sábado, 29 de agosto de 2009

1228) Búzios, I-Ching e repente (18.2.2007)




(ilustração: www.thebluething.com)

Alguns sistemas divinatórios acreditam que cada momento que vivemos faz parte de uma harmonia cósmica que obedece a um certo “tom” ou diapasão. Cada instante do Tempo tem um fator que lhe é característico, algo como uma cor ou uma nota musical. 

Cabe ao adivinho captar esse fator e interpretar as ações passadas e futuras do consulente de acordo com esse vislumbre. Alguns jogam búzios, e interpretam o momento de acordo com as posições em que os búzios caem, as configurações que eles formam quando se imobilizam. 

Outros, que praticam o I-Ching, fazem o mesmo ao escolher varetas de diferentes extensões, ou ao atirar moedas, e com isto compor hexagramas de linhas inteiras ou partidas.

O que é a posição dos búzios, ou o hexagrama assim obtido? É uma polaróide daquele instante, e revela, para o olho treinado do adivinho, qual é o “clima” daquele momento, sugerindo assim de que maneira o cliente pode se comportar para estar em harmonia com o ritmo das coisas. 

O I-Ching pronuncia aquelas sentenças meio misteriosas, tipo “é conveniente atravessar a grande água” ou “o governante sábio pensa duas vezes antes de agir”. Isto não é, para quem acredita no sistema, um simples conselho – e conselho, afinal, qualquer um pode dar a qualquer um. É uma revelação sobre a dinâmica das forças do Universo naquele momento. Quem tem juízo marcha de acordo com ele.

O Repente tem algo em comum com estes processos. Feito na hora, no calor do momento, ele brota da mente de um poeta que está totalmente concentrado naquilo que faz, e compõe versos onde estão misturadas as suas emoções e as emoções da platéia, os assuntos que foram abordados até então, os acontecimentos da cidade e do mundo naquele dia, as pessoas presentes, os pequenos detalhes fortuitos que a todo instante se intrometem na cantoria. 

Tudo isto são búzios e mais búzios que o poeta sacoleja no juízo e joga para o ar, ou, mais precisamente, são palavras que é preciso agrupar sempre em forma de sextilha, cuja semelhança gráfica com um hexagrama chinês nunca deixou de me maravilhar.

Certa vez, numa cantoria entre Otacílio Batista e Oliveira de Panelas, no Bar Canarinho, anotei esta sextilha de Oliveira: 

Me rebolo como bola
me viro igual a bozó
de um lado sou como dado
do outro sou dominó
que se não tivesse os furos
seria uma coisa só.

É um ótimo verso, em que o poeta usa uma sucessão de formas geométricas. 

Primeiro a bola, que caia como cair sempre cai do mesmo jeito. 

Depois, o bozó ou dado, que é o contrário da bola, e a cada vez que é jogado cai revelando uma face diferente, servindo aqui como metáfora do próprio repente. 

E por fim o dominó, que não é jogado ao acaso, mas deve ser conectado às peças que já saíram antes, e que, como a sextilha, tem a obrigação de “pegar na deixa”, rimando (no caso, numericamente) com a peça da ponta. 

Será que o poeta pensou nisso tudo, ao compor o verso? Não importa. O Universo pensou por ele.





1227) “O Ilusionista” (17.2.2007)



Existem poucas coisas tão fascinantes quanto a arte de Mágica de palco do século 19, aquela Arte-Ciência baseada em espelhos, luzes, fundos falsos, alçapões, engenhocas mecânicas ou elétricas cuidadosamente disfarçadas. E o objetivo disto tudo é o mesmo objetivo do Cinema: fazer o público pensar que está vendo coisas que na verdade não estão ali. O Ilusionista, segundo filme de Neil Burger, explora este universo muito próximo da narrativa fantástica, porque o tempo inteiro vemos coisas impossíveis acontecerem na nossa frente. Sabemos que é truque, sabemos até de que maneira o truque foi praticado, mas não deixamos de nos maravilhar.

Gostei do personagem do Príncipe Leopold, um racionalista empedernido, aquele típico intelectual cético que diante de uma mágica bem-feita sente-se inseguro, sente-se ameaçado, irrita-se, proclama que aquilo não passa de um truque, e tenta o tempo inteiro provar a todo mundo que é mais esperto do que o cara que fez o truque. Ou seja, é O Crítico (de cinema, literário, do que fôr) no que esta sofrida categoria tem de mais insuportável. Para ele é uma questão de vida ou morte, porque está a ponto de destronar o pai para assumir o Império, e não pode ser enganado impunemente por um simples prestidigitador. Eis um dos subtemas que percorrem o filme: quem tem mais poder, o sujeito que governa um Império ou um sujeito que faz uma árvore crescer e dar frutos diante dos nossos olhos?

Em sua segunda parte o filme penetra num terreno, a mistura entre magia de palco e espiritismo, que é a cara do ambiente em que transcorre, a Viena no fim do século, quando Freud estava começando a construir a psicanálise (vi um ou dois senhores barbudos na platéia do mágico Eisenheim que bem poderiam ser o nobre doutor). Era uma época em que nos salões intelectuais discutia-se o hipnotismo (chamado “mesmerismo”), a comunicação com os mortos, a telepatia. Quando Eisenheim “evoca” os ectoplasmas de pessoas mortas para o palco, estamos em plena terra-de-ninguém entre o mero ilusionismo e o sobrenatural. Muitos falsos médiuns ficaram ricos nessa época, usando a maquinaria do teatro para fingir a presença de espíritos desencarnados. O Ilusionista, que é também uma história de mistério policial, usa essa ambiguidade como efeito de suspense, ao trazer de volta à Terra o espírito da pessoa assassinada, para denunciar o criminoso.

O filme de Neil Burger tem uma superfície impecável (fotografia, atores, direção artística, música) e um roteiro curioso que me deu vontade de ler o conto original, de Stephen Millhauser. É uma história de mistério que na reta final usa aquele recurso que chamo de “clip explicatório”, já visto em filmes como O Sexto Sentido ou Os Suspeitos: uma rápida saraivada de imagens em flash-back que nos fazem reinterpretar cenas já vistas e descobrir, junto com o personagem, o que realmente aconteceu. Não vou dizer para não estragar o truque.

1226) “O Perfume” (16.2.2007)



Os dez primeiros minutos deste filme são de tirar da sala qualquer espectador que tenha entrado ali apenas em busca de uma poltrona enquanto come pipoca e fala ao celular. Reconstituindo a sujeira e a violência das ruas de Paris no século 18, ele nos oferece uma antologia impecável de imagens de sujeira e violência, e nos faz mergulhar de cabeça no ambiente onde nasce Jean-Baptiste Grenouille, o homem que tem o olfato perfeito.

O livro de Patrick Susskind foi grande best-seller há 20 anos. Muita gente deve lembrar dele. A adaptação é cuidadosa, fiel, visualmente impressionante. Descrever cheiros, seja com palavras ou com imagens, só é possível através de associações de idéias, e o filme o faz tão bem quanto o livro. (Se não leu o livro, caro leitor, vá dar uma olhada; seu olfato sairá muitíssimo enriquecido). Em alguns momentos me veio à memória aquele filme recente (Entre Umas e Outras, ou Sideways) em que um cara degusta vinho e faz descrições mirabolantes dos sabores que está sentindo.

O Perfume não é só isso. É também a história de um serial-killer, e talvez isto tenha ajudado na realização deste filme caríssimo, porque o cinema elegeu o serial-killer como símbolo de nossa época (Freud explica). É uma história de ficção científica, pois mostra como é possível, através de manipulações químicas, controlar e manobrar as emoções das pessoas. É também um conto fantástico, ao postular um indivíduo com uma percepção sensorial impossivelmente aguda e sem nenhum odor em seu próprio corpo. Vi algumas críticas onde se comentava que Grenouille, o Homem Que Não Tem Cheiro, seria por causa disto o próprio Diabo, o que me trouxe à mente a lenda que comentei nesta coluna em “O Diabo: o homem que não sua” (5.4.2006).

Grenouille mata mulheres para extrair a essência de seus corpos e fabricar o perfume perfeito, capaz de produzir em quem o sente a ilusão de estar no Paraíso. Seu mestre Baldini (Dustin Hoffman) tem, para explicar a beleza dos perfumes, uma teoria musical baseada em notas, acordes dominantes e sub-dominantes. Grenouille me lembrou o filme Amadeus de Milos Forman: é um Mozart maligno. Diante de uma linda mulher, ele, nascido na sarjeta e criado no submundo, não sabe o que fazer com ela, a não ser roubar e guardar, com a obsessão de um vampiro avarento, o precioso líquido em que aquela beleza foi destilada em essência.

O diretor é o mesmo de Corra, Lola, Corra (que comentei aqui em 9.12.2005). Dois filmes de tema, técnica, estilo e espírito completamente diversos – o que, para mim, é uma excelente recomendação para um diretor de cinema. O Perfume é uma dessas raras adaptações cinematográficas tão densas quanto o livro original. Não é para todos os gostos, mas, ao contrário dos filmes de Hannibal Lecter, não glorifica o sadismo ou a crueldade. O assassino é desumano o bastante para que não queiramos nos identificar com ele, e possamos acompanhar de fora a limpidez de sua obsessão.

1225) A Utopia e o Apocalipse (15.2.2007)




(Eduardo Galeano)

Uma vez vi um comandante de navio explicando a dificuldade de manobrar um daqueles petroleiros que cruzam os oceanos: “Por ser um navio muito pesado, ele responde muito lentamente ao freio, e só pára de fato 10km depois. Portanto, se a gente avistar um iceberg a 9km, não tem mais jeito a dar: já bateu. É só ficar esperando, e rezar”. 

Não sei se ele falou em rezar; escapou-me agora, no instante da digitação, como nos escapa pelos dedos a maior parte dos clichês que trazemos na mente e que jamais seriam aprovados pela censura estética da nossa consciência. 

Mas o fato é que em momentos assim, com um iceberg 9 quilômetros à frente, nossos dedos reagem de moto próprio. Indicador e médio cruzam-se dentro do bolso da calça, para que ninguém nos veja regredindo à superstição. Ou então fazemos o sinal-da-cruz, ou batemos na madeira fingindo que estamos tamborilando os dedos, despreocupados. 

Primeira lição a extrair disso: quer saber o que o Inconsciente de um sujeito está pensando, olhe para o que fazem os seus dedos.

Todo este papo de cerca-lourenço do parágrafo anterior é sintomático do sujeito que sabe que tem uma coisa desagradável para dizer e fica enrolando, falando em redor, com medo de se aproximar do centro. Mas nove quilômetros passam rápido, e aqui chegamos. 

Todos os leitores devem ter sabido do relatório ambiental divulgado dias atrás por uma equipe internacional de cientistas. O recado que eles nos dão sobre o aquecimento global pode ser resumido mais ou menos assim: aconteceu algo de terrível com o planeta. Não pode mais ser evitado; já aconteceu, e por culpa nossa. Tudo que podemos fazer agora é preparar o mundo para as conseqüências, que só virão, aos poucos, durante as próximas décadas. 

Ou seja, o navio já bateu, e os pilotos que podiam tê-lo desviado não o fizeram. Coloquem os salva-vidas. Os que ainda não sabem nadar podem se matricular no curso de natação a ser ministrado na piscina do convés.

A consciência de um Apocalipse pode ser estranhamente reveladora para o ser humano. Tem gente que só se mexe quando sabe que aconteceu uma catástrofe. O Apocalipse tem o efeito inverso da Utopia. O escritor Eduardo Galeano afirmou certa vez: “A Utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte afasta-se dez passos. Por muito que caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a Utopia? Para isto: serve para caminhar”. 

Um Apocalipse anunciado, uma tragédia que se anuncia para o futuro, pode ter um efeito semelhante. Dá tempo para o mundo inteiro se preparar. Ninguém pode se queixar de estar sendo colhido de surpresa. A ficção científica, por exemplo, vem anunciando essas catástrofes ambientais desde os anos 1960. 

Para que servem o Aquecimento Global, o Degelo dos Polos, a Invasão dos Oceanos, a Submersão das Cidades Litorâneas? Para isto: serve para caminhar. Não precisam preocupar-se com você mesmos; mas preparem seus filhos.






1224) O que é descartável (14.2.2007)




A palavra “descartável” virou um termo pejorativo no jornalismo cultural de hoje, que fala o tempo inteiro em músicas descartáveis, filmes descartáveis, etc.  Ao que parece, esta palavra só se redime em “fraldas descartáveis”, porque está aí uma coisa que ninguém quer ficar acumulando depois de usar. 

Em primeiro lugar, devemos reconhecer que a maioria dos produtos culturais que compramos são descartáveis mesmo. No começo da adolescência, garotos se livram de seus Cebolinhas e Patos Donald, porque agora estão lendo X-Men, e mais adiante se livram dos X-Men quando começam a ler Playboy

Livramo-nos destas coisas como nos livramos dos livros escolares do 2o. grau e da Faculdade. Depois que cumprem sua função imediata, são descartados. E nem por isso deixam de ser úteis ou necessários.

Em segundo lugar, ninguém mantém consigo, indefinidamente, todos os livros e todos os discos que compra ao longo da vida. Todo mundo “faz uma limpa” de vez em quando, porque o apartamento está cheio. Numa hora assim, é preciso estabelecer prioridades, e aí centenas de livros já lidos vão para o sebo, e dezenas de discos são repassados para os amigos. 

Qualidade não é a questão. No meio desse “bolo” pode ter desde Beethoven a Jorge Amado. Mas aquilo não tem mais necessidade imediata, já foi assimilado. Dá pra descartar, repassar para quem precise mais do que a gente.

Na vida, como no jogo de buraco, a gente conserva ou descarta em função da estratégia imediata, do jogo que está sendo jogado no momento. Já me mudei de um apartamento, na Bahia, deixando para o próximo inquilino uma coleção de “O Pasquim” com mais de um metro de altura. Na época, tinha perdido a importância; hoje me arrependo um pouco, mas tudo bem, é assim mesmo que essas coisas funcionam. 

Descartamos o que não contribui para as canastras que estamos tentar montar naquele momento. O próximo jogo é outra história.

O descartável que traz algum perigo é de outra natureza. É tudo aquilo que, uma vez comprado, tem que ser substituído rapidamente por outro, porque o surgimento de um modelo novo envelhece instantaneamente tudo que existia antes; é um dos princípios básicos da Moda. 

No caso da indústria cultural, os produtos de janeiro são efêmeros porque os de fevereiro precisam ocupar as vitrines e fazer tilintar a registradora. E essa rapidez de substituição tem outra função. O produto precisa ser rapidamente esquecido para que daqui a dez ou quinze anos possa ser recordado (nessas ondas de nostalgia, tipo Almanaque dos Anos 80, etc.) e vendido de novo, porque lembra ao consumidor uma época que (na memória dele) “passou voando”. 

Claro que passou voando: as modas se sucediam com tal rapidez que ele não teve tempo de se acostumar com nada, de esgotar o interesse de nada. Essa produção cultural é como a impressora barata, que serve para vender o cartucho-de-tinta caro.








1223) Thomas Pynchon (13.2.2007)



Desde que saiu o novo livro de Pynchon, Against the Day, voltei a experimentar um ligeiro senso de irrealidade diante das reações de outras pessoas a uma obra de arte. Porque há quem o deteste, e há quem adore de joelhos cantando aleluias. Há quem ache o livro um pouco longo, e quem lamente o fato de que é curto demais (tem 1.100 páginas). Pynchon é um dos escritores mais idolatrados da literatura americana. Lança um livro por década, o que é um ritmo adequado para seus romances enormes, maciços, atulhados de referências culturais do tipo que chamamos (via “O Pasquim”) de “horta da Luzia”: detalhes de objetos, costumes, programas de rádio, vestuário, provérbios, toda uma gigantesca antropologia do cotidiano que Pynchon parece pesquisar exaustivamente (ou então tem memória de elefante) para encaixar nas narrativas.

Li pouquíssima coisa dele. Apenas alguns artigos na imprensa, alguns contos do raro volume Slow Learner que achei na extinta e saudosa biblioteca do Consulado Americano no Rio. E lá mesmo me sentei numa poltrona tendo de um lado sua obra mais impactante, Gravity’s Rainbow, e do outro o volume A Gravity’s Rainbow Companion, um desses compêndios que os americanos adoram, analisando e explicando linha por linha um romance famoso. Li umas 50 ou 100 páginas e parei para descansar, até hoje. A prosa é densa como música orquestral. O vocabulário, inesgotável: as palavras que não acho no Webster’s encheriam outro Webster’s. E, surpreendentemente, não é um autor chato. É engraçadíssimo, cheio de frases brilhantes, e é doido-de-pedra – quando a gente menos espera, a narrativa dá um salto mortal e vai parar num lugar completamente diferente, como num filme dos Irmãos Coen. A toda hora os personagens cantam baladas ou recitam versinhos satíricos, impecavelmente rimados e metrificados. Pode ser difícil, mas nunca é chato.

Aqui no Brasil já saíram traduzidos alguns livros seus: O Leilão do Lote 49 (o mais fininho e mais acessível), V, O Arco-Íris da Gravidade e se não me engano Vineland. Traduzir Pynchon é mais difícil do que traduzir Joyce. No caso de Joyce, quando não se tem idéia do significado de algo, basta reinventar, porque pode ser qualquer coisa, e no caso de Pynchon, provavelmente aquilo tem uma resposta exata, mas só quem conhece aquela expressão são os membros do Sindicato de Plantadores de Tomate do Wisconsin da década de 1940. (E, pensando bem, acaba dando no mesmo)

Thomas Pynchon fez sua fama através desta literatura complexa, inventiva e embebida de cultura americana. E também através de sua reclusão voluntária, sua recusa a dar entrevistas (mais ou menos como Rubem Fonseca faz), a se deixar fotografar. Quem quiser conhecer mais sobre este OVNI literário, vá ao seu portal no saite “The Modern Word”, intitulado “Spermatikos Logos”: http://themodernword.com/pynchon/pynchon_intro.html . Tem assunto para uma vida inteira.

1222) “Carinhoso” (11.2.2007)




Parei para escutar pela milésima vez “Carinhoso”, que já toquei tanto ao violão em antigas serenatas. Belo exemplo de letra que se encaixa numa música pré-existente, letra submissa à música, sem poder alterar uma nota sequer da melodia. Se alguém dissesse que a letra foi feita primeiro, e depois musicada, muita gente acreditaria. Segundo consta, a melodia foi composta por Pixinguinha em 1917, e gravada em forma instrumental em 1928. Em 1936, por sugestão da cantora Heloísa Helena, Braguinha se dispôs a “letrar” aquela música que, embora conhecida no meio artístico, não tinha produzido qualquer impacto no público. Pixinguinha ensinou-lhe a melodia, tintim por tintim. Ele foi para casa, e no outro dia trouxe a letra pronta. Orlando Silva a gravou em 1937, e o resto, inclusive as duzentas regravações desde então, é História.

A canção vai se abrindo aos poucos. “Meu coração... Não sei por que...” Duas frases melódicas idênticas, às quais se sucede uma terceira, em melodia ascendente (“Bate feliz...”) e uma quarta que se ergue triunfal (“Quando te vê!...), recriando de maneira quase dramatúrgica a emoção do surgimento da mulher amada. Em seguida, melodia e letra saem como que valsando juntas pelo espaço afora, numa sucessão de frases e acordes: “E os meus olhos / ficam sorrindo / e pela rua / vão te seguindo...” Um rodopio de felicidade que vai amainando aos poucos quando letra e melodia se recolhem, tímidas, imobilizando-se na constatação grave: “Mas mesmo assim... foges de mim”.

Vem uma modulação, iniciando outra seqüência (é uma canção de estrutura dramática, mesmo não sendo nem narrativa nem visual). Novamente sozinho, o poeta “muda de tom” no pensamento, e fala consigo mesmo dirigindo-se a Ela: “Ai, se tu soubesses / como eu sou tão carinhoso / e o muito, muito que te quero, / e como é sincero o meu amor, / eu sei que tu não fugirias mais de mim...” Vejam com que fluência estas frases se sucedem na melodia, exprimindo sem esforço um conceito que sintaticamente só se fecha no final (“se tu soubesses, não fugirias”). E então o poeta chama, clama, reclama em quatro notas e quatro imperativos: “Vem! Vem! Vem! Veeem!...” Braguinha, com simplicidade e nitidez, sentiu a necessidade de um mesmo monossílabo, para corresponder à subida e à insistência da melodia.

O quarto “vem” vai meio-tom além daquele “vê” (do “quando te vê” da primeira estrofe), e o poeta, como quem finalmente ultrapassou uma barreira, exige: “Vem sentir o calor / dos lábios meus / à procura dos teus...” E em seguida, letra e música voltam a valsar juntas em acordes sucessivos: “Vem matar / esta paixão / que me devora o coração / e só assim então / serei feliz / bem feliz”. A canção termina igualmente numa frase descendente, mas agora é o repouso após o triunfo. Calado, contemplativo, o poeta permitiu que a melodia arrebatasse suas palavras, e libertasse tudo o que tinha para dizer. Chama-se a isto Uma Aula De Letra.