quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

1672) Dercy Beaucoup (22.7.2008)



Dercy Gonçalves fez parte da história do cinema, teatro e TV no Brasil por tantos anos, e retornou tantas vezes à fama, que não me admiro se voltar a fazê-lo daqui dez ou vinte anos, e se vier um dia a comemorar o próprio sesquicentenário. Dercy foi uma dessas velhotas renitentes, carne-de-pescoço, sem papas na língua, que nunca dão o braço a torcer. Os jornalistas adoram chamá-las de “uma força da Natureza” e de ver na sua história pessoal “uma lição de vida”. Termos que, visto sua morte na semana passada, devem estar “dessa finura” de tanto uso. Eu mesmo não resisti.

Os obituários sobre Dercy falam da origem humilde, da carreira sofrida, dos vários e efêmeros “picos” de dinheiro e fama, das desilusões amorosas. Talvez o episódio mais cruel e mais definidor de seu temperamento seja o calote que sofreu de um empresário que administrava suas economias. Ao que parece, o sujeito passou a mão grande no dinheiro da artista, e Dercy, aos 80 anos, teve que voltar às luzes da ribalta e aos estúdios de TV para recomeçar tudo do zero. E o fez com a mesma energia e desbocamento de quando era apenas um brotinho de 40.

Sua voz esganiçada tinha um ritmo próprio que lhe realçava a comicidade. Ela costumava disparar uma saraivada de impropérios no meio das falas decoradas. Quando se punha a recordar o texto escrito ou a improvisar uma intervenção própria dava uma reduzida no ritmo revirando os olhos para o teto, torcendo a boca, fazendo gestos melodramáticos com as mãos, e escandindo as sílabas de um jeito muito engraçado, terminando sempre a frase com os olhos arregaladíssimos voltados para o público ou a câmara. Ficou famosa como a rainha do palavrão, que era seu trunfo maior e seu coringa mais recorrente. Mas sua comicidade ia além disso. Era uma improvisadora contumaz. Parecia sentir-se mais à vontade dizendo as doidices que lhe vinham à cabeça do que ligando um piloto automático e seguindo comodamente o script.

Busquei na Wikipédia o ano do programa de TV “Dercy Beaucoup”; não achei. Foi um programa marcante quando eu era pequeno, a tal ponto que seu título, um trocadilho irresistível, virou o nome informal da atriz. As pessoas diziam: “Ontem eu vi na TV uma entrevista muito engraçada com Dercy Beaucoup”.

Quando jovem, no tempo da chanchada, sua voz parecia ainda mais estridente, devido às precárias aparelhagens de som dos cinemas da época. Não era bonita; na melhor das hipóteses tinha um rosto engraçado que inspirava simpatia, seria uma versão brasileira de Shirley MacLaine, com verve, irreverência, lampejos de graça feminina. Era uma “comediante semântica”, cuja graça estava nela própria, e não nas situações em que se envolvia. Pertencia à camada popular, histriônica, do humor brasileiro, junto com Renato Aragão, Ronald Golias, Oscarito. Era às vezes ranzinza, azeda, mal-humorada. Tinha uma cara de quem nunca vai se deixar dobrar ou abater por coisíssima alguma. Parecia imortal, e talvez o seja.

1671) A Comilança (20.7.2008)



Do meu tempo de faculdade, lembro de aulas sobre “stakhanovismo”. Stakhanov era um operário-padrão na ditadura estalinista na União Soviética. A URSS vivia se esfalfando para sair de uma economia feudalista e competir com o capitalismo norte-americano. Era preciso industrializar o país da noite para o dia, era preciso bater recordes de produção, era preciso criar uma mitologia da produtividade.

Alexei Stakhanov (1906-1977) era um desses caras resolutos e obstinados que um belo dia decidem entrar para a História. Trabalhava numa mina de carvão, e era bombardeado pelas mensagens de incentivo do Partido Comunista: “Trabalhe! Produza! Vamos mostrar a esses porcos capitalistas que somos melhores do que eles!” Em agosto de 1935, Stakhanov extraiu sozinho 102 toneladas de carvão em pouco mais de cinco horas de trabalho. Era um recorde extraordinário, cerca de 14 vezes a quota que se esperava de um operário comum. Em setembro, ele foi mais adiante: extraiu 227 toneladas num único turno de trabalho. Virou herói nacional na URSS e, de certa forma, também nos EUA, pois apareceu na capa da revista “Time” em dezembro daquele ano.

O que é isto? A ilusão comunista? Não, amigos, apenas a doença mais característica de nossa época, o Delírio Quantitativo, que, por pertencer à época, não liga para sutilezas como regime político ou econômico. É algo que vai mais longe e mais fundo. Num século de explosão populacional, de intenso apelo à produtividade/consumo, e de comunicações instantâneas, sempre importa saber quem é o Mais, o Melhor, o Maior. São os parâmetros instintivos do Espírito do Tempo, da religião do Número.

Stakhanov é o herói típico da economia comunista, e não duvido que na China de hoje haja praças e estátuas em sua homenagem. Já no hemisfério capitalista, o Delírio Quantitativo se manifesta de formas mais heterogêneas. O Livro Guiness dos Recordes, por exemplo, não passa de um catálogo, atualizado anualmente, dos stakhanovs do entretenimento, do lazer, da banalidade. A produtividade soviética sempre teve o perfil ascético dos que trabalham por um abstrato Bem Coletivo, enquanto a produtividade norte-americana parece endeusar o concretíssimo Bem Individual. Os soviéticos se orgulham dos seus recordes de trabalho e produção; os americanos, dos seus recordes de lazer e consumo.

Vai daí que dias atrás um tal de Joey Chestnut recebeu um prêmio de 10 mil dólares por ter comido 59 hot-dogs em dez minutos. A prova existe desde 1946. Chestnut empatou com o recorde do japonês Takeru Kobayashi, mas conseguiu comer cinco salsichas a mais, e venceu no desempate. Os norte-americanos adoram concursos de comilança. Assim como os soviéticos se julgavam na obrigação de produzir mais do que a média da humanidade, para provar a superioridade do regime comunista, os EUA se julgam na obrigação de consumir mais do que a média mundial, para provar a superioridade do seu sistema. Quem duvidar, vá aqui: http://eatfeats.com/.

1670) Filmes de época (19.7.2008)





Andei revendo na TV um antigo filme de FC, Colossus 1980 – The Forbin Project, de Joseph Sargent. Nele, um cientista cria um supercomputador para cuidar da defesa anti-mísseis dos EUA, e este acaba tomando conta do mundo através do sistema de telecomunicações. 

O filme é de 1970 e, é claro, sua visão da computação é típica dessa época. Colossus é o típico “Leviatã Cibernético” que aparece em tantos filmes: computadores gigantescos escondidos no interior de um montanha, eles próprios do tamanho de uma montanha feita de fios, transistores, etc.

Consultando alguns comentários on-line sobre o filme, percebi que vários críticos ironizavam esse aspecto. “O filme é muito datado”, diz um deles, “e mostra computadores que trabalham com fitas perfuradas!”. Ora, este é justamente um dos aspectos mais interessantes do filme: mostram o que era a imagem dos computadores em 1970. 

E uma imagem bastante ancorada na realidade, porque li no Internet Movie Data Base que os computadores mostrados no filme são de verdade. Foram cedidos à produção pela Control Data Corporation, desejosa de amealhar um “merchandising” gratuito. Durante as filmagens foi preciso instalar uma enorme parafernália de ar condicionado para que os computadores trabalhassem de fato, sob a vigilância severa de técnicos e de guardas armados.

Os computadores evoluíram numa direção inesperada – miniaturização, multiplicação, acessibilidade, ligação em rede, etc. O mundo informático de hoje é muito diferente do de “Colossus”. Ainda assim, há semelhanças surpreendentes. 

A certa altura, Colossus adquire consciência própria e decide retirar das mãos dos políticos todo o poder, para cuidar da humanidade segundo seus próprios critérios. O Dr. Forbin, seu criador, é mantido sob vigilância total, e há uma cena (extremamente 2008!) em que Forbin caminha pelos corredores do centro científico acompanhado por câmeras de segurança idênticas aos dos nossos atuais condomínios, e através delas e de seus microfones ele conversa com o computador.

Ver um filme de 30 anos atrás e reclamar que ele não parece com nossa época é uma bobagem. É como viajar para o Sri Lanka e reclamar que lá não tem comida brasileira. Se vamos tão longe é porque estamos em busca do diferente, e mesmo se encontrarmos o que nos é familiar devemos reconhecer a raridade desse encontro. 

Um filme de 1950 nos revela, involuntariamente, inúmeras coisas sobre o ano em que foi feito, desde coisas mais superficiais (moda, roupas, carros, cabelo, etc.) até regras de comportamento hoje em desuso, preconceitos, ingenuidades, etc. 

Todo filme é involuntariamente realista, sempre que lança mão do que parece consensual e concentra suas atenções naquilo que se propõe a inventar. É justamente no que não se propõe a inventar, no que copia para não perder tempo, que filmes assim nos dão o retrato de sua época. São filmes datados, sim. Por isso vale a pena vê-los. 





1669) Puritanismo ou depravação (18.7.2008)



Tenho feito muitas críticas às letras escrachadas dos falsos forrós que tocam por aí, o que tem me merecido respostas no tom de: “Que moralismo é esse? O tempo da ditadura acabou”.

Essa resposta coloca uma questão interessante, porque, como se sabe, os anos da ditadura militar não tiveram apenas Censura política, mas também uma rígida censura de costumes. Nudez, palavrão, gandaia, referências a sexo, tudo isso era perseguido, proibido, cortado.

É um milagre que um jornal como “O Pasquim”, para citar apenas um exemplo, tenha conseguido publicar tudo que publicou. E que autores como Henry Miller tenham sido traduzidos e editados no Brasil durante esse período.

O que há é que com o fim da ditadura houve um “liberou geral” na imprensa, nas artes, na TV, na música. Foi uma melhora? Sem dúvida. Mas a melhora está ficando tão histérica que está acarretando uma piora na direção oposta.

E isto se deve ao fato, repetidamente afirmado nesta coluna, de que saímos da Ditadura Militar para a Ditadura do Mercado, que em alguns aspectos é mais confortável de viver do que a outra, mas a longo prazo é igualmente prejudicial.

Na ditadura militar, tudo era proibido. Na Ditadura do Mercado, tudo é mercadoria, tudo pode ser comprado com dinheiro, porque este é o valor que as pessoas mais prezam.

Na ditadura militar, as mulheres eram proibidas de mostrar o corpo. Na ditadura do mercado, as mulheres mostram o corpo, não porque se liberaram do moralismo, mas porque são encorajadas a se oferecer como mercadoria.

O Discurso Puritano interessava à ditadura militar, comandada por generais tradicionalistas e conservadores. Defendiam uma moralidade ascética, reprimida e repressora, inspirada na religião.

Já o Discurso Depravado interessa à ditadura do mercado. Sua estratégia é ditada por empresários cujo objetivo é o acúmulo rápido de dinheiro, pregando o consumo em alta escala e o cultivo de um estilo de vida hedonista, voltado para o desfrute de todos os prazeres oferecidos aos que são ricos e jovens.

Esta segunda ditadura, que a cada ano manda mais na indústria cultural brasileira, precisa ser tão questionada e combatida quanto a anterior. As duas são o extremo oposto uma da outra, mas as duas têm o mesmo efeito nocivo: amputar a totalidade da experiência humana, sabotar a liberdade, pegar populações de jovens e prepará-las cuidadosamente para obedecer aos seus comandos como um rato de laboratório.

Há trinta anos, a ditadura militar oferecia segurança e exigia repressão sexual. Hoje em dia, a ditadura do mercado oferece desfrute sexual ilimitado e está impondo um jogo cuja regra é: “Tudo tem preço. Quanto é o seu?”

Quanto é que você cobra para fazer algo que você é contra?

Quanto cobra pelo seu filho, pela sua filha, pela sua mãe?

Quanto é a aposta que eu vou lhe fazer uma proposta irrecusável?

Quanto é a aposta que meu dinheiro vale mais, para você, do que você mesmo?





1668) Cordel e arranha-céu (17.7.2008)



Há cerca de 30 anos fiz parte da comissão de seleção de temas do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina Grande. Criávamos os motes a serem glosados de improviso pelos poetas. Para se ter certeza de que os cantadores não estavam cantando versos decorados, todos os assuntos e motes eram criados pela comissão e mantidos sob segredo até o momento do sorteio, com a dupla já no palco. Tenho a tentação de dizer que esses motes eram guardados a sete chaves, mas seria faltar com a verdade. Depois de criados, datilografados e fechados, de um em um, em pequenos envelopes brancos, opacos, eles iam todos para um envelope de papel pardo que ficava embaixo do meu braço durante os três dias que durava o Congresso. Da minha mão só saía para a mão de Gilson Souto Maior, apresentador oficial do evento naquela época. Feito o sorteio, o envelope maior voltava às minhas mãos. Quando eu dormia, ele ficava embaixo do meu travesseiro.

Um mote que causou uma certa polêmica foi: “Se não fosse o valor do nordestino / em São Paulo não tinha arranha-céu”. Não pelo conteúdo, mas porque os violeiros criticaram a dificuldade da rima. Diziam: “Tem poucas rimas: chapéu, tabaréu, escarcéu...” Eu replicava: “Que nada! Veja só: cordel, papel, coronel, Babel...” E eles diziam: “Mas isso não rima com céu. Porque um se escreve com U, e o outro com L. Não rima”.

Para mim este é um exemplo típico do rigor da poética dos cantadores, algo que as pessoas de fora não entendem muito bem. Na poesia de livro, na poesia moderna, as noções de rima são muito mais flexíveis, mais liberais. Aceita-se com naturalidade a rima toante, aquela em que os sons são apenas vagamente parecidos. Já a poética dos cantadores exige uma correspondência total de sons – a tal ponto que não aceita rimar “céu” com “cordel”, simplesmente porque os dois se escrevem de maneira diferente.

Neste ponto eu discordo dos cantadores (inclusive escrevi, e canto há anos, várias glosas ao mote em questão). Na minha regra, a rima se dirige ao ouvido. Se os sons são iguais, pouco importa como as palavras são escritas, se com U ou com L. Os próprios violeiros aceitam que a palavra “passo” rima com a palavra “espaço”, mesmo que as duas sejam escritas de forma diferente.

Para mim, esse preciosismo no impasse entre “arranha-céu” e “cordel” decorre de um momento histórico em que começou a predominar, no universo da Cantoria de Viola, uma geração de cantadores alfabetizados, instruídos, diferenciados dos cantadores do século 19, em que a maioria dos praticantes da Grande Arte tinha escolaridade precária (embora também houvesse, é claro, um núcleo de violeiros letrados e cultos). A distinção entre “ÉU” e “EL” é sintoma da vitória do Escrito sobre o Oral, típica dos seguidores de Romano do Teixeira, dos cantadores letrados que querem se afastar do universo de Inácio da Catingueira, o ex-escravo que era só talento e pouca instrução.