sábado, 31 de julho de 2021

4729) "O Homem do Castelo Alto" (31.7.2021)



Acabei de ver hoje a primeira temporada da série de TV criada por Frank Spotnitz, tendo como base o romance de Philip K. Dick, o clássico The Man in the High Castle (1962). Primeiras temporadas são geralmente enganosas, quando a série é boa, porque as segundas, terceiras etc. têm justamente a missão de produzir reviravoltas em tudo que elas mostraram.
 
Então, não vou me deter aqui nas minúcias do roteiro, do quem está do lado de quem, de quem está mentindo, ou das consequências das muitas peripécias destes dez primeiros (e muito bons) episódios. Uma série desta natureza vive das viradas-de-mesa que produz.
 
Li o livro de PK Dick muitos anos atrás, na saudosa coleção “Asteróide” da Editora Sabiá; pretendo reler agora na tradução de Fábio Fernandes para a Aleph, enquanto vejo as temporadas restantes. Não leio para ficar de caneta em punho checando fidelidades e infidelidades ao original. Uma série é uma obra autônoma. Um filme não é uma transposição de um livro. É uma variante, uma expansão, uma obra nova criada a partir das idéias sugeridas pela obra original. Se há de haver “fidelidade”, que seja ao espírito, não aos detalhezinhos de enredo ou cenário.

 
A ambientação visual é muito bem cuidada, “de época”, numa paleta de cores que vai do marrom ao cinza-chumbo, do sépia ao azul-defunto, e não vou mais me alongar para não parecer avaliação de enólogo. Sempre haverá um nerd capaz de freezar a imagem e dizer que o cartaz tal não poderia estar ali, mas num filme o que vale é a atmosfera, a impressão cumulativa de detalhes visuais que se reforçam e se enriquecem.
 
É uma América empobrecida, encardida, sovada, cerzida, rebocada, onde as únicas partes reluzentes e triunfalistas são os edifícios do Reich e do Império Nipônico, as limusines dos militares, os foguetes intercontinentais cruzando os céus daquelas cidades anacrônicas e cheias de lixo.

 
Bom roteiro, boas interpretações dos atores, fotografia e montagem ótimas. O roteiro cumpre a função de criar uma permanente incerteza com base na violência e tensão do ambiente que descreve. Alguém talvez a rotule, ao invés de “ficção científica” ou de “História alternativa”, como uma série de “ação e aventura”. Eu a colocaria na prateleira de “Conspiração e Suspense”.

 
Para quem não conhece a história: a premissa é simples. Os Aliados perderam a II Guerra Mundial; os EUA foram invadidos e dominados. Na Costa Leste, do lado do Atlântico, instalou-se um governo da Alemanha nazista; na Costa Oeste, do lado do Pacífico, um governo do Império Japonês. Entre os dois, há uma imprecisa zona neutra, precária, pobre, cheia de refugiados e clandestinos.
 
A ação transcorre no começo dos anos 1960, quando os norte-americanos já se acostumaram a abaixar a cabeça diante dos invasores, mas existe uma Resistência “underground”. É uma história de espionagem, duplas identidades, pessoas com documentos falsos, encontros clandestinos, disfarces.
 
Philip K. Dick foi um dos escritores que mais absorveram o clima paranóico da Guerra Fria, da desconfiança permanente, da situação de nunca se saber ao certo quem é a pessoa em cujos olhos estamos olhando, a pessoa para quem trabalhamos, ou que trabalha para nós, a pessoa que dorme conosco na mesma cama. Um aliado, ou um enviado do inimigo?
 
Este espírito conspiratorial está presente na obra de PK Dick, principalmente em partes de O Homem Duplo (1977), Loteria Solar (1955), O Tempo Desconjuntado (1959). Pessoas meio perdidas num ambiente, sabendo que estão sendo caçadas por alguém (ou caçando alguém), sem saber ao certo quem é o amigo e quem é o inimigo.


 
A situação imaginada por PKD torna-se ainda mais rica de possibilidades dramatúrgicas porque trata-se de um povo oprimido por duas ditaduras que são adversárias uma da outra, e que vivem numa convivência tensa e fingida, apenas esperando o momento de dar o bote. Os norte-americanos ficam naquela situação da população de Tóquio tentando escapar da briga entre Godzilla e Ghidorah, algo assim.
 
Dick ficou muito marcado pela II Guerra Mundial, a que seus livros se referem com frequência. É curioso que no Homem do Castelo Alto (e nesta primeira temporada da série) não haja praticamente nenhuma referência à Itália, à Inglaterra, à França, à URSS – é como se esses protagonistas do conflito não existissem mais, para fins práticos.
 
Finalmente: o grande “gimmick” fantástico da obra original era o livro imaginário The Grasshopper Lies Heavy, onde era descrito um mundo alternativo onde os Aliados venceram a guerra. Na série de TV, o livro é transformado em filme – uma profusão de rolos de filme em 16mm que passam de mão em mão ao longo de uma corrente de “subversivos”, filmes que mostram (neste ponto a mudança enriquece muito a idéia original de Dick) mundos diferentes daquele. Como a invasão de uma realidade paralela, através da imagem cinematográfica.

 
O recurso lembra um pouco o filme vanguardista e anônimo usado como desencadeador do enredo de Reconhecimento de Padrões (2003) de William Gibson: “the Footage”, como a chamam, trechos de um filme maior que ninguém sabe de onde vem, quem fez, nem por que razão está sendo liberado aos poucos, e só para um pequeno grupo secreto.
 
PK Dick sempre encarnou o Mal, em seus romances, naquelas entidades impessoais, desumanas, sem empatia, fossem indivíduos ou organizações. Fosse um inseto, um viciado em drogas, um andróide assassino, um líder messiânico, um policial, ele via esse mecanicismo mental como uma expressão do Mal em si.
 
Nesta história, ele achou no Partido Nazista e no Império militar japonês duas encarnações perfeitas para essa imagem: entidades fortemente hierárquicas, insensíveis, poderosas, com um objetivo a alcançar e com a disposição de esmagar quem se atravesse em seu caminho.
 
No episódio 4, quando Juliana pergunta a Lem Washington (um dos membros da Resistência) se ele viu os filmes, este responde: “Meu trabalho não é assisti-los. Eu os passo adiante, e só.” Pode ser que o personagem revela outras facetas no futuro. Mas, em essência, é esse o comportamento que Dick critica, como quando o oficial nazista Smith explica a Joe Blake, no episódio 5: 

“Sabe por que motivo você falhou? Você é um simples componente, em uma máquina complexa, a qual só funciona se cada uma de suas partes fizer exatamente o que tem que fazer, em sincronia com as demais. Mas se você decide, sem saber o que os outros estão fazendo, simplesmente agir à sua maneira, cedo ou tarde a máquina vai se quebrar”.
 
Tanto as ditaduras quanto as Resistências tendem ao mesmo comportamento burocratizado, verticalizado, cala-a-boca-e-obedece, em que a caça e o caçador se espelham um no outro: como o humano e o andróide, o policial e o drogado, o médico e o louco. Para PK Dick, ninguém é bonzinho, ninguém está a salvo de a qualquer momento se transformar no seu oposto mais temido e mais odiado.
 
 
 
 




terça-feira, 27 de julho de 2021

4728) Uma música com várias letras (27.7.2021)



Sou assinante há muitos anos, desde que entrei na Internet (um quarto de século, mais ou menos), da lista de mensagens A Word A Day, que nos envia exatamente isto: Uma Palavra Por Dia. Todos os dias (exceto sábados e domingos) recebo um email enviado pelo competentíssimo Anu Garg (um norte-americano nascido na Índia) e sua equipe, com um verbete de dicionário.

Uma palavra, sua natureza gramatical, seu significado, sua origem, seu(s) emprego(s) na linguagem corrente, um ou dois exemplos tirados da imprensa e da literatura.

A gente assina mandando um email para:

https://wordsmith.org/awad/subscribe.html

Pra quem estuda inglês (quem traduz, etc.) é uma mão na roda. Todo dia uma pequena surpresa.

A pequena surpresa de hoje foi a palavra contrafactum, que eu nunca tinha visto. Copio abaixo o teor da mensagem:

contrafactum 

Pronunciation:

(KON-truh-fak-tuhm) https://wordsmith.org/words/images/sound-icon.png

 

MEANING:

noun: A composition that makes use of an existing piece of music with different lyrics.

 

ETYMOLOGY:

From Latin contrafacere (to counterfeit), from contra- (against) + facere (to make or do). Earliest documented use: 1940.

 

NOTES:

A contrafactum aka contrafact is, literally speaking, counterfeiting. It’s what you get when an existing tune is used with a new set of words. A well-known example is The Star-Spangled Banner, the national anthem of the US, which is sung to the music of “The Anacreontic Song” popularly known as a drinking song. Other examples of contrafacta are when secular music is used for religious purposes and vice versa.

 

USAGE:

“At other times, the relationship between contrafacta seems far-fetched. Why should ‘Peter’s Denial’ have the same music as Judas’s reproach of Jesus for befriending Mary Magdalene?”
Joseph P. Swain; The Broadway Musical; Scarecrow Press; 2002.

 

Como se vê, é um verbete sempre curto, objetivo, direto ao ponto, muitas vezes complementado por links úteis.

A palavra “contrafactum” me levou ao meu Dicionário Houaiss, que não a registra. E a uma breve pesquisa, porque esse assunto sempre me interessou.

A paródia musical (pegar uma canção séria e botar uma letra engraçada, na mesma melodia) é um exemplo popular de contrafactum. O brasileiro é o rei da paródia. Tenho uma turma de amigos cuja diversão era cantar a melodia de Rock Around the Clock de Bill Haley & Seus Cometas com a letra de Osório Duque Estrada para o “Hino Nacional Brasileiro”. Se aconchambrar um pouquinho, cabe.

Eu não considero que uma versão para outra língua constitua um “contrafactum”. Seja parecida com o original, ou muito diferente dele, a “versão” é necessária muitas vezes para ser gravada em outro país, é algo tão natural quanto traduzir um livro do inglês para o português. O “contrafactum” seria o equivalente a traduzir um livro do português para o português.

Existe o caso de um mesmo compositor colocar letras diferentes numa mesma melodia. Lembro o caso de Chico Buarque, com O Que Será, canção incluída na trilha sonora do filme Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto, gravada com três letras ligeiramente diferentes pelo próprio Chico, por Milton Nascimento (no álbum Geraes) e por Simone.

As baladas populares da Europa nos séculos 18 e 19 eram frequentemente escritas para serem cantadas com uma melodia de conhecimento público. Folheando os arquivos da época (ou vendo as fotos em livros) a gente se depara constantemente com o aviso, logo abaixo do título do poema: “To the tune of XXX” (“Para ser cantada com a melodia de XXX”), sendo XXX alguma melodia popular daquele tempo, conhecida por todo mundo.

Os comentários de Anu Garg, acima, falam que muitas vezes a música profana recebia letras religiosas, e vice-versa. Fala-se que o escritor Rudyard Kipling, que além de romancista e contista era ótimo poeta, costumava cuidar do seu jardim (seu passatempo favorito) cantarolando em voz baixa hinos protestantes. É possível que muitos dos seus poemas, que são impecavelmente metrificados, tenham sido compostos desta forma, “letrando” a melodia de um hino qualquer, o que facilita a memorização.

Um exercício interessante para a composição de canções populares seria um letrista entregar a mesma letra para cinco ou dez compositores diferentes, e cada um deles a musicaria de acordo com seu próprio estilo e inspiração. Depois, os resultados seriam agrupados num álbum.

Do mesmo modo, um compositor entregaria a mesma melodia para cinco ou dez poetas, que colocariam letras diferentes na música, cada um deles sem ver o que os outros estavam fazendo. (O projeto só teria sentido, claro, se todo mundo estivesse sabendo do que se tratava, mas sentindo-se livre para seguir a própria inspiração.) 

O objetivo de um projeto assim não seria fazer a comparação e a competição entre os resultados, mas ilustrar as incontáveis sugestões e possibilidades de combinação entre versos e melodias.

Não sei se muita gente já percebeu, mas as canções de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira Asa Branca e Assum Preto são totalmente simétricas, apesar de bem diferentes (Asa Branca é em tom maior, a outra em tom menor). Já cantei muitas vezes, em mesa de bar, uma delas com a letra da outra, e todo mundo cantou junto, sem perceber a mudança.

 

 


sábado, 24 de julho de 2021

4727) O poder da imagem literária (24.7.2021)



("A Solidão do Cariri", de Flávio Tavares)

Estava trocando mensagens com o cineasta Marcus Vilar, eu no Rio, ele em João Pessoa. Toquei no assunto de mudança de residência, o transtorno, a trabalheira. Ele trouxe uma comparação típica da tradição oral: “Quando eu morava em Campina eu mudava tanto de endereço que quando chegava no quintal as galinhas levantavam os pés pra amarrar.” 
 
A linguagem popular é cheia dessas imagens, que eu considero literatura pura.
 
Claro que para muita gente literatura é alguma coisa escrita assim:
 
“Capítulo 1 – Quando o sol despontou no horizonte com as róseas radiações do alvorecer, a passarada pipilava em festa por todas as veredas do vergel, enquanto as gotas iridescentes de orvalho tremulavam na borda das folhas que as haviam recolhido ao rocio da madrugada...”
 
Cada um com sua literatura. A minha é aquela ali, das galinhas.
 
Ezra Pound via uma das riquezas expressivas da poesia (e eu vejo, por extensão, na prosa) no recurso da fanopéia, termo grego que eu traduzo aproximadamente por “criação de uma imagem”. A criação de uma imagem sensorial através de palavras.
 
“Sensorial” envolve os cinco sentidos e também uma outra coisa que os envolve, uma certa percepção gestáltica (=de conjunto) de uma situação. Aquilo que a gente percebe numa fração de segundo quando abre uma porta e “fotografa” uma cena.
 
O povo fala assim: “Fui pedir explicação a Fulano sobre ontem de noite, mas quando cheguei na casa dele e toquei no assunto ele ficou mais desconfiado do que cachorro em bagageiro de bicicleta”.
 
O que diz uma imagem como essa? É uma percepção não apenas sensorial, ou sociológica. É meio difícil decifrar sociologicamente o que se passa na mente de um cachorro. Mas parece haver uma certa telepatia mamífera, primordial, entre nós e essa rapaziada. Todas as vezes que eu vi um cachorro sendo levado no bagageiro de uma bicicleta vi que ele estava incomodado, pouco à vontade, amedrontado mas estóico, suportando aquilo sem uma percepção clara do por quê.
 
Ao contrário dos gatos, que são criaturas líquidas e quase imateriais, os cachorros são bichos sólidos, rígidos, que se acomodam com dificuldade até num tapete liso. Quanto mais no bagageiro de uma bicicleta em movimento!
 
É isso mesmo?  Não é?  Pergunte ao cachorro.
 
Chamo isso de imagem literária porque, diferentemente da descrição científica de um fenômeno (mesmo uma descrição “de Humanas”) é algo que depende da memória, da observação, da sensibilidade e da imaginação de quem registra e descreve.
 
Gente do povo não descreve as situações da vida de maneira científica, embora muitas vezes demonstre capacidade notável de observação, objetividade e síntese. Que seriam, em tese, as qualidades da boa observação científica. É uma ciência, mas uma ciência empírica, intuitiva, uma ciência do concreto. A ciência da descrição aguda, perceptiva, mas presa demais ao exemplo, uma “ciência do concreto” como Lévi-Strauss via em certos povos.
 
O valor dessas comparações está em que descrevem casos ou situações extremamente específicos, mas que todo leitor reconhece. (OK, nem todo – mas isso vale para toda imagem literária, sem exceção.)
 
O nordestino diz de vez em quando: “O técnico desse time está tão desorientado quanto cachorro que caiu da mudança”.
 
Todos nós conhecemos, de viver, de ver ou de ouvir falar, essas mudanças de pobre, complicadas, num caminhão velho de um primo, os móveis amarrados com cordas, as caixas de papelão sacolejando, e lá em cima um cachorro perdidão, olhando as calçadas que passam. Quando o caminhão dá um solavanco maior, ele cai lá de cima, se machuca, se atrapalha, o caminhão vai embora. E agora?
 
“Fulano está mais perdido do que cego em tiroteio”. Não precisa de muita imaginação para absorver uma imagem poética (sim, é uma imagem poética) de tamanho impacto.
 
Pode-se dizer que a linguagem popular se baseia em duas coisas: visualidade e exagero? “Fulano é tão avarento que se cair nágua morre afogado, pra não abrir a mão”.
 





quarta-feira, 21 de julho de 2021

4726) Poesia e sonoridade (21.7.2021)



(by Quino)

Nos primeiros anos da vida, aprendemos a ouvir e a falar.  Somente depois disso aprendemos a ler e a escrever.  Primeiro conhecemos as palavras como um conjunto de sons, e só depois as vemos como um conjunto de sinais gráficos. 
 
Mesmo que não se perceba, existe em nossa mente uma voz que pronuncia em voz baixa cada palavra que lemos, fazendo a conexão entre a linguagem escrita e a falada.
 
O som das palavras está para a poesia assim como a cor está para as artes plásticas. Existe. É um recurso que pode ser útil para nossa expressão. Não temos que pensar nele o tempo todo, mas sua existência precisa ser percebida. Quando usamos um recurso sem atentar para ele, estamos sujeitos a cometer erros, a produzir efeitos que não desejamos.  
 
Fazer poesia é, entre outras coisas, fazer combinações de sons, parecidos ou diferentes.  A rima é o exemplo mais conhecido.  Quando terminamos os versos repetindo os mesmos sons, isto cria no leitor uma expectativa.  Ao escutar um som novo no fim de um verso ele deduz que esse som deverá se repetir logo em seguida, mas não sabe ainda qual a palavra que será usada para repeti-lo.  Cabe ao poeta satisfazer essa expectativa através de uma palavra que repita o som e traga uma informação nova.  
 
Poetas pouco habilidosos usam rimas forçadas. Enfiam no poema uma palavra que não tinha nada a ver com nada, apenas para obedecer à obrigatoriedade da rima.  O ideal é cumprir a regra dando uma impressão de que ela não acarreta dificuldade, como se a rima fosse algo feito quase involuntariamente pelo poeta. A aparente facilidade surge porque o artista disfarça efeitos que na verdade deram-lhe um enorme trabalho para obter.
 
Tratar da sonoridade das palavras não é só assunto da poesia, mas da prosa de ficção, da não-ficção, do jornalismo...  
 
Digamos que estou descrevendo numa reportagem uma cena em que alguém pegou um documento e viu algo rabiscado sobre ele.  Digo: “As palavras estavam bem claras, ao lado da marca-dágua da página.” 
 
Há uma repetição involuntária de sons.  Posso dizer, muito melhor: “O texto estava bem visível no alto da folha, junto à marca-dágua”.   Mantenho o termo “marca-dágua”, que tem significado muito específico. O resto pode ser trocado por sinônimos, fazendo a frase soar melhor, e dando até uma idéia mais clara do que pretendo dizer. 


(Ascenso Ferreira, recitando)

A repetição de sons dá uma idéia de simetria, como a repetição de formas.  Como no poema “Os engenhos de minha terra” de Ascenso Ferreira:
 
Um trino... um trinado... um tropel de trovoada...
e a tropa e os tropeiros trotando na estrada.  (...)
 
O som de “tr”, assim repetido, nos faz ouvir, misturado ao conteúdo descritivo das palavras, a batida rítmica dos cascos dos cavalos dos tropeiros.
 
Em outro poema, “Vou danado pra Catende”, ele diz:
 
Mangabas maduras
mamões amarelos
mamões amarelos
que amostram, molengos
as mamas macias
pra a gente mamar... (...)
 
A descrição das frutas, insistindo na letra “m”, evoca a sensualidade do prazer oral, como se ele fizesse o leitor experimentar as frutas com os próprios lábios.


(Olavo Bilac)

Olavo Bilac (“Crepúsculo na Mata”) reproduz a riqueza das vozes dos animais da floresta:
 
O amor apresta o gozo e o sacrifício na ara:
guinchos, berros, zenir, silvar, ululos de ira,
ruflos, chilros, frufrus, balidos de ternura...  (...)
 
Não apenas o significado, mas os próprios sons das palavras escolhidas nos dão a idéia da variedade e da estranheza desses sons.

Há um divertido poema de Pablo Neruda, “Orégano”, em que ele descobre essa palavra e se deixa fascinar por ela. Sai pelas ruas bradando: “Orégano! Orégano!”. À sua passagem as pessoas se espantam, e os leões se ajoelham aos seus pés. Toda palavra nova que descobrimos é uma palavra mágica, capaz de gerar prodígios.
 
Guimarães Rosa, no conto “São Marcos” (em Sagarana, 1946), tem um longo trecho sobre a magia sonora das palavras, que segundo ele, numa expressão que se tornou famosa, “têm canto e plumagem”, ou seja, se impõem pela sua força melódica e pela vividez de sua sugestão visual. 
 
As palavras não se associam apenas pelo seu significado, mas também pelo som.  Muitas vezes o poeta escreve intuitivamente, usando a técnica de “palavra puxa palavra”, em que prevalece a melodia que elas criam entre si, mais do que o seu possível sentido lógico.  Nesses momentos a poesia afasta-se da prosa banal, afasta-se da linguagem cotidiana, passa a se organizar em termos que lembram os da música: sonoridade, ritmo, melodia, harmonização de sons.  Ganha uma dimensão que a linguagem comum não tem. 

Será isso um mero jogo de formas, de enfeites vazios?  Depende do poeta.  Ele pode inclusive usar esses sons para produzir no leitor, com mais intensidade, a sensação de reconhecimento de um contexto social. 


(estátua de Carlos Drummond, no Rio de Janeiro)

Em “Os materiais da vida”, Carlos Drummond diz:
 
Drls? Faço meu amor em vidrotil
nossos coitos serão de modernfold
até que a lança de interflex
vipax nos separe
em clavilux. (...) 
 
Que palavras são estas? Pouco importa.  O som delas nos traz imediatamente à memória os nomes de centenas de marcas de produtos, de materiais plásticos ou metálicos, de invólucros, de texturas. 
 
Ironizando o amor em tempos de tecnologia e comércio, o poeta multiplica as sílabas que são a cara da indústria, da publicidade, dos comerciais da TV.  Pode-se dizer que essas palavras têm seu significado determinado, antes de tudo, pelo seu próprio som.
Qualquer frase poética, qualquer verso que consideramos belo poderia ter sido escrito de muitas outras maneiras.  É bem possível que o poeta tenha escolhido aquelas palavras não apenas pelo sentido – inúmeras outras poderiam ter dito a mesma coisa – mas pelo seu som.
 
Fazer poesia é tentar o tempo inteiro escolher a palavra mais adequada entre todas as palavras possíveis.
 
 
 
(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, Ed. Segmento, São Paulo, julho 2008.)
 






domingo, 18 de julho de 2021

4725) Minhas canções: "Eu Vi a Máquina Voadora" (18.7.2021)



Conheci Silvério Pessoa lá pelos idos de Mil Novecentos e Cocada, quando ele era o vocalista da banda Cascabulho, e eles vieram se apresentar no Rio.
 
Creio que essa primeira vez foi lá no saudoso Ballroom, no Humaitá. Era uma casa de shows que a gente chamava afetuosamente “o Bauru”: um salão amplo, com dancing grande, muitas mesas, bom palco. Antigamente funcionou ali (não alcancei essa época) o “Oba Oba”, o famoso show de dançarinas mulatas de Osvaldo Sargentelli. 

Tempos depois, durante um ano inteiro, foi a sede das “Segundas Eletroacústicas” promovidas pela banda Cabruêra. Toda 2ª. feira eles faziam um show e traziam convidados. Eu cantei lá numa noite em que o outro convidado era B Negão, e sugeri que eles botassem no cartaz: “HOJE – B Branquelo e B Negão”.
 
Voltando ao Cascabulho: depois do show, fui ao camarim conversar com eles, porque não sabia muita coisa do repertório da banda e me surpreendi vendo Silvério desfiar um rosário inteiro de cocos de Jackson do Pandeiro. Ficamos amigos e alguns anos depois, tendo ele saído da banda e começado carreira solo, fui várias vezes ao estúdio Drum, em Laranjeiras, perto de onde eu morava, para assistir as gravações do disco de estréia, Bate o Mancá, com o repertório do grande Jacinto Silva.



Eu sou um compositor que de vez em quando canta, Silvério é um cantor que de vez em quando compõe. Talvez nem tão de-vez-em-quando assim, porque já me mostrou muitas melodias. Mas acho que o sujeito que canta bem, que tem a cancha e a malícia da recriação musical, tem um prazer especial em pegar uma música já feita, já famosa, virá-la pelo avesso e perguntar: “Que tal assim?...”, e a platéia fazer: “Uau”.
 
Vai conversa, vem papo, a gente se reencontrando no Recife, no Rio, na Paraíba; Silvério me fez uma homenagem (chega uma idade em que a gente recebe homenagens; é preciso estar preparado) usando num disco dele o título Cabeça Elétrica, Coração Acústico, que eu tinha usado num cordel de 1981, impresso na gráfica da Casa das Crianças, de Olinda, reduto de cantadores e de cordelistas mantido pelo saudoso Giuseppe Baccaro.




Silvério conta que na verdade me conheceu no palco antes de eu conhecê-lo, pois me viu cantando numa “calourada” da UFPE, a famosa festa pós-vestibular onde artistas se sucedem no palco cantando para um ginásio cheio de estudantes de chope em punho. Eu gostava de cantar nesses ambientes, porque se você sobe num palco sozinho com um violão e vê alguns milhares de pessoas eufóricas, precisa apenas de meia dúzia de músicas com letra provocativa, tonitruante e desembestada, e isso felizmente nunca me faltou.
 
Eis-senão-quando Silvério me manda uma música parcialmente letrada, querendo que eu a finalizasse. A idéia era colocar uma faixa com inserção de vozes e versos de cantadores de viola “de verdade”, e a canção tinha que evocar os estilos da Cantoria.
 
Ajeitei os versos, pegando as idéias que já tinha, escrevi mais alguns, pensamos junto na questão do refrão (que acabou ficando “Eu vi a máquina voadora!”). E lá se foi Silvério pro Recife, e meses depois fui eu, e entrando no estúdio da Luni ele me mostrou as fitas já gravadas. Ali estava Alceu Valença compartilhando os vocais! Pedi uma cadeira. Ali estava meu amigo Zé Vicente da Paraíba de viola em punho, cantando seus próprios versos inspirados pela canção. “E o que eu posso querer mais?”



(Zé Vicente da Paraíba)

A canção em si tem um pouco desse visionarismo nordestino high-tech, onde se misturam eletricidade e Tarô, entidades indígenas e objetos voadores não identificados, subterrâneos coloniais e raio laser. Um clima presente nos romances fantásticos de Luís Berto ou de Aldo Lopes, nas “mercadorias e futuro” de Lirinha, no cinema futurista da Zona da Mata.
 
 
*******
 
https://www.letras.mus.br/silverio-pessoa/386050/
 
 
Eu Vi a Máquina Voadora
(BT & Silvério Pessoa, 2005)
 
Zé Vicente:
Os heróis aviadores
ou sejam, aviadoras,
nessas máquinas voadoras,
pilotos e inventores;
mecânicos e projetores
com hidrogênio ou com gás
engenharia capaz
pra motores diferentes
cruzando várias correntes
das camadas siderais.
 
Eu vi a máquina voadora!!!
 
Saber que quem pensa não é a cabeça
por mais que pareça saber computar;
os nervos do corpo são cabos de modem
que sabem e podem sentir ou pensar.
 
Saber que um cachorro entende linguagem
que os seres humanos já nem sabem mais
que falta trabalho pra quem só trabalha
e tem muita metralha prá quem pede a paz…
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Saber que o olhar da criança colore
de imaginário o mundo real
e a curva do gume do fio do facão
tem o talhe da curva do canavial.
 
Saber que nem todos precisam de terra,
saber que nem todos sabem fazer pão…
E um verso vadio feito de repente
retrata pra sempre o que viu no clarão.
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Eu vi a máquina voadora!!!
 
Saber que os loucos e os visionários
são dicionários dos sonhos de Deus,
e as almas dos mortos na tribo dos índios
são discos luzindo nos céus europeus.
 
O flash da foto reflete na gota
de chuva no espinho do mandacaru,
e o brilho ilumina poetas que cantam
num pé de parede de Caruaru.
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Unindo os ponteiros da telepatia
e a voz invisível do computador
eu cruzo os espaços, eu viro energia
tesão de guitarra, trovão de tambor.
 
A mente se pluga num mundo de arquivos,
memórias binárias, visões digitais,
eletricidade transforma-se em vida
e os raios um dia serão animais.
 
Eu vi a Máquina Voadora!!!!
Eu vi a Máquina Voadora!!!!
 
 
 



quinta-feira, 15 de julho de 2021

4724) "Noites Brancas": de Dostoiévski a Visconti (15.7.2021)



Num famoso prefácio, Jorge Luís Borges chancelou a importância de La Invención de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, para a literatura imaginativa. A certa altura do texto, ele fazia um reparo um tanto irônico ao chamado romance psicológico. Borges defende neste prefácio a literatura que busca enredos inesperados, originais, reveladores. Ele achava, aparentemente, que as descobertas da literatura realista do século 19 estavam sendo repetidas muito passivamente pelos autores do século 20, e que isso era uma pena.
 
O romance psicológico (dizia ele) tende a ser amorfo.
 
“Os russos e seus discípulos demonstraram, até à saciedade, que ninguém é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade...”
(A Máquina Fantástica, A. B. Casares; Rio, Expressão e Cultura, 1974, trad. Vera Neves Pedroso).
 
De fato. Não há nada que o coração humano seja capaz de sentir que a mente humana não consiga racionalizar na prosa de ficção, até porque o coração segue roteiros hereditários (um bilhão de histórias de amor o comprovam) e uma mente boa, com boa pena e bom tinteiro, faz o que quer.
 
Suicidas por felicidade? Eu já tinha lido o ensaio de Edmund Wilson sobre O Castelo de Axel, em que o jovem e rico casal, de inexcedível beleza, incomparável inteligência e inimitável bom-gosto artístico recusa-se a dominar o mundo e decide abrir mão dele. “Viver?!”, diz a frase famosa, “Os nossos servos o farão por nós!”. E se matam!
 
De assassinos por benevolência a vida real está cheia; a literatura vai apenas dois passos atrás, secretariando as peripécias. Mas não se mata cavalo? 

Delatores por fervor ou por humildade não são difíceis de explicar. O próprio Borges produziu suas “Três Versões de Judas”; e num artigo na revista Sur (# 11, agosto de 1935), ele comenta o filme de John Ford, O Delator (“The Informer”, 1935), em que um irlandês denuncia um colega do IRA por uma recompensa mesquinha e pelas curvas de uma compatriota. Diz Borges, sempre um gourmet de sutilezas: “A infâmia cometida por distração, por mera brutalidade do infame, teria impressionado mais, artisticamente”.
 
Quando cheguei nas pessoas que se amam a ponto de se separarem para sempre, a primeira lembrança foi de uma leitura adolescente do conto “Noites Brancas” (“Belye nochi”, 1848) de Dostoiévski, na velha coleção encadernada em vermelho que meu pai comprou quando eu teria uns dez anos e cismei que Crime e Castigo era algo na linha de O Assassinato de Roger Ackroyd


“Noites Brancas” é a história de um rapaz sonhador que gosta de passear sozinho à noite pelas ruas desertas de São Petersburgo. Num certo sentido, é um contemporâneo às avessas do flâneur de Baudelaire, porque este último procurava o bulício, o burburinho, o espetáculo humano, enquanto que o narrador de Dostoiévski é um introspectivo, tímido, que na solidão das avenidas desertas se sente confortável como um peixe na água.
 
Caminhando a sós durante a noite, o narrador (que não tem nome) encontra uma moça chorando. Começam a conversar, simpatizam recatadamente um com o outro. Passam a marcar encontro, repetidamente, naquelas imediações, pois não moram muito longe, mas um não pode ir à casa do outro. Ele conta sua vida a ela, ela conta sua vida a ele. Ficamos sabendo que ela, que se chama Nastenka, tem uma paixão antiga, por um homem mais velho, culto, cosmopolita, que lhe declarou amor e viajou, ficando de voltar dali a um ano para casar com ela. Foi a ausência dele no compromisso marcado que a fez chorar.
 
Como o conto é narrado na primeira pessoa, temos acesso direto apenas aos pensamentos do narrador. Ele se apaixona por Nastenka, e ela por ele. E numa dessas noites, quando estão no auge dessa paixão inocente (porque não fazem nada mais do que passear pelas ruas), o outro namorado aparece. Ela o vê na rua. Corre para os braços dele. Volta. Dá um beijo de despedida no narrador. Vai embora para sempre com o outro.
 
No dia seguinte, ela lhe manda um bilhete dizendo que o ama, sim, mas ama muito mais o outro, e que pena que os dois não sejam um só. E o narrador termina comentando que na véspera chegou a ser feliz por um momento, acreditando que ela seria sua, e conclui: “Meu Deus! Um momento pleno de felicidade! Será que isso é pouco para preencher uma vida humana?”.


(Livorno)

O conto foi adaptado para o cinema, com as necessárias modificações, por Luchino Visconti, em Le Notti Bianche (1957), com Marcello Mastroianni e Maria Schell. Visconti transpõe a ação para a Itália, para Livorno, cidade recriada em estúdio por um trabalho cenográfico incrível. Fala-se muito nos cenários artificiais do Expressionismo Alemão, em clássicos como O Gabinete do Dr. Caligari, Fausto e outros. Pois o filme de Visconti acontece num mundo que parece feito de papel-machê, um palco de teatro cheio de gessos e isopores pintados, que magicamente se desdobra como um livro pop-up toda vez que eles dobram uma esquina, atravessam uma pontezinha, cruzam um umbral.
 
Gosto de ver filmes em cenários construídos que guardam apenas um mínimo de verossimilhança urbana (ruas onde passam ônibus ou carros, p. ex.) e funcionam como um vasto bolo-de-noiva cheio de passagens e aberturas por onde os personagens se deslocam, conversando, meio que inadvertidos diante daquela imitação de cidade.

 
Uma cidade que não é tão irrealista assim. O cinema italiano do pós-guerra é todo feito de ruínas. Paredes incompletas, casas com uma banda arrancada, muros com passagens abertas à bruta; e muitos, muitos terrenos baldios, vazios, extensos, no meio de um bairro com muita gente e tráfego... 

É preciso um certo distanciamento e visão retrospectiva para entender que dez anos atrás, naquele terreno devoluto, havia prédios, casarões, edifícios onde caíram bombas, onde lavrou o fogo, e onde, por fim, os tratores vieram e limparam tudo. A cidade varreu para longe o próprio entulho, e recomeçou.
 
Le Notti Bianche guarda por um lado aquela urbanização medieval que toda cidade italiana tem, seus bequinhos tortuosos, as calçadas que mudam de nível de dez em dez metros, as pequenas arcadas que dão acesso a ruelas laterais, alguns degraus que sobem, outros degraus que descem, ruas que fazem voltas e ziguezagues porque cada casa nova, feita ali há mil anos, ia entortando a rua em outra direção.


E em cima disso se construiu esse perfil pós-guerra, ruínas com fogueiras acesas, paredes derreadas onde dorme gente enrolada em mantas, canais com uma água oleosa e lenta onde os namorados deslizam seu barquinho. 


Visconti pega uma das histórias mais românticas, mais afetivas, mais lovistóri que Dostoiévski escreveu, e a transporta para um ambiente onde nosso olhar não distingue direito – por entre tanta névoa, tanto cinza, tanto halo luminoso, tanto reflexo – o que é real e o que está sendo visto apenas pelo casal de namorados. Não duvidaria se me dissessem que Francis Coppola viu um dia esse filme e começou nesse momento a imaginar o que se tornaria One From the Heart.

 
Cenografia (Mario Chiari) e fotografia (Giuseppe Rottuno) são as melhores coisas deste filme, embora o casal de atores se comporte com um encantamento encabulado de ponta a ponta da narrativa, Mastroianni com sua mistura de intensidade e finura, Maria Schell com um sorriso luminoso, sorriso tão insistente que acaba nos revelando o quanto a personagem está nervosa. O francês Jean Marais, com seu porte leonino e inexpressivo, aparece no papel do desmancha-prazeres.


A música é de Nino Rotta, e é bela, mas seu melhor momento é quando Marcello e Maria vão a um café e há uma longa cena de música e dança, que começa com “Mulher Rendeira” (ecos do sucesso de O Cangaceiro em Cannes, poucos anos antes); depois, um rock sacudido e coreográfico (indício da invasão norte-americana do pós-guerra) arranca o casal da mesa e os dois se soltam no salão; e a cena termina com mais uma canção dolente, de dançar agarradinho. Uma sequência se poucos diálogos onde o casal passa por climas diferentes e sucessivos, energizados pela canção “diegética” com que o mundo os assalta.
 
O filme está disponível (legendado) no YouTube:




"O Cangaceiro" (="Mulher Rendeira"), creditado, tal como na gravação original do filme homônimo, a Zé do Norte (Alfredo Ricardo do Nascimento)

 







segunda-feira, 12 de julho de 2021

4723) O realismo é desnecessário? (12.7.2021)




Digamos que eu sou um professor de Matemática do 1º. grau e estou explicando algumas coisas básicas de percentagem para meus alunos. Depois de explicar como aquilo funciona, eu proponho um problema.

 

Joãozinho recebeu dez reais dados por sua mãe. Deu 40% do que havia recebido a Verônica. Do que lhe sobrou, deu 50% a Pedro, e 50% a Maria. Quantos reais receberam Verônica, Pedro e Maria?

 

Parece um problema fácil, mas nem tanto assim. Eu já vi figurão questionar um assessor que disse: “Doutor, eles disseram que dos 25% restantes eles ficam com 50%”, e o figurão dizendo, “Ô cavalgadura, como é que você pode tirar 50 onde só tem 25?”.  No Brasil é mais fácil acabar com a corrupção do que com a burrice. 

 

Voltemos às percentagens. Eu poderia ter proposto o mesmíssimo problema acima em outros termos. Por exemplo:

 

Joãozinho mora numa vila operária com a mãe, os irmãos e a avó. Eles moram lá mas estão sendo despejados porque quado o pai de Joãozinho morreu eles perderam o direito de morar nessa casa, que pelo contrato deve ser destinada aos operários da fábrica local. A mãe de Joãozinho costura para fora e quando recebe uma grana extra ela dá ao garoto para suas pequenas despesas. Naquele sábado, foi isso que aconteceu, porque ela conseguiu vender dez casaquinhos de lã para a Cooperativa do bairro, e deu 10 reais a Joãozinho. Ele resolveu usar aquele dinheiro para pagar dívidas com seus colegas, porque o pai sempre lhe ensinou a saldar primeiro as dívidas e só depois gastar com diversão. Joãozinho usou 40% do que havia recebido para pagar a Verônica, a filha da vizinha, duas revistas usadas que ela lhe vendera, com a condição de pagar assim que pegasse em dinheiro. De modo que ele correu logo na casa dela e deixou com a mãe dela as notas bem dobradinhas num envelope, junto com um bilhete. Em seguida, contou o dinheiro que lhe restava e resolveu dar 50% daquele total a Pedro, que lhe pagara um sorvete na véspera; e voltando para casa chamou sua irmã Maria e lhe deu os outros 50%, para ajudar às economias que ela guardava num cofrinho.

 

Observem que o problema matemático é rigorosamente o mesmo, e até os nomes dos respectivos personagens foram mantidos.

 

Se um professor de Matemática ler esses exemplos provavelmente dirá: “OK, entendi, mas o primeiro problema está muito mais adequado. O segundo está até interessante, tem uma historinha até realista; mas está cheio de detalhes que só fazem atrapalhar a visão do problema. Esses detalhes desviam nossa atenção do verdadeiro problema a ser resolvido.”

 

Pois bem: este exemplo meio desajeitado tenta explicar uma pendenga de mais de um século entre dois tipos de literatura: a literatura de mistério detetivesco e o romance realista.

 

A literatura de mistério detetivesco (também chamada literatura policial, criminal, dedutiva, etc., por causa de suas muitas ramificações) propõe um problema muito claro ao leitor, dá-lhe os indícios necessários e o desafia a resolver sozinho o enigma sem esperar pelas páginas finais, onde o detetive dá a resposta.

 

São mentalidades diferentes. Ao detetive, e ao escritor de romance policial, só interessam os dados do problema. Daí o fato de que os “decálogos” dessa literatura condenarem a interferência de envolvimentos amorosos, agitações políticas, críticas sociais, todos esses elementos da vida real que só fazem turvar e atrapalhar o enunciado do problema.

 

Conan Doyle dá um exemplo involuntário disso, num conto pouco conhecido dos aventuras de Sherlock Holmes (“The Adventure of the Retired Colourman”, 1926). O dr. Watson foi encarregado por Holmes de ir a um bairro distante examinar a casa do cliente, e volta mais tarde com seu relatório:

 

 – A casa de Mr. Josias Amberley chama-se ‘Sossego’,  – expliquei. – Penso que havia de lhe interessar, Holmes. É como se um patrício caído na pobreza fosse morar na companhia de seus inferiores.  Você conhece o arrabalde, as monótonas ruas com suas casas de tijolo, as cansativas estradas suburbanas.  Bem no centro delas, uma ilhota de antiga cultura e conforto, fica essa velha casa, rodeada por um muro alto de tijolo cozido ao sol, ao qual os líquens em profusão e o musgo que o encima emprestam um aspecto especial, muro esse...

-- Basta de poesia, Watson – disse Holmes com severidade. – Já sei que há um muro alto de tijolo.

(“Mr. Josias Amberley”, em Histórias de Sherlock Holmes, trad. Agenor Soares de Moura)

 

Watson olha para tudo com olhos que não direi de médico, mas de um londrino comum, constatando as diferenças sociais que se exprimem no urbanismo e na arquitetura, tentando através do bairro e da aparência da casa deduzir algo sobre o suspeito. Holmes vai direto ao ponto, e o leitor não se surpreende quando descobre, mais tarde, que Holmes pulou o muro e revistou a casa do cliente, do qual suspeitou desde o início.

 

Eu diria que a grande evolução da literatura policial na segunda metade do século 20 foi a gradual mistura entre as exigências da história policial clássica (enredo, mistério, concatenação precisa, pistas, racionalização do problema, etc.) e as exigências do romance mainstream clássico (verossimilhança psicológica, verossimilhança na descrição de ambientes, vida doméstica, vida social, etc.).

 

Os exemplos citados no início, sobre Joãozinho e seus 10 reais, são exemplos extremos. É claro que se o interesse é de ilustrar uma questão meramente matemática, a primeira formulação, mais curta, é a ideal, pois nada deve desviar a atenção do aluno para a questão numérica.

 

Se o interesse do autor é criar um mistério do tipo lógico-dedutivo, ele pode resumir esse mistério em meia dúzia de páginas. Não há necessidade de descrever a mansão, nem a vizinhança, nem a cidade, nem a aparência física das pessoas, nem transcrever seus diálogos sobre outros assuntos... O mistério detetivesco, reduzido a si mesmo, cabe na meia dúzia de páginas daqueles enigmas-de-revista, tipo “Você é o Sherlock!”.

 

Mas – aqui vem o grande MAS – se o interesse é contar uma história de ficção, mesmo que seja uma ficção policial, é preciso lembrar que o compromisso de “contar uma história” está no prato oposto da balança, e exige, sim, a criação de um ambiente físico, um ambiente social, um ambiente psicológico.

 

Seria injusto dizer que os autores do romance policial clássico só escreviam “personagens de papelão” e só repetiam clichês psicológicos. É verdade que Conan Doyle, Agatha Christie, Ellery Queen, John Dickson Carr e outros nem sempre estão “no topo de sua forma”, e aqui-acolá a gente pega um livro meio que escrito no piloto automático. Mas os melhores livros deles mostram não somente sua engenhosidade na invenção de um crime complexo e no processo dedutivo que o esclarece, mas na descrição de um ambiente social, principalmente naquela Inglaterra de papéis sociais tão esperados e previsíveis que bastam dois traços para definir um personagem.

 

E mostram também o entrechoque complexo de temperamentos, personalidades, imposturas, dissimulações, em que Agatha Christie era mestra, e que fez Raymond Chandler queixar-se mais de uma vez que ela falsificava os personagens – apresentava-os como sendo de tal ou tal maneira, e no final, por conveniência do enredo, mostrava que eram lobos em pele de cordeiro, ou o contrário disso.

 

O enigma detetivesco e o romance realista eram, cem anos atrás, dois extremos de uma escala aparentemente irredutível. O romance policial de hoje é o resultado de cem anos de adaptação entre os dois, mostrando que essa coexistência não é impossível.