sexta-feira, 12 de março de 2010

1783) Por que celular não vai dar certo (26.11.2008)



(um celular steampunk)

Historiadores do futuro, de meados do século 21, descobriram nos arquivos da Nokia Corporation, no Japão, um curioso documento datado das últimas décadas do século 20, quando tiveram inícios as pesquisas para a criação do telefone celular. Um grupo de trabalho examinou as propostas dos técnicos, chegou à conclusão de que a idéia de um telefone pessoal portátil era inviável, e deu as suas justificativas.

1) Portabilidade. As pessoas têm resistência a conduzirem mais e mais objetos consigo. A tendência do futuro é que as pessoas andem leves, sem sobrecarregarem seus bolsos e suas bolsas com um número excessivo de objetos. Além do mais, seria impraticável conduzir consigo, durante um dia inteiro, um aparelho que só vai ser usado poucas vezes. Ele acabaria sendo visto como um trambolho. Pessoas tenderiam a esquecê-los em mesas de reuniões ou de restaurantes, no cofre do carro, etc.

2) Invasão. Um telefone conduzido o tempo inteiro pelo próprio usuário acaba se transformando num meio de vigilância, permitindo que ele seja rastreado sem parar. Os conceitos modernos de individualismo se rebelam contra essa vigilância “Big Brother”, que é uma ameaça à liberdade individual. Será muito mais prático multiplicar o número de telefones públicos (“orelhões”) para que os usuários possam recorrer a eles sempre que necessário.

3) Sobrecarga dos sistemas. Nenhum sistema de telecomunicação conseguirá administrar a complexidade dos roteamentos necessários para manter conectado um telefone móvel. Suponhamos um casal que more em cidades diferentes (com celulares locais) e que esteja de visita a um terceiro lugar. Se A ligar para o telefone de B, a ligação terá que percorrer um trajeto do celular de A para uma estação em C (a cidade onde estão), de onde a chamada será direcionada para a central de A, de onde irá para a central de B, que em seguida contactará uma estação em C, que daí completará a chamada no celular de B. Multiplique-se isto para alguns milhões, e teremos o caos.

4) Preço. Aparelhos multi-funcionais deste tipo, conduzidos na rua junto ao corpo do usuário (bolsos, etc.) serão alvo preferencial de ladrões, por serem objetos relativamente pequenos e muito caros. Usuários de tais telefones terão que andar armados, além de pagarem seguros caríssimos para as hipóteses de roubo ou perda.

5) Complexidade. Existe a sugestão de que os telefones pessoais exerçam múltiplas funções: relógio, câmara fotográfica, transmissor de mensagens de texto, etc. Isto irá requerer que cada usuário faça cursos intensivos de habilitação para poder dominar técnicas tão diferentes e complexas. A mudança de comandos a cada mudança de função requer treinamento, concentração e rapidez, o que é muito difícil de adquirir sem um treinamento profissional e dispendioso. A situação é ainda mais grave no caso dos usuários jovens, cujo baixo limiar de atenção lhes vetará o uso de tais aparelhos.

1782) Dawkins versus Harry Potter (25.11.2008)


O professor Richard Dawkins é um cara que gosta de pegar briga pesada. Recentemente escreveu um livro contra Deus (A Ilusão de Deus). Agora, não satisfeito, foi mais longe e resolveu enfrentar Harry Potter. 

Numa entrevista recente, Dawkins protestou contra o que ele acredita serem hábitos nocivos que os livros de J. K. Rowling estão disseminando entre os jovens, os quais, segundo ele, “estão sendo criados no hábito de acreditar em feiticeiros e encantamentos”. “O livro que vou escrever no ano que vem,” disse Dawkins, “será um livro destinado às crianças, mostrando-lhes como refletir sobre o mundo, e mostrando o contraste entre o pensamento científico e o pensamento mítico”. 

Se for apenas isto, estou de acordo, porque pensamento científico e pensamento mítico são duas coisas muito diferentes, e que precisam ser identificadas com clareza. O nó da questão, no entanto, é que Dawkins provavelmente vai dizer no seu livro que o pensamento científico é o único que está certo, e o pensamento mítico está errado. É justamente nessa bifurcação que eu divirjo e discrepo do nobre pensador. 

O pensamento científico nos serve para entender o mundo material que nos cerca. As ciências que cultivamos deveriam ser chamadas de Ciências da Matéria, porque afinal não é de outra coisa que tratam. 

O pensamento mítico, por outro lado, trata das Ciências da Mente, um domínio totalmente diverso. Elas funcionam de outro jeito, e manipulam outros parâmetros. Dawkins talvez seja (espero não estar sendo injusto com o professor) um desses caras para quem a palavra grega “mito” significa “mentira”, e este simples fato torna desnecessário qualquer estudo a respeito. Se é mentira não é verdade, e se não é verdade, para que perder tempo com isto?! 

O professor ficaria surpreso se visse que grande parte dos garotos que lêem Harry Potter e suas aventuras feiticeiras também lêem autores de ficção científica como Isaac Asimov. As duas mentalidades não apenas podem coexistir, como a literatura é justamente o melhor espaço para essa coexistência. 

A literatura imaginativa desperta a curiosidade de garotos e garotas a respeito do mundo da matéria, do mundo da mente, do mundo dos átomos, do mundo da mitologia. Garotos e garotas inteligentes lêem com o mesmo prazer livros sobre feitiçaria e sobre espaçonaves, livros sobre cavaleiros medievais e sobre robôs. Para eles, tudo pertence ao mundo da imaginação, pertence às fronteiras da realidade. Se umas coisas funcionam na vida prática e outras não, qual é o problema? É de literatura e de imaginação que estamos falando. 

Dawkins me parece às vezes um Inquisidor ao contrário, um sujeito que está numa cruzada ateísta para banir a religião do mundo mesmo que seja à base de fogueira e Santo Ofício. Um procedimento nada científico, professor. Nada científico. Me dá às vezes a impressão de que ele sofreu algum tipo de enfeitiçamento, mas, cala-te boca.





1781) A liberdade de expressão (23.11.2008)



No ginásio, nas aulas de Ciência, surgia de vez em quando esta questão perturbadora: “O que acontece quando uma Força Irresistível encontra um Obstáculo Inabalável? Quem ganha?” Uns votavam numa, outros votavam no outro. Alguns tentavam ser salomônicos dizendo que o Obstáculo “balançava mas não caía”. (Uma variante do mesmo problema envolvia um Solvente Universal e um Recipiente Invulnerável.) Até que um dia um professor nos sugeriu considerar o seguinte: uma Força Irresistível e um Obstáculo Inabalável não podem existir no mesmo universo. A existência de um elimina o outro. Se existir uma Força Irresistível, nenhum obstáculo será inabalável, e vice-versa.

Existem casos, contudo, em que um termo entra em contradição consigo mesmo. É o caso desta misteriosa condição chamada “liberdade de expressão”. É uma noção que em princípio conta com a aprovação de qualquer pessoa – mas quando vamos pô-la em prática vemos que na medida em que aumenta a liberdade de expressão de A diminui a de B.

Sempre que coloquei em público esta questão apareceu alguém para dizer de imediato: “Então quer dizer que o sr. é contra a liberdade de expressão?” Este é a típica generalização apressada de quem só entende uma questão radicalizando-a em dois extremos. Não se trata de “ser contra” a liberdade de expressão, mas de reconhecer que ela tem limites por sua própria natureza. Não existe uma utópica e fantasiosa “liberdade de expressão universal e permanente”. Tudo que se ganha de um lado se perde do outro.

Como muita gente só entende imagens exageradas, costumo propor a seguinte questão: “O que é pior – a Censura ou o Nazismo?” Porque ou você tem uma coisa, ou tem a outra. Se você é a favor da liberdade de expressão, tem a obrigação moral de garanti-la também para essa rapaziada que tatua suásticas no bíceps, espanca nordestinos e judeus, e prepara atentados contra Barack Obama. Caso você seja um defensor da liberdade de expressão, precisa concedê-la a esses caras, para que se expressem, publiquem livros e artigos, façam comícios públicos, criem canais de TV divulgando suas idéias, elejam deputados e senadores, promulguem leis a seu favor, coloquem no currículo das escolas públicas cadeiras explicando que o Holocausto foi uma farsa.

Eu, por exemplo, não concordo com essas idéias. Acho que são prejudiciais à convivência pacífica entre as pessoas, e, portanto, sou a favor da Censura contra elas. Por mim, devem ser proibidas. Outras idéias com as quais não concordo – a Numerologia, a Teoria da Atlântida, etc. – me parecem inofensivas e não vejo razão para censurá-las.

Todo mundo é assim. Todo governo, todo cidadão. Permitimos aquilo que aprovamos e aquilo que nos parece irrelevante mas inofensivo; e censuramos o que faz mal. Liberdade universal de expressão não pode existir numa sociedade onde pessoas diferentes defendem idéias diferentes. Sempre vai haver uma idéia tão perigosa que alguém vai achar preciso proibir.

1780) “A Ilha dos Mortos” (22.11.2008)




Não sei o que é mais fascinante, se uma obra literária que nos evoca a impressão de um sonho, ou se uma pintura que consegue o mesmo efeito. 

“A Ilha dos Mortos” é um quadro de Arnold Böcklin que tem no campo do Fantástico uma posição parecida com a de “O Grito” de Edward Munch ou “Duas Crianças Ameaçadas por um Rouxinol” de Max Ernst, ambos já comentados nesta coluna. 

O quadro de Böcklin surgiu de uma idéia recorrente que fez o pintor produzir cinco versões sucessivas, entre os anos de 1880 e 1886. Das cinco, uma (a quarta) foi destruída durante a II Guerra Mundial, e as demais encontram-se em museus de Nova York, Basiléia, Berlim e Leipzig. Elas podem ser admiradas e comparadas no verbete da Wikipedia, em: http://en.wikipedia.org/wiki/Isle_of_the_Dead_(painting).

Trata-se de uma ilha rochosa que emerge abruptamente do oceano, com enormes paredões de pedra que parecem traçar um semi-círculo, tendo no seu interior um bosque de ciprestes negros que se erguem a imensa altura. Nos paredões, vemos as entradas de câmaras mortuárias escavadas na rocha. Diante do bosque, vêem-se os degraus de um atracadouro, para onde se dirige um barco com duas figuras humanas (um barqueiro, sentado, e um vulto de pé, envolto num sudário branco) e à frente deles um ataúde branco com guirlandas de flores vermelhas.

O quadro sugere um sonho ominoso, e não um pesadelo de terror propriamente dito. Há uma sensação opressiva de morte já ocorrida, não de ameaça. A ilha-cemitério surge da água como que do nada, sem outra função senão a de receber os corpos que para lá são transportados. É uma ilha sem praias, sem relva, sem vida: apenas um bosque de ciprestes sepulcrais, rodeado por penhascos rochosos onde alguém escavou imensas criptas. 

Em duas versões mais recentes, uma cripta do lado direito traz as iniciais do pintor, “A.B.” E o barco que chega parece trazer para ali uma alma que acompanha o sepultamento do próprio corpo.

O verbete da Wikipedia cita os personagens famosos que tiveram fascinação por este quadro (Sigmund Freud, Adolf Hitler), e numerosas obras literárias que se diz serem parcialmente inspiradas nessa paisagem, como A Invenção de Morel de Bioy Casares e alguns contos de J. G. Ballard. 

O escritor britânico Ian McDonald tem um conto intitulado “The Island of the Dead” que certamente também se inspirou nele. 

O quadro de Böcklin tem estranheza bastante para gerar significados contraditórios e mutuamente estimulantes – quanto mais pensamos nele como um quadro triste mais o achamos belo. Quanto mais é amedrontador, mais nos transmite uma impressão de paz e repouso. Isto é intensificado pelo fato de existirem diferentes versões do quadro – uma é diurna, outra é noturna, uma tem um céu tempestuoso, o céu da outra é uniforme... É o retrato de um portal para o Além e, como tudo que não pertence ao mundo da matéria, está diferente a cada vez que o fitamos.





1779) A palavra “aventura” (21.11.2008)



Sempre me foi difícil explicar o que seria o “romance de aventura”, um desses gêneros literários que a gente sabe intuitivamente o que é, mas não consegue definir com precisão científica. Não é fácil dizer o que têm em comum clássicos do gênero como A Ilha do Tesouro de Stevenson, As Minas de Salomão de Haggard, Robin Hood de autor anônimo, Cinco Semanas num Balão de Julio Verne, Os Três Mosqueteiros de Dumas, Scaramouche de Rafael Sabatini, Na Terra do Mahdi de Karl May...

Um dia uma voz me segredou: “Procure na etimologia. Qual era o significado mais antigo, o que fez surgir a palavra?...” Meu Dicionário Houaiss lista uma porção de fósseis linguísticos e chega ao latim, com o verbo “advenire”, que quer dizer: “chegar, sobrevir”. Vejam bem, trata-se de algo que “ad + vem”, algo que se aproxima de nós, que vem na nossa direção. Aventura é qualquer situação em que não somos totalmente donos do nosso destino, em que nos submetemos ao imprevisto, ao que não podemos controlar, ao que pode nos advir a qualquer momento.

A palavra contém também “ventura”, cujo sentido mais imediato é “boa sorte”. Dizemos: “Tive a ventura de nascer numa família de bons princípios...”, não é mesmo? “Ventura” também tem origem no verbo latino “venire”, vir. São as coisas que vêm até nós, tudo que nos advém, que nos sobrevem. (E a esta altura da Reforma Ortográfica já não sei se tais verbos se acentuam ou não). Mas “ventura”, no sentido de sorte, parece vir (mesmo que não venha) de alguma raiz latina de onde nos vem a palavra “vento”. Porque o vento é uma das mais antigas imagens do imprevisível, do que muda sem avisar, do que pode ser favorável num instante e desfavorável no outro, tudo de que dependemos (se somos navegadores antigos, em barcos à vela, trirremes, caravelas, galeões, jangadas) para viver ou morrer.

Viver uma aventura significa estarmos expostos aos ventos, dependentes de forças além da nossa vontade, do sopro de deuses invisíveis que podemos apenas cortejar, engambelar com sacrifícios, subornar com orações. A aventura é essa corda-bamba entre nosso livre arbítrio e um Destino imprevisível e indecifrável. E significa (porque a palavra tem raízes também em “venturum”, vindouro, fato futuro, fato que ainda não aconteceu) estar à mercê de um futuro que talvez já exista, um Destino que esteja vindo ao nosso encontro sem que ainda possamos saber do que se trata.

O romance de aventura se constelou em torno de imagens (balões, piratas, perseguições, espadachins, cavalgadas, tiroteios, viagens, expedições a lugares remotos) que dizem respeito às sociedades e culturas em que foi criado e escrito. No sentido mais amplo, contudo, romance de aventura é todo aquele no qual o autor nos transporta para um mundo onde tudo é possível, qualquer coisa pode acontecer. Um mundo (é curioso!) mais parecido com a vida, cada vez mais imprevisível, do que com a literatura, hoje tão convencional.