terça-feira, 20 de março de 2018

4327) Nomes de brincadeiras (20.3.2018)



As brincadeiras infantis, ou de meninada em geral (futebol de pelada, p. ex.) sempre produzem um vocabulário muito rico. Aqui vão alguns verbetes comentados, com exemplos.

BALEEIRA
O mesmo que “baladeira, baleadeira, bodoque, estilingue”.  Não tem relação com “navio baleeiro”, dedicado à pesca da baleia.  Também se grafa “balieira”.

Eu, à medida que me punha taludo e me iniciava com as cabras de minha Tia – de um modo que contarei melhor, depois – começava a deixar de lado as caçadas de balieira e badoque, e a me chegar mais, de noite, para a roda das mocinhas e meninas, antes desprezadas como indignas do interesse de um homem.
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, pag. 50)


FRECHEIRO
Mergulho na direção da água; salto com os braços estendidos para a frente.  “Eu gosto é de tomar banho de açude, passar o dia dando frecheiro dentro dágua”.  Também se usa a forma verbal: “Quando ele foi chegando foi logo tirando a roupa e frecheirando dentro do rio”.  Téo Azevedo e Assis Ângelo registram “flexeiro”.

PAPANGU
Mascarados que saem no carnaval; usam macacão folgado, de pano fino, estampado, que cobre o corpo inteiro; usam luvas, e um capuz com buracos para olhos, nariz e boca.  Frequentemente não se consegue distinguir se se trata de um homem ou uma mulher, a não ser que falem – quando, em geral, disfarçam a voz.  Saem na rua, sozinhos ou em bando, tirando brincadeiras com todo mundo.  Assemelham-se aos "clóvis" do Rio de Janeiro, menos no detalhe das bexigas cheias de ar com que os clóvis saem batendo. 
Também se usa o termo como um pejorativo vago, sem referencia específica a esses palhaços: "Tu viu o namorado novo dela?  Muito melhor do que aquele papangu que ela namorava no ano passado."

Contam dele que no carnaval de 1911 brincou tanto de entrudo e bebeu tanto que esquecera de ter terminado o carnaval, e na quarta-feira de cinzas, sem máscara, com voz de papangu, na porta de seu estabelecimento perguntava a quem chegava: "Você me conhece?" 
(Cristino Pimentel, Abrindo o Livro do Passado, vol. 1)

  
ACADEMIA
Ou “cademia” (forma que ouvi com mais frequência, na infância): é a brincadeira de crianças conhecida como “jogo da amarelinha”. 

“Que as pedras, as pedras mesmo, que o senhor ensinou a identificar em mica e cristais de rocha e basalto e etc., sabe o que a gente fazia?  Jogava era na academia, segundo a língua de minha vó; que ela nunca chamou aquilo de simples amarelinha.  Minha vó chama de academia e a gente pulava, atirando a pedra no corpo desenhado a giz no chão, no puro chão, único lugar onde o giz cabia, a gente pulava por um fio, equilibristas, as pernas abertas pra não pisar nas linhas do corpo e ser o otário número 1, de marca maior, tendo apenas o direito a um minuto, no descanso, e então prosseguindo até atingir o céu.”
(Marilene Felinto, O Lago Encantado de Grongonzo),

O nome “amarelinha” tem ligações com outra denominação, “jogo da maré”, nome certamente vindo do francês “marelle”.

Alguns minutos depois, ouviu-se o barulho das meninas jogando maré e cantando:
Três passos no éter
E volte à Terra
Jogue a vértebra
E a negra álgebra
O chocalho passeia
A estupidez humana.
(Stefan Wul, A Cadeia das 7, tradução de David Jardim Júnior)

Ao que parece, o mesmo jogo em Portugal chama-se “macaca”, como se vê na tradução portuguesa do mesmo livro, mesmo trecho:

Alguns minutos depois, ouviram as gémeas jogar à macaca.  Cantavam:
Três passos no Aither
E regresso à Terra
Atira a vértebra
E a negra álgebra
O guiso propala
A estupidez humana.
(Stefan Wul, O Império dos Mutantes, tradução de Amadeu Lopes Sabino)

Em inglês é  “hopscotch” e em espanhol “rayuela” (que serviu como título para o famoso romance de Julio Cortázar).


POR CIMA
No futebol de  pelada, na ausência de traves, é comum que as duas barras, ou gols, sejam feitas com duas pedras, dois montes de roupas, etc.  Dessa forma, um gol só se distingue claramente de uma bola-fora quando o chute é rasteiro. Nas bolas altas ou a meia-altura, é o consenso (e o “bocão”) que define.  A bola “por cima” é a que passa por cima de uma das pedras que marcam a meta -- equivaleria portanto a uma bola na trave.  Quando ao limite superior da barra, é determinado pela altura do goleiro: o chute parte, o goleiro salta e tenta alcançar.  Se pelo menos toca nela, considera-se que a bola não foi “alta”, e vale o gol.  Muitos goleiros acabam pulando menos do que poderiam, para não correr esse risco; mas, como acontece com tudo nos jogos de pelada, onde não há juiz, quem determina se foi gol, se foi “por cima” ou se foi “alta” é o bate-boca que se segue imediatamente após o lance.


ALAÚÇA
Corruptela de "La Ursa". Folguedo de carnaval que consiste num homem fantasiado de urso, com roupa feita de estopas velhas, puxado por uma corrente presa ao pescoço, e que percorre as ruas seguido por um grupo musical com sanfona, zabumba, pandeiro, etc.  Saem com latas na mão, pedindo dinheiro de porta em porta e dançando no terraço de cada casa, seguidos por uma multidão de moleques.  Originalmente devia-se dizer: “Olha, lá vem La Ursa!”, que deve ter mudado para “Lá vem a ‘La Ursa’!”  e finalmente “Lá vem o Alaúça!”. Um corinho frequente gritado por todos diz: “Alaúça quer dinheiro! Quem não der é pirangueiro!”. (Pirangueiro é vagabundo, malandro, etc.)

Vamos embora, segue o itinerário
por ali passamos, por aqui passou
um alaúça de fita amarela
abrindo janelas para o nosso amor.
(Alceu Valença, Marim dos Caetés)


AMORCEGAR
Pegar carona num caminhão ou outro veículo, pendurando-se na parte traseira.  Prática comum entre garotos de bairro.  Também usa-se dizer: "Pegar morcego".  "Quando a mãe de Fulano está em casa ele passa o dia quieto, não sai nem no terraço, mas quando ela vai na rua ele corre pra pista e fica amorcegando os ônibus". 
A origem da expressão é a posição em que o garoto fica, como um morcego pendurado no teto da caverna.  O "pegar morcego" pode ter função prática (ir daqui até ali sem pagar passagem de ônibus) ou ser uma simples brincadeira perigosa e excitante.  Não se aplica quando a pessoa está numa bicicleta e agarra o veículo para poupar esforço.

E o menino amorcegando caminhão
foi apanhado numa rede de cordão
sem entender o triste significado
da palavra educação.
(Ivan Santos, Ilha do Bispo)

Eu, por mim, como lhe disse, tinha chegado atrasado.  Assim, só quase uma hora depois que passou a Cavalhada, foi que o primeiro devoto meteu o pé na Estrada, mas, agora, já está tudo quanto é de gente vindo de Estaca Zero, a pé, por aí, de Estrada afora!  Eu tive a sorte de amorcegar um caminhão, que me deixou no Cosme Pinto!
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino)