quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

5143) Jessier Joyce (15.1.2025)



 
As idéias também rimam, de vez em quando. Às vezes a gente está lendo um romance policial italiano, aí pega por acaso um livro de um poeta argentino do século 19, e quando menos espera vê duas frases, ou dois parágrafos, ou duas cenas que têm tudo a ver entre si, como se aqueles dois autores estivessem conversando por cima das nossas cabeças e do nosso espaçotempo. 
 
Estou lendo o livro de Frank Budgen (James Joyce and the Making of Ulysses, 1934) onde o autor, que conviveu com Joyce em Zurich, recorda suas conversas, e comenta os episódios do romance joyceano com o olhar de quem acompanhou a criação daquela obra, por assim dizer, no próprio set de filmagem. 
 
E me caiu nas mãos o livro novo de meu primo-transverso Jessier Quirino, Eu Parece que Tô Vendo (Recife, Ed. Bagaço, 2024), com o habitual tabuleiro sortido de poemas, quadrinhas, aforismos, comparações, canções, verdades enfeitadas e mentiras involuntárias. 
 
Se eu fosse um profissional rigoroso faria aqui um parêntese para explicar aos meus leitores de Joyce quem é Jessier, e aos meus leitores de Jessier quem é Joyce; mas este blog é apenas o que Antonio Houaiss chamaria “uma obra de desfastio”, então irei direto ao assunto. 
 
Uma coisa em comum entre esses dois cabocos é a volúpia quase-etílica da palavra, o prazer de curtir as palavras, de abri-las como um guri abre um Kinder-Ovo, de colecioná-las como um torcedor coleciona gols na memória. Tanto o irlandês quanto o paraibano são escritores encharcados do linguajar dos livros e das feiras-livres, das academias e das calçadas, dos botequins e das bibliotecas, das lojas de conveniência e das casas de tolerância. 
 
Quando Jessier diz “eu parece que tô vendo” ele alude certamente à “inelutável modalidade do visível” de Stephen Dedalus no Ulysses: o que se pode ver com os olhos e com a mente, ou, como diz o catacego Joyce, “feche os olhos e veja”. 
 
Jessier define o poeta como “um prestador de atenção”, e vou aproveitar um dos seus textos onde ele se põe a explicar como é possível reconhecer um sertanejo pelo seu palavreado, palavrório, palanfrório. Como fazê-lo? Vejamos na página 71: 
 
Pegar bigu na palestra 
nos franzimentos de testa 
e, cada palavra escutar. 
 
É lascança; é caixa-prego 
breado; chorumingado; 
labrojeiro; é pirangueiro 
nem deu fé; amundiçado 
bafafá; foi no migué; 
munganguento; incriquiado; 
infeliz-das-costa-oca;
chinelão espragatado,
imbeiçado; puxincói;
é toitiço; é trimilique
zoró; brebote; miado;
bateu fofo; é breu-com-cola!
Tibungão; atabacado
encangado; cocorote
xexêro; malacabado. (...)
 
Por enquanto basta. Já me serve para deixar de presente uma paginazinha da minha Work In Progress pessoal: o meu Dicionário Nordestinense (também referido como Assim Falou Trupizupe), uma compilação desopilante que pode servir como modesto adendo ao gargantuesco Dicionário do Nordeste (Recife, CEPE, 2013, 2ª. ed.) de Fred Navarro. 
 
Dito isto, vamos ao ave-palavra em pauta.
 
Lascança
É o ato isolado de se lascar, ou a condição permanente de quem vive se lascando. “Veja o exemplo do Botafogo do Rio: não vivia naquela lascança?... Então? Se ele se salvou, qualquer um pode!...” 
 
Caixa-prego
Exemplo clássico de lugar distantíssimo, também conhecido como “Caixa-bozó”. Vale lembrar: é o nome de um lugar real na ilha de Itaparica (BA), com a grafia de “Cacha Pregos”. 
 
Breado
Tecnicamente, significa “sujo de breu”, mas na prática é sujo de qualquer coisa. “Me traz uma muda de roupa, essa aqui tá toda breada de lama.” 
 
Chorumingado
A ação de “choramingar”. “Você pare com esse chorumingado aí, não tá doente coisa nenhuma, vai pra aula nem que seja debaixo de cacete.” 
 
Labrojeiro
Mal-amanhado, mal-feito, mal-arrumado; uma coisa de mau gosto, de má qualidade. “Meu marido inventou de me dar um presente, mas me deu um relógio tão labrojeiro que quando eu vou pra rua eu tiro do braço”. 
 
Pirangueiro
Uma combinação de malandro, desocupado, filador-de-cigarro, pedidor-de-dinheiro-emprestado. “Não quero você andando com esse sujeito, é um pirangueiro de porta de bodega, não tem o menor futuro.” 
 
Nem deu fé
Dar fé é perceber, notar, reparar em alguma coisa. “Levaram meu celular e eu só dei fé quando cheguei em casa”. 
 
Amundiçado
“Mundiça” (ao pé da letra, “imundície”) designa tudo que não presta, principalmente algum conjunto de gente vulgar, de maus costumes. “Não se misture com aquela mundiça daquele bar.” “Você de uns tempos pra cá está todo amundiçado, são esses seus amigos da sinuca.” 
 
Bafafá
Briga, confusão, altercação violenta. Para alguns teóricos mais sofisticados, o mesmo que “rififi”. Ou “sururu”. 
 
Foi no migué
Curiosamente, esta gíria me parece mais carioca do que nordestina, e se for mesmo é mais um desses contrabandos verbais incentivados em mão dupla pela televisão. O “migué”, como o entendo, é truque, é finta, é negaceio, seja físico ou mental. “Cheguei atrasado no trabalho, mas quando me viram dei um migué e falei que tinha saído de novo, pra comprar cigarro”. 
 
Munganguento
Adjetivo, derivado do substantivo “munganga” (=trejeito, careta, gatimônia). “Eu sou fã de Tom Waits, mas depois de velho ele está cada vez mais munganguento”. 
 
Incriquiado
É uma versão-tremida de “encarquilhado”, cheio de pregas, de rugas. “Fiquei meia hora na pia lavando prato, vê só as pontas dos meus dedos, tá tudo incriquiado”. 
 
Infeliz-das-costa-oca
Um insulto pesado cuja origem se perde na noite dos tempos e na madrugada das discussões de mesa-de-bar. Não sei o significado, no contexto, dessas “costas ocas”. Talvez tenha relação com o termo “santinho do pau oco” (=hipócrita), em alusão àquelas imagens de santo, feitas de madeira, que eram ocas e serviam para esconder dinheiro. 
 
Chinelão espragatado
É o chinelo que, de tanto uso, espragatou-se todinho. Amassou-se, deformou-se. Termo parecido é “achinchelado”, mas usa-se com sapato: é quando a gente enfia apenas a parte dianteira do pé dentro do sapato, e fica pisando na borda traseira com o calcanhar: isso é “achinchelar” o sapato (“achinelar”). Atrai puxões de orelha maternos. 
 
Imbeiçado
Ou “embeiçado”: é estar em vias de apaixonamento por outra pessoa, arrastando-a-asa, arriado-dos-quatro-pneus. Em inglês, “infatuated”. 
 
Puxincói
“Puxa-encolhe”: qualquer processo repetitivo, que não avança, que não resulta, que é preciso ficar insistindo nele, mesmo sem muita esperança de resultado. Nas últimas décadas, tem dado lugar ao equivalente “muído”. 
 
Toitiço
A parte frontal do tórax; o peito, o peitoral. “Ele nem bem terminou de falar e eu dei-lhe uma cabeçada no toitiço que ele caiu de bunda na poça do meio-fio.” 
 
Trimilique
Estremecimento generalizado, talvez com causa física, mas geralmente por medo, paúra, choque de covardia, afrouxamento-das-pernas. Existe a variante “estrimilique”. 
 
Zoró
Tonto, desnorteado, desorientado, sem conseguir fixar a vista numa coisa nem a cabeça numa idéia. “Rapaz, quando ela vem falar comigo eu fico zoró, só acerto a dizer besteira, e quando-é-depois a vontade de morrer é grande”. 
 
Brebote
A pronúncia é “brê-BÔ-te”. Conversa fiada, miolo-de-pote, cordão-de-besteira, de nonada, de tutaméia... “Vamos comprar uma cerveja e ficar conversando brebôte na calçada!. 
 
Miado
Adjetivo: mixuruca, fraquim-fraquim, sem graça, sem valor, sem interesse. “Achei muito miada a festa de casamento deles – pra o tanto que ele diz ter gasto...” 
 
Bateu fofo
“Bater fofo” significa ficar muito aquém da expectativa criada. A analogia é com um tambor;  alguém se prepara pra percutir, com muita mizancene, e quando desfere a pancada vê-se que o couro do tambor está mole, frouxo, meh. Lenine usou isso em “Que Baque é Esse”: “E o maracatu passou já com o bombo batendo fofo...” 
 
Breu-com-cola
Breu é mais uma palavra multiuso. Na minha infância, usava-se para negar algo com veemência: “ – Domingo o Campinense vai ganhar do Treze!... – Vai ganhar, breu!  Treze cinco a zero!...”   Essas negações iam se enfeitando e ficando mais barrocas, quando eu tinha uns 12 ou 13 anos já se dizia: “É breu com cola, macaco na escola, tomando Coca-Cola!...” – pra dizer: “de jeito nenhum”, “nem que a vaca tussa”. 
 
Tibungão
O verbo é “tibungar”, onomatopéia derivada de “tchibum”. Ou seja: mergulhar na água com barulho, com espalhafato. “Bora tibungar no açude!” “Tibungão” pode ser um mergulho mais ruidoso. 
 
Atabacado
“Tabaco” é outra palavra multiuso. Um sujeito abobalhado, bundão, é “um tabaco-leso”. Quando uma pessoa cai de maneira desengonçada, barulhenta, ela “se estabacou”. “Atabacado” (ou “entabacado”) deve ser quando o sujeito está furioso, botando fumaça pelas ventas. 
 
Encangado
Preso a uma canga, aquela peça de madeira que mantém juntos os bois de carro. Por extensão, tudo que está sempre junto. “Ele e aquele amigo dele vivem encangados, pra onde vai um o outro vai atrás” Aparece também na expressão “Ah, Fulano, vai encangar grilo!...” – expressão de impaciência equivalente a “vai pentear macaco, vai catar minhoca no asfalto!...” 
 
Cocorote
Pancada na cabeça de alguém com os nós dos dedos. Primo-carnal do “cascudo”, com a diferença de que o “cascudo” é uma pancada seca e rápida no quengo da vítima, e no “cocorote” a gente fecha a mão, pressiona os nós dos dedos no quengo e depois os desliza com toda força, “riscando” o crânio do infelicitado. 
 
Xexêro
Ou “xexeiro”: o indivíduo que “passa xêxo”, ou seja, deixa de pagar uma despesa, uma dívida, etc., e escafede-se da maneira mais discreta (ou mais cara-lisa) possível. 
 
Malacabado
Pode trocar na balança por “labrojeiro”, e só um especialista toca o alarme. 
 
***
 
E para encerrar, preciso dar um alerta: a lista acima não é de invenções jessierianas. Tudo isto é linguagem coletiva, da rua-de-cima e da rua-de-baixo, das-antigas: é um vovocabulário, que gerações atrás já era dito e entendido sem catabís. 
 
Ao mesmo tempo, Jessier é também um palavrista consumado, e no mesmo livro eu cato ao Acaso invenções miúdas, desprovidas da prosopopéia impoluta de quem quer invadir dicionários – é apenas a palavra-nova brotando como um drible-de-corpo necessário para resolver um momento específico. 
 
E assim brotam “esperando de tocaia que ela me lararasse”, “versejador tutanudo”, “ele tava pensaroso”, “jumentice desgovernou sua vida”, “cuscuz cortado aos pedaços e cuscuz esfarofado”, “sofreu uma incinerança no peito”... 
 
Uma palavra nova é um prego-e-tábua onde pregar uma idéia para que ela não fuja, e às vezes a dita-cuja cai no gôto, cai no gôsto, ganha nome, rosto e verbete.