um deus!
Um síndico do cosmos, registrando
quem entrou, quem saiu, quem-onde-quando...
O tempo; o espaço; dois vetores; “x”.
E nesse encontro está tudo que eu fiz,
o ponto luminoso em que eu pisquei.

O ano se passou... e eu nem liguei.
Impressionante um ano como passa.
Como um poema escrito com fumaça,
ou ser humano escrito em carne e osso;
ou como passa este universo-esboço,
rascunho escrito em turbilhões de quarks
que me aceitou, como se a Groucho Marx
aceitasse algum clube dadaísta;
não importa; meu nome entrou na lista
e o convidado-trapalhão nasceu.

E aqui estou, por fim. Não mangue d’eu!
Mangue do mundo que me produziu,
mangue dos séculos, ou do Brasil,
que deu matéria pro meu torvelinho.
Sou só um velho contemplando um vinho
sem saber qual dos dois vai durar mais.
Deixo que o mundo me deguste em paz
como o degusto eu, que vou passando,
vendo, sendo, sorrindo, versejando
esta estrofe que emenda com a primeira...








sábado, 23 de dezembro de 2017

4298) Um poema de John Ashbery (23.12.2017)




(Morreu pouco tempo atrás nos Estados Unidos o poeta John Ashbery, que mereceu longos e elogiosos obituários. Na época o nome não me despertou nenhuma lembrança. Agora, remexendo em arquivos velhos, encontrei este poema que li e salvei há alguns anos, movido por alguma ressonância autobiográfica. É um belo poema sobre o processo criativo literário, familiar a todo escritor que de vez em quando vai à janela. Vai ele aqui com tradução minha. O original é de 1956, do livro “Some Trees”.)


O MANUAL DE INSTRUÇÕES
(John Ashbery)

Sentado à janela do meu prédio, olhando para fora,
penso como seria bom se não tivesse de redigir
um Manual de Instruções a respeito das utilidades de um novo metal.

Olho para a rua lá embaixo e vejo as pessoas,
cada qual passeando cheia de paz interior,
e sinto inveja delas. Tão distantes de mim!
Nenhuma delas tem que se preocupar
com a entrega do Manual no prazo combinado.

E, bem ao meu jeito, começo a sonhar,
apoiando os cotovelos na mesa
e me soerguendo um pouco para olhar pela janela,
e sonho com Guadalajara! A cidade das flores cor de rosa!
A cidade que eu mais desejo conhecer, e nunca conheci, no México!
Mas imagino vê-la agora, sob a pressão de ter que escrever o Manual de Instruções,
vejo a praça pública da cidade, seu coreto cheio de adornos!
A banda está tocando Scheherazade de Rimsky-Korsakov,
e em redor do coreto as garotas das flores
seguram flores cor de rosa e de limão,
cada uma tão atraente em seu vestido de listas em azul-e-rosa (oh! cada tom de rosa e azul!)
e ali perto a barraquinha branca onde mulheres de verde
distribuem frutas verdes e amarelas.

Os casais desfilam: todos estão em clima de feriado.
Primeiro, puxando o desfile, vem um sujeito elegante
vestido de azul escuro. Na cabeça traz um chapéu branco
e exibe um bigode, que foi aparado para aquela ocasião.
Sua querida, sua esposa, é jovem e bela; o xale dela é vermelho, cor-de-rosa e branco.
Suas sandálias são de couro, ao estilo americano,
e ela traz um leque, porque é encabulada, e não quer que a multidão veja seu rosto o tempo inteiro.

Mas todo mundo está tão ocupado, com suas esposas ou suas amadas,
que duvido que notem a esposa do homem de bigode.
E aí vêm os rapazes! Vêm saltando e jogando coisas na calçada
que é feita de ladrilhos cinza. Um deles, um pouco mais velho, traz um palito entre os dentes.
É mais silencioso do que o resto, e finge não reparar nas moças bonitas de vestido branco.
Mas os amigos dele reparam, e gritam provocações para as garotas risonhas.

E no entanto isso tudo vai acabar,
quando os anos ficarem mais profundos,
e o amor os trouxer ao desfile por outros motivos.

Mas acabei perdendo de vista o rapaz com o palito.
Esperem! Ali está ele, do outro lado do coreto,
separado dos amigos, envolvido na conversa com uma garota
de catorze ou quinze anos. Tento escutar o que estão dizendo
mas parece que estão apenas murmurando coisas – palavras tímidas de amor, provavelmente.
Ela é um pouco mais alta do que ele, e abaixa os olhos com calma para os olhos dele, tão sinceros.
Ela está de branco. A brisa agita seus cabelos longos e finos de encontro ao rosto moreno.
Ela está visivelmente apaixonada. O rapaz, o rapaz do palito, está apaixonado também:
os olhos dele o demonstram. Afastando minha visão deste casal
vejo que houve agora um intervalo no concerto.
Os transeuntes estão descansando, tomando refrigerantes no canudinho
(o refrigerante está numa grande jarra de vidro, e quem o serve é uma senhora de azul escuro),
e os músicos se misturam a eles, com seus uniformes brancos, e conversam,
sobre o clima, talvez, ou sobre como as crianças estão se saindo no colégio.

Vamos aproveitar esta oportunidade
e entrar na ponta dos pés nesta ruazinha transversal.
Aqui vocês podem ver uma daquelas casinhas brancas com enfeites verdes
que são tão populares aqui. Olhem! Bem que eu lhes disse.
Dentro está mais fresco à sombra, mas o pátio está banhado de sol.
Uma mulher idosa de vestido cinza está sentada, abanando-se com um leque de folha de palmeiras.
Ela nos convida a entrar no pátio, e nos oferece um refresco para beber.

“Meu filho está na Cidade do México,” diz ela. “Ele os receberia também se estivesse aqui. Mas ele trabalha num Banco, lá.
Olhe, este aqui é o retrato dele.”

E o rapaz de pele morena com dentes de pérola nos sorri naquela velha moldura de couro.
Agradecemos a ela sua hospitalidade, porque está ficando tarde
e precisamos olhar melhor a cidade, antes de irmos embora,
olhar a cidade de cima de um lugar bem alto.

A torre daquela igreja pode servir – aquela em cor de rosa desbotada, de encontro ao azul vívido do céu. Entramos lentamente.

O porteiro, de uniforme marrom e cinza, pergunta há quanto tempo estamos na cidade, e se estamos gostando.
A filha dele varre os degraus, e nos cumprimenta quando passamos rumo à torre.

Logo chegamos ao topo, e a teia quadriculada da cidade se estende aos nossos olhos.
Ali está o bairro nobre, com suas casas rosa e branco, e seus terraços cheios de plantas se esboroando.
Ali o bairro mais pobre, onde as casas são azul escuro.
Ali o mercado, onde os homens vendem chapéus e espantam moscas,
e ali a biblioteca pública, pintada em tons de verde claro e bege.

Olhem! Lá está a praça de onde viemos, onde o pessoal passeia.
Agora há menos gente por lá, agora que o calor do sol ficou mais forte,
mas aquele rapaz e a garota ainda conversam junto ao coreto.

E aquela é a casa da pequena senhora—
lá está ela no pátio, se abanando.

Como foi breve, mas como foi completa, a nossa experiência de Guadalajara!
Vimos o amor entre os jovens, entre os casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
Ouvimos a música, provamos as bebidas, olhamos as casas coloridas.
O que nos resta a fazer, senão ficar? Mas isto não é possível.

E quando a derradeira brisa refresca o topo da velha torre,
eu giro a cabeça, e os meus olhos
se voltam para o Manual de Instruções – que me fez sonhar com Guadalajara.









terça-feira, 19 de dezembro de 2017

4297) Tolkien e os rios da Terra Média (19.12.2017)





Um dos encantos que fascinaram os primeiros leitores da trilogia O Senhor dos Anéis (1954-55) de J. R. R. Tolkien foi a impressão de realidade intensa produzido por um livro que era claramente de fantasia, que transcorria num mundo sem nenhum país reconhecível, nenhuma cultura reconhecível, mas que era intensamente real, verossímil, mesmo quando estava descrevendo cenas com seres fantásticos e forças sobrenaturais.

Já se disse que o livro de Tolkien foi um dos primeiros em que um leitor sentia o quanto custa fazer longas viagens a pé. Os personagens passavam longos capítulos para ir de um lugar a outro, numa época literária em que esse nó-górdio era cortado com fórmulas mágicas tipo: “Depois de alguns dias de extenuante caminhada, nossos heróis viram-se finalmente à beira do Rio Aligátores...”

A textura de uma roupa, a profusão de odores numa estalagem, a sensação de estar amarrado há horas e cheio de cãibras, tudo isso eram pontos positivos na criação de uma narrativa fisicamente verossímil.

E quando focalizávamos a atenção no chamado ambiente-macro, a impressão se mantinha. Aqueles personagens não eram ciscos de poeira boiando no ar. Pertenciam a famílias longuíssimas onde todo mundo tinha nome e datas, serviam a reis cujas dinastias eram descritas com minúcias ao longo de séculos. Era um mundo onde todo mundo existia de verdade, com testemunhas.

Invoco todas estas qualidades do texto de Tolkien para introduzir uma divertida crítica feita por Alex Acks (geólogo e escritor) a respeito dos rios e das montanhas da Terra Média, “Middle Earth”.

Num artigo reproduzido pelo saite da editora Tor Books, Acks faz uma série de críticas ao modo como os rios parecem se comportar na paisagem da Terra Média tolkieniana. Não vou transcrever aqui a argumentação dele, cuja íntegra pode ser lida no link original:


Basicamente, Alex diz que apesar de ser um admirador da obra de Tolkien, ele considera que os mapas incluídos nela são “os mapas mal-feitos de fantasia que deram origem a milhares de mapas mal-feitos de fantasia”. Esses mapas se tornaram um “bônus” quase obrigatório do gênero, tal como as plantas-baixas da casa onde ocorreu o crime o foram para a literatura detetivesca dos anos 1930-1950.

Diz Alex que o curso do Anduin, o principal rio, é “incompreensível”, devido a vários fatores. Um deles é o fato de que quando um rio entra em rota de colisão com uma cadeia de montanhas (um local onde o terreno “sobe”, por definição) isso tem algo de estranho. Ele faz algumas ressalvas (talvez o rio já existisse, e as montanhas tenham se erguido muito tempo depois, por uma convulsão geológica qualquer), e segue adiante.

Ele observa que o Anduin não parece ter grandes afluentes visíveis, e que os rios em volta, em vez de correram na direção dele, parecem ir cada qual numa direção diferente, o que sugere uma topografia  de relevos pouco realistas. A direção de um rio indica que existe ali uma baixa, pois a água tende a se escoar sempre para os lugares mais baixos. E essa direção dele tem que estar de acordo com as outras figuras de relevo em volta.

O que uma crítica desta natureza nos diz sobre o talento literário de Tolkien?

Várias coisas, e nenhuma delas muito grave. Tolkien era meio filólogo, meio medievalista. Era professor em Oxford, o que já é meio caminho andado para a especialização do conhecimento. O cara tende a ser um esgotador-de-um-só-assunto, e não um comparador-transversal-de-disciplinas.  É mais que compreensível que ele entendesse pouco de geologia. Todo escritor acaba errando, quando usa dados de fora de suas áreas de conhecimento. Os erros hidrográficos de JRRT não me parecem graves; pelo menos, foi a primeira vez que vi alguém falar a respeito.

Tolkien fazia uma espécie de hard fantasy, ou seja, uma fantasia que mesmo admitindo elementos sobrenaturais busca uma coerência interna, uma lógica, um compromisso de rigor. A verossimilhança de um elemento fantástico é maior quando o leitor percebe que existem regras, existe um quadro geral de forças e pressões no qual esse elemento tem que se encaixar.

Numa carta ao seu filho Christopher, em 25 de abril de 1944, quando trabalhava no Livro IV, ele diz:

Dei uma aula medíocre, depois encontrei por meia hora os Lewises [provavelmente C.S. Lewis e seu irmão] e C.W. [provavelmente Charles Williams].  Aparei três gramados, escrevi uma carta a John [o outro filho de Tolkien], e lutei com uma passagem problemática em The Ring. A esta altura, eu tenho de descobrir quanto tempo mais tarde a lua se eleva a cada noite, quando está próxima de ficar cheia; e como preparar um guisado de coelho!

Se Tolkien desconhecia os detalhes da dinâmica dos fluxos hidrográficos, ou sei lá como se chama isso, não era por burrice ou negligência, era por falta de tempo mesmo. Se pudesse, ele estaria consertando e aperfeiçoando essas coisas até hoje. Ele era desse tipo.

Os possíveis erros não influem no desenvolvimento do enredo e, principalmente, não são aqueles erros que empurram o enredo para um beco sem saída e que o autor, percebendo tarde demais, resolve mediante um deus ex machina qualquer.

Tolkien parecia ver um mapa (e assim agem muitos dos autores que o seguem) como um quadro, uma obra de arte, um retrato idealizado de uma paisagem, destinado apenas a sugerir vagamente a posição relativa dos elementos, e uma distância aproximada. (Como os mapas de metrô, p. ex.) Ali, como numa “carta enigmática”, cada elemento pictórico corresponde a uma feição do mundo exterior, mas num sentido meramente ilustrativo.

Um mapa físico, no entanto é mais do que isto: mesmo estático, ele indica a posição atual de um processo dinâmico, algo que envolve placas tectônicas, secas, alagamentos, erosão. É um caso de “a foto da nuvem”, só que uma nuvem muitíssimo mais lenta, que não muda no curso de minutos, e sim de milênios.

Existe forçosamente uma sintaxe interna entre os elementos representados num mapa científico. Isto modifica aquilo. Isto é consequência daquilo. Isto e aquilo são consequências distintas de um fenômeno que já passou.

É neste aspecto que a notável mente analítica de Tolkien, durante a criação da obra, cedeu espaço a sua não-menos-notável mente imaginativa, e seu mapa se tornou uma peça de arte gráfica, um híbrido, a meio caminho entre a descrição de fenômenos físicos e a pictografia armorial.







sábado, 16 de dezembro de 2017

4296) O mistério policial no "Romance da Pedra do Reino" (16.12.2017)




Tem lugares que guardam um enorme valor simbólico para um leitor de romances policiais. Como por exemplo o endereço de 221b Baker Street, em Londres.

Dias atrás estive na cidade de Aparecida (PB), a convite do Centro Cultural Banco do Nordeste (Sousa), participando da 8ª. Mostra Acauã do Audiovisual Paraibano, um evento sertanejo que ocorre periodicamente na Fazenda Acauã, um dos marcos históricos mais interessantes da Paraíba.

Por convite de Sergio Silveira (CC-BNB) e Laércio Filho (Acauã Produções Culturais), não só fiz uma palestra como pude presenciar o lançamento do novo romance de Ariano Suassuna, que foi apresentado por seu filho, o artista plástico Dantas Suassuna.

O Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores é na verdade uma caixa com um conjunto de dois livros, “O Jumento Sedutor” e “O Palhaço Tetrafônico”, que se juntam ao clássico Romance da Pedra do Reino para compor um conjunto romanesco, “A Ilumiara”.

Foi em função disto que fui até lá, para falar sobre “O Mistério Policial no Romance da Pedra do Reino”.

Quem leu o livro de Ariano sabe que ele tem linguagem fácil mas estrutura difícil – há uma quantidade absurda de informações a serem assimiladas e conectadas entre si, para que se possa compreender com clareza a aventura do narrador, Pedro Dinis Quaderna, que se anuncia como novo imperador do Brasil. 



(Irandhir Santos, como Quaderna)

Quaderna descende do fanático que em 1838 promoveu um massacre na Pedra do Reino (hoje no município de São José do Belmonte, em Pernambuco) para lavar com sangue os rochedos, desencantar um reino e trazer de volta D. Sebastião, o rei desaparecido de Portugal.

Um dos mistérios do livro original (quem quiser detalhes vá direto ao Capítulo/Folheto 51, “O Crime Indecifrável”) é o assassinato do tio de Quaderna, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, encontrado morto num aposento trancado por dentro, em sua fazenda, a Onça Malhada.

Peço ao leitor recente que não se preocupe com spoilers, que é um dos traumas permanentes dos leitores de livros policiais. Vou revelar aqui a resposta, sim, mas isso é uma gota no oceano do romance, e ouso dizer que o próprio Ariano daria de ombros diante de um excesso de preocupação do leitor. O livro é sobre outra coisa.

Perguntei uma vez a Ariano Suassuna se ele era fã de Edgar Wallace, e ele confirmou. Wallace, inglês, foi um dos autores policiais mais famosos nas primeiras décadas do século 20. Traduzidíssimo no Brasil, era lido por minha avó Clotilde, meus tios, meu pai. Existe até uma foto famosa de Lampião lendo um livro dele.

Se Lampião gostava, por que não Suassuna? Ele confirmou que o mistério policial da Pedra do Reino foi inspirado em dois livros de Wallace que por coincidência eram dois dos meus favoritos, publicados pela saudosa Coleção Amarela, da Editora Globo de Porto Alegre: Na Pista do Alfinete Novo e A Pista da Vela Dobrada.



Aqui, outro artigo meu a respeito:


São aqueles enigmas tradicionais que a gente chama de “quarto fechado” (“locked room”): o mistério consiste em saber como o assassino se evadiu do local depois de cometer o crime, visto que o aposento está trancado pelo lado de dentro.

Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, no dia em que foi morto, subiu para o andar superior de uma espécie de sobrado que tinha na sua fazenda, vizinho à torre do sino e à capela.

A fazenda Onça Malhada do livro é diretamente inspirada na Fazenda Acauã (ou Acauhan) que pertenceu a João Suassuna, pai de Ariano, e onde ele, menino, passou parte de sua infância.

Na foto abaixo, de Gustavo Moura, vemos o conjunto desta construção, que data do século dezoito.



Ao subir para o andar de cima do sobrado, o fidalgo fechou atrás de si uma porta que vedava o acesso da escada, e uma vez lá em cima também fechou por dentro a porta do aposento, cujas únicas aberturas eram algumas seteiras muito estreitas, incapazes de dar passagem a qualquer pessoa. E ali ele é encontrado morto, várias vezes apunhalado, o sangue ainda golfando, e marcado a brasa por um ferro que ninguém foi capaz de encontrar.

Nesta foto minha, o acesso atual à parte de cima do “sobrado”, onde ocorreu o crime:



Anos atrás apresentei um trabalho num Congresso da BRASA (Brazilian Studies Association) no Recife, convidado por Idelette Muzart, estudiosa e grande conhecedora da obra de Ariano. O trabalho era justamente sobre as soluções possíveis para o crime de quarto fechado proposto por Ariano.

Cada leitor do Romance da Pedra do Reino tem sua teoria.

Dantinhas Villar, filho de Manelito Vilar, da Fazenda Carnaúba, em Taperoá, suspeita de Silvestre, o irmão mais novo e abobalhado de Quaderna.

Eu suspeito que o próprio Quaderna teria sido o assassino de Dom Pedro Sebastião – faltar-lhe-ia o motivo, visto que Quaderna adorava o tio, mas se alguém me pagar um cachê eu invento três motivos diferentes, cada qual mais lógico do que o outro.

Há quem suspeite de Arésio, o filho revoltado do velho fidalgo, agressivo, violento – aquele Caim impiedoso que toda família nobre costuma produzir.

Há quem suspeite do Major Antonio Moraes, usineiro e comerciante de minérios em Taperoá, inimigo mortal do fidalgo assassinado, e que tem como objetivo tomar-lhe a mulher, as terras, a fortuna.

Mas todas as hipóteses esbarram no problema: como alguém pôde entrar sem ser visto no aposento do sobrado, matar sem ser visto, fugir sem ser visto?

Quando foi feita a adaptação do romance de Ariano para minissérie da TV Globo, éramos três roteiristas: Luiz Fernando Carvalho (também diretor), Luís Alberto Abreu e eu. A gente tinha que fazer uma série de TV contando uma história que o próprio autor do livro não tinha terminado ainda de revelar. (Não é esta a única semelhança entre o Romance da Pedra do Reino e Game of Thrones).

Depois do romance ser publicado em 1971, muita gente achou que os volumes seguintes avançariam a história e revelariam a solução do mistério. Ledo engano: os volumes seguintes pularam para o passado, contando apenas o que tinha acontecido antes da história já conhecida. (Não é esta a única semelhança entre o Romance da Pedra do Reino e a série Star Wars de George Lucas).

Reunimos nosso triunvirato e encostamos Ariano na parede: ou revela o mistério ou a gente inventa uma resposta por conta própria. 

Assim coagido, o Cabreiro Tresmalhado sentou-se e produziu um manuscrito revelatório de 52 páginas, com data final de 19 de julho de 2006, com a intimidante autorização: “Aí está o que pude escrever. Vocês podem cortar, desenvolver e acrescentar o que for necessário.”

Assim, foi feito – na medida do possível. Esse texto, que permanece inédito, provavelmente será incluído na republicação do material ligado ao romance, que está nos planos da Editora Nova Fronteira. A solução proposta por Ariano para o mistério policial foi uma solução heterodoxa, que talvez não fosse aceita por teóricos rigorosos como S. S. Van Dine ou John Dickson Carr, mas enfim, esses caras são gringos do hemisfério norte e não entendem o universo oncístico, negro-tapuia, alanceado e épico em que a história transcorre.

E só por isso não vou mais revelar aqui a solução Quem quiser que leia o livro, veja o DVD da série e deduza por si mesmo. Como diria Sherlock Holmes, “The game is afoot”!