sábado, 30 de março de 2024

5047) A autob/i/ografia de Solha (30.3.2024)




Estou há meses com a autobiografia de W. J. Solha aqui em cima da mesa-de-centro da minha sala, que é uma espécie de sala-de-espera de Estação Rodoviária. Ali se aglomeram momentaneamente os tipos mais variados. Uns partem (=são lidos) logo, outros se demoram mais, por terem mais páginas, ou por precisarem de maior silêncio e concentração... Enfim. 
 
O livro de Solha tem se demorado por uma razão curiosa. É grande? Até que pode ser, em suas 346 páginas bem diagramadas pelas múltiplas e cuidadosas mãos da Editora Arribaçã. Quando o recebi, porém, achei pequeno. Talvez pequeno quando comparado ao tamanho Cinemascope da obra de Solha como escritor, poeta, artista plástico, ator... Se viesse um livro três ou quatro vezes maior, eu não me espantaria. 
 
Por outro lado, venho lendo esse livro há anos, porque Solha é um escrevedor compulsivo, como eu mesmo. Aquele indivíduo que pode até ser meio normal, mas vive com uma opressão no peito e só respira com alívio quando começa a digitar. Escrever é uma neurose benigna; alivia o peso da existência e realça o que dela se aproveita. 
 
Nos últimos anos, Solha tem publicado nas redes sociais (no Facebook, principalmente, onde o acompanho) inúmeros fragmentos desse livro, de tal modo que não é exagero dizer que todos os dias eu leio pelo menos uma página escrita por ele. E muitas dessas páginas (corri o polegar pelas folhas e constatei) estão distribuídas por esse livro. 
 
Para ficar no jargão moderno posso dizer então que é um “livro quântico”, ao mesmo tempo lido e não-lido. Leio com atenção no Facebook porque ali Solha (que é um devoto do texto e um devoto da imagem) ilustra com fartura os episódios que está narrando: com fotos do álbum pessoal, pinturas clássicas, cenas de filme, fotos de seus trabalhos, dos amigos, das pessoas citadas... 



(Solha em O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho) 

 
Ele lamentou não poder encher o livro de fotos, e aí dou razão aos editores: o livro ficaria imenso, e proibitivamente caro. 
 
Solha tem uma memória persistente, implacável, a memória dos que tentam tudo ver, tudo entender, tudo registrar, tudo explicar, tudo preservar para sempre. Esses impulsos utópicos de quem precisa conviver intimamente com a certeza da própria efemeridade física, e com a visão de um mundo tão cheio (apesar de tudo) de coisas que valem a pena. 
 
E, como dizia Julio Cortázar em O Jogo da Amarelinha: “A nostalgia de uma vida tão curta para tantas bibliotecas”. 
 
A lembrança de Cortázar não é gratuita, porque quando peguei o livro de Solha, em dezembro passado, tinha uma vaga idéia de uma narrativa linear que sei mais ou menos, por alto: o menino nascido em 1941 em Sorocaba; a infância e adolescência povoada de livros, filmes e desenhos; o concurso do Banco do Brasil; a vinda para Pombal, no sertão da Paraíba; o alumbramento de descobrir que o mundo é múltiplo e o Brasil é imprevisível; o mergulho no teatro e no cinema; a ida para João Pessoa... Enfim, algo como aquelas 3 ou 4 páginas de Cronologia que a gente sempre encontra nas obras dos escritores importantes. 


 
Era nesse tapete que eu estava pisando ao abrir o livro, e que foi puxado de sob os meus pés quando comecei a folhear as páginas. Na pág. 113, o autor está “no começo dos anos 1970”. Na página 44, ele está em 2009. Pulo para a pág. 275 e ele está em 1979. Na página 304, estamos em 1970. Na pág. 83, pulamos para 2020. 
 
Essa descoberta foi reveladora, porque eu raciocinei: “Aqui estão 100 ou 200 fragmentos de texto dos quais eu acho que já li metade, em ordem aleatória. Desse modo, não preciso ler o livro de A a Z, da primeira à última página, porque ele próprio me liberou da obrigação cronológica. É um livro não-linear, de acesso randômico.  Pode começar a ser lido do último fragmento para o primeiro, se eu entender assim.” 
 
Ou seja, tinha algo, sim, do Jogo da Amarelinha de Cortázar, romance construído como espinha-de-peixe, com uma avenida narrativa bem larga e bem central, cheia de transversais à direita e à esquerda, que podemos percorrer também, de acordo com a nossa veneta. Tinha algo de um dos meus preferidos, o Lugar Público (1968) de José Agrippino de Paula, que dizia textualmente: “A ordem do texto não me importa, posso começar um livro tanto pela primeira quanto pela última página, tanto faz”. 



(Solha em A Canga, de Marcus Vilar) 
 
O livro se intitula, oficialmente: Autob/i/ografia de Solha (Cajazeiras: Arribaçã, 2023). Acho que já vi umas linhas dele explicando essa grafia. Se está no livro, acabarei achando. Se foi no Facebook, babau-tia-chica, porque o Facebook é como o “Livro de Areia” de Jorge Luís Borges, se a gente perder de vista um trecho nunca mais encontra. 
 
No meu arquivo mnemônico interno, passei a lembrar do livro como: A/u/t/o/b/i/o/g/r/a/f/i/a de Solha, resgatando esse caráter fragmentário que acaba fazendo sentido. Ou talvez a intenção seja destacar o “I”, o Eu, no meio da palavra, porque Solha é paraibano, sim, e dentro de cada um de nós existe um Augusto dos Anjos e seus demônios. 
 
Já comentei aqui no Mundo Fantasmo vários livros anteriores de Solha; corro o risco de me repetir, mas me vem à memória o conselho de um amigo mais velho e mais experiente: “Não tenha pudor de repetir. O povo só escuta o que a gente repete.” Ler-de-novo é assoprar brasas. Me atrevo a afirmar: “Só entende um parágrafo quem o relê de vez em quando”. 
 
Estou avançando na leitura e saltando como bola de ping-pong entre a criação dos murais quase megalomaníacos que Solha pintou na Parahyba (mas todo mural não é megalomaníaco? todo filme? todo romance?) e as agruras do ator-produtor para pagar as dívidas do filme O Salário da Morte, rodado em Pombal; entre suas leituras juvenis de enciclopédias e coleções de fascículos, e suas emoções ao ver pela primeira vez, na Europa, em carne e osso, os quadros que o fascinaram quando garoto. 
 
Histórias de episódios cômicos, de polêmicas, de brigas políticas, de truculências sertanejas ou fidalguias literárias, episódios comoventes da vida familiar, as furiosas leituras religiosas de alguém que pensa em Deus o tempo todo (pensar o tempo todo é uma forma de acreditar?)... E acima de tudo esse desenho da memória que ricocheteia em todas as direções, como no famoso “movimento browniano” das moléculas de um gás num espaço fechado. As lembranças são como bolas de sinuca em movimento constante: a bola que a gente dispara sai batendo nas outras, que por sua vez batem nas mais próximas, que vão bater nas mais distantes... e não se avista o fim. 
 
E não se avista o fim. A mente-lembrança é um falso moto-contínuo, um mecanismo que nunca pára e que dá a impressão de produzir sua própria energia, mas na verdade esse mecanismo, a Mente, é alimentado por esta caldeira, o Corpo, que quanto mais velho fica mais energia parece ter. 



 
Eu estava abrindo o livro de Solha como se fosse um I-Ching, em página aleatória, e lendo aquilo em que o Acaso me fez tropeçar. É um bom método. Nunca falha com meus livros preferidos, que abro sem olhar, leio um trecho, guardo o livro na estante e vou viver meu dia, matutando. O que Solha escreve traz consigo essa intensidade de visão, de quem procura colocar em cada fragmento a totalidade do ser, a totalidade do vivido e do sentido e do imaginado. Cada episódio daqueles está pulsando, zumbindo; basta tocá-los com o olho. 
 
No entanto, resolvi mudar de método. Se o livro é feito de pedaços aleatórios, o fato de ler cada um deles aleatoriamente, ao invés de destacar esse aspecto, acaba por diluí-lo. Duas aleatoriedades se equilibram e de certo modo se anulam. A verdadeira experiência da aleatoriedade só pode ser percebida por quem a experimenta transversalmente, seguindo uma ordem “de-ferro” e submetendo-se ao ping-pong atemporal. 
 
E aqui vou eu, como no filme Je t’aime, je t’aime (1968, Alain Resnais) ou no seriado O Túnel do Tempo (1966-67, Irwin Allen), em que no fim de cada ação a máquina-do-tempo desarranjada nos projeta “em algum lugar do passado”, sem aviso prévio, sem conexão aparente. E ao experimentar esse zigue-zague, ao romper com a linha fatalista-de-tragédia-grega da cronologia, temos a sensação de estar fugindo ao arco-narrativo que termina sempre... daquele jeito.  
 
Viver (ou reviver) uma narrativa com cronologia estlhaçada nos dá a sensação de existir de verdade. Cada minuto tem a surpresa da vida real. Ser imortal numa existência cronológica seria um suplício; ser imortal numa existência de momentos aleatórios talvez fosse suportável. 
 
E lá vou eu voltar a ler o livro para poder resenhá-lo.