sábado, 12 de junho de 2021

4713) O pantelho do detalhe (12.6.2021)




(foto: Mari Lezhawa)

A gente estava numa mesa de restaurante, eram pessoas amigas entre si, professores de uma Universidade, e eu estava lá meio de convidado. Entraram numa discussão qualquer, e esse cara começou a exclamar:
 
– Pessoal, por favor! La paz, la paz!
 
Houve uma gargalhada geral. O fato de ele dizer em espanhol não me chamou a atenção, era apenas um modo de dizer, né? Como quando alguém nos entrega um objeto e a gente diz: “Gracias!”. Um enfeite verbal pra dizer algo comum.
 
Depois eles me explicaram. Era uma gíria da turma deles, porque anos atrás eles tinham recebido ali na Universidade, para dar uma palestra, um professor latino-americano, com muitas homenagens e salamaleques. No dia seguinte o professor ia embora, rolou um almoço de despedida. Aquelas situações em que uma turma de admiradores “bebe cada palavra” do visitante ilustre. Imagine um grupo de psicanalistas recebendo Jacques Lacan.
 
Alguém fez uma pergunta importante e o ilustre começou a responder algo como:
 
– Esta é uma questão muito grave. Para mim, o fator decisivo disto, para Latinoamérica, encontra-se na Bolívia. Vocês conhecem a Bolívia?
 
– Já estive na capital – disse um professor. – Passei uma semana em La Paz.
 
– Perdão – disse outro professor. – A capital da Bolívia é Sucre.
 
– Como assim? – disse o primeiro. – Todo mundo sabe que é La Paz.
 
– La Paz é apenas a sede do governo – disse um terceiro.
 
– E então? – disse o primeiro. – A sede do governo é a capital. É La Paz, portanto.
 
– Não, é Sucre – disse um quarto. – Chama-se capital constitucional.
 
– O país tem duas capitais, então? – perguntou uma professora. – E como é que faz quando---
 
– De acordo com a Constituição, só tem uma – interrompeu o quarto professor. – Que é Sucre.
 
– Vá resolver alguma coisa com o governo de lá, e vão lhe mandar para La Paz – disse o primeiro, que já tinha visitado a cidade.
 
O resultado (me contaram) é que todos se engalfinharam na discussão desse ponto. O almoço acabou, o visitante ilustre teve que partir porque o carro veio buscá-lo, e ninguém ficou sabendo qual era o fator decisivo para Latinoamérica. Desde essa época, eles criaram a expressão “La Paz” para implorar: “Gente, está-se discutindo uma coisa mais importante, não é preciso esclarecer esse detalhe agora”.


O problema é que existem seres humanos, virginianos em sua maioria, que não permitem o menor erro ou imprecisão passar diante dos seus olhos. Tem que parar o desfile de 7 de setembro inteiro, fazem com que dez mil estudantes fiquem marcando passo à espera, enquanto um inspetor se insinua no meio de um pelotão para ajeitar uma trunfa que o vento assanhou. Proibido qualquer coisa fora do lugar! – eis a palavra de ordem.
 
É uma característica do espírito nerd essa obsessão pelo detalhe. O nerd é o resultado de uma mutação genética destinada a resolver importantíssimos problemas da Humanidade numa era de aceleração tecnológica onde mais e mais coisas atingem um nível inédito de complexidade, em virtude de especificações decididas num micro-nível por força do uso de computadores. Precisamos de mentes humanas capazes de distinguir essas nuances.
 
O nerd é um filtro de exatidão. É como um browser que recusa uma senha ou uma URL de 150 dígitos se um deles estiver errado. A gente não pode convencer o browser de que “é praticamente a mesma coisa”. O browser foi programado por um nerd e lhe dirá: “Na verdade, é teoricamente a mesma coisa, mas na prática há a diferença de um dígito, e isto invalida o comando.”
 
Não duvido de que ainda veremos mesas-redondas em eventos científicos com três ou quatro nerds comparando diante da platéia suas versões conflitantes da dízima de “Pi” ou do algoritmo de frequência dos números primos. O rapaz da mesa de som poderá se perguntar qual é a serventia disso para a espécie humana, mas ele está errando o alvo. A espécie humana surgiu para ser capaz de um dia (século vinte, vinte e um, por aí) produzir esses indivíduos capazes de negar o Oscar a um filme porque na cena tal aparece a sombra de um microfone.


Deus está nos detalhes, diz um velho provérbio, e o Diabo está na percepção deles. Esses indivíduos catadores-de-lêndeas são capazes de perceber o que é invisível a todos. Quando incomodam, não o fazem por mal. Você mostra a um deles a foto de sua mãe vestida de noiva e ele diz: “A manga do vestido está desfiada”. Não é culpa dele. Está em seu DNA.
 
Não esqueço uma discussão que vi a respeito de um filme de faroeste. Chamamos o filme de faroeste, e foi o quanto bastou para que um debatedor erguesse o dedo e nos lembrasse que a história era ambientada num Estado qualquer, que já não lembro, mas que ficava na Costa Leste dos EUA.
 
“Sim,” disse alguém, “mas trata-se da história de bandidos que assaltam uma diligência e se refugiam numa fazenda, sequestrando a família do fazendeiro, até que os vaqueiros vêm em socorro do patrão e o libertam. Fazenda, gado, vaqueiros, revólveres, tiroteios, cavalos: é um faroeste”. “Mas, como, se a história se passa no Leste?” insistia o rapaz. Isso foi há uns 40 anos, e provavelmente ainda estão lá, as barbas brancas arrastando no chão sobre as teias de aranha, e não chegaram a um acordo.


Eles são sensíveis à minima incoerência. São como o canário que os trabalhadores nas minas de carvão levam consigo para dentro do poço. O canário é excessivamente sensível a qualquer emanação de gás, e quando um deles cai duro é sinal de que está na hora de evacuar a mina, antes que o gás comece a afetar os seres humanos.
 
Os indivíduos detalhistas são assim: eles são sensíveis a defeitos, erros, incoerências, imperfeições, inexatidões de todo tipo, e antes que essas coisas cheguem a um ponto de incomodar os seres humanos, eles acusam o golpe, ficam pálidos, com sudorese, apontando a página de um livro: “Faltou a crase, faltou a crase!”.
 
Por isso, quando a gente escreve ou quando fala em público, precisa estar sempre na defensiva. Pode haver um deles na platéia. Qualquer afirmação generalizante, tipo “como sabemos, o brasileiro gosta muito de música”, fará erguer-se um braço no auditório e com ele o brado: “eu não gosto!”. Para prevenir ressalvas desse tipo foram criadas expressões atenuantes como “em geral”, “na maioria dos casos”, “em grande parte dos casos”, “normalmente”, “cerca de “, “aproximadamente”... Servem para exorcizar esses indivíduos prontos a brandir uma exceção toda vez que a gente enunciar impensadamente uma regra.
 
E então o jeito é dizer “La Paz!...” – e ir em frente.