domingo, 4 de dezembro de 2016

4186) Ferreira Gullar, 1930-2016 (4.12.2016)



A poesia de Ferreira Gullar me chegou através do LP de estréia de Caetano Veloso, onde ele cantava “Onde Andarás”, com letra do poeta. Um bolero dolente, e lá pelo meio virava uma espécie de tango onde o intérprete mudava surpreendentemente de voz, imitando Orlando Silva. Fiquei associando esta canção àqueles fins de tarde de domingo, quando o sol começa a se por e a gente está meio de bobeira, preparando a hora de voltar pra casa:

Onde andarás
nessa tarde vazia
tão clara e sem fim?
Enquanto o mar
bate azul em Ipanema,
em que bar, em que cinema,
te esqueces de mim?

Gullar àquela altura (1968) já tinha publicado livros importantes, e não tardou para que eu me agarrasse à sua poesia, que sempre me pareceu, em seus melhores momentos, reunir o melhor de vários mundos: as cadências das redondilhas portuguesas (que ele explora tão bem quanto Cecilia Meireles), as imagens surpreendentes e inexplicáveis do surrealismo, a dicção das ruas que o aproxima das letras da MPB, o vigor imagético que (principalmente nas obras mais encorpadas, como o Poema Sujo) fazem o poema virar quase que um roteiro para uma viagem da câmera cinematográfica.

O Gullar teórico também marcou muito a minha geração, até porque ele fundamentava suas teorias sobre cultura e brasilidade não apenas na literatura, onde eu me movia mais à vontade, mas também nas artes plásticas. Tem dois livros dele que eu li intensamente (gostaria de reler agora) entre os 20 e os 30 anos, que foram Cultura Posta em Questão (1965) e Vanguarda e Subdesenvolvimento (1969). Me deixaram conceitos que aplico até hoje.

Nunca tive grande contato pessoal com ele, embora tenhamos participado juntos de mesas redondas, por mais de uma vez. Era um contato rápido, de cumprimentos, mas sem conversa, o que sempre lamentei.

Gullar era um esquentado, pelo que me dizem, e tem no currículo polêmicas famosas, primeiro com o grupo concretista de São Paulo, e mais recentemente com os governos do PT. Mas era também (os amigos me contam) um sujeito compassivo, humano, afetuoso. Era a impressão que deixava nas pessoas com quem conviveu.

Nós, paraibanos, devemos muito a ele, pelo extraordinário ensaio que fez sobre a obra de Augusto dos Anjos, quando estava no exílio. Publicado pela Paz e Terra em 1977, Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina é um desses casos em que um crítico, em meras 45 páginas, sem recorrer a grandes bibliografias nem a anos de pesquisa, mergulha direto nos textos, toca na sua medula e sai dali cheio de revelações.

Exilado em Buenos Aires, Gullar pegou o Eu de Augusto e de certa forma fez com que o lêssemos pela primeira vez. Uma façanha que eu só comparo à de Eric Auerbach, também no exílio, criando seu clássico Mimesis (1946) sem ter acesso a grandes bibliotecas, mergulhando direto na obra de Homero, Rabelais, Tolstoi, revelando  a mecânica entre a tradição coletiva e a inteligência individual dos autores.

Gullar teve uma passagem não muito bem sucedida pelo poema-protesto na série Violão de Rua, na época do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Quando li um dos seus “cordéis” (acho que foi João Boa Morte, Cabra Marcado Para Morrer, 1962), não achei ali nada de cordel. Estrofe, sílabas, esquemas de rimas, tudo era uma salada.  Me pareceu uma contrafação, uma tentativa de pastiche feita por quem não conhecia bem o original, e os resultados, anunciados como “cordel”, acabavam passando para os leitores (e futuros poetas) uma imagem distorcida.

Era sintoma da época, em que a politização da literatura levava os autores a recorrerem, meio às pressas, a modelos populares que eles tinham ouvido cantar sem saber ao certo onde. Algo parecido com os versos de Antonio Callado em sua peça Forró no Engenho Cananéia (1964), onde o grande romancista perde a mão ao lidar com as formas poéticas populares.

Quando esqueceu os modelos e falou somente por si, Gullar produziu alguns dos mais belos poemas em redondilha da língua portuguesa-brasileira.

 Se eu tivesse que pegar apenas uma obra dele, faria como muitos: escolheria o Poema Sujo (1976), um poema-livro autobiográfico onde o poeta, a pretexto de falar de si mesmo, faz um retrato cruel e sincero do seu país.

Não li nenhum dos seus livros de poesia mais recentes, e lamento. Quando esses livros saem, recebem boa cobertura da imprensa, que cita, transcreve. A gente fica conhecendo 10 ou 20 poemas republicados nos jornais e na web, e de certa forma se dispensa de ler o livro, o que é sempre um erro. Não importa. Cada poema lido reafirmava sem susto o poeta que eu sempre soube.