sábado, 30 de julho de 2011

2622) “Meia Noite em Paris” (30.7.2011)



Woody Allen, um adúltero notório, acaba de trair sua esposa Nova York com a sedutora Paris, dando-lhe em seu belo filme Meia Noite em Paris um tratamento visual que lembra, a cada instante, uma tela de Van Gogh, ou de Utrillo, ou de Renoir. Ninguém ama tanto Paris quanto os norte-americanos, com a intensidade do amor que brota entre temperamentos conflitantes. Gil Pender é mais um da série de alter-egos que Allen (hoje com 75 anos) vem desenvolvendo desde que admitiu estar velho demais para fazer protagonistas engraçados e românticos. Acho que ele escolhe o ator (Kenneth Branagh, John Cusack, Josh Brolin, etc.; agora, é Owen Wilson) e o instrui para imitar meticulosamente os trejeitos, maneirismos e modo de falar de “Woody Allen”, aquele ator-personagem de quarenta anos atrás. Muitas vezes funciona.

Eu poderia tentar provar que Woody Allen se inspirou no brasileiro Malba Tahan para conceber esta história, em que um escritor norte-americano visita Paris e dá um jeito de voltar aos anos 1920 para conviver, durante a madrugada, com escritores e artistas daquele período. Em Sob o Olhar de Deus, de Tahan, o protagonista Célio Musafir tem um sonho em que visita o Paraíso, que, ao invés da infinita biblioteca postulada por Jorge Luís Borges, é uma espécie de clube, onde Musafir fica circulando, tomando uns drinques (não lembro bem o quê, mas como se trata do Paraíso deve ser refresco de groselha) e conversando com Charles Dickens, Mark Twain, Voltaire, Oscar Wilde e outros. Bobagem minha defender essa tese; qual o artista ou escritor que não já sonhou que se encontrava com seus ídolos e estes o tratavam de igual para igual? É divertido ver Gertrude Stein usando o termo “ficção científica” ou Man Ray ouvindo com atenção a descrição de Gil sobre o que lhe aconteceu e dizendo: “Ah, sim, você saiu de um universo e entrou em outro. E daí? Normalíssimo”.

O elemento fantástico do filme vem direto da série Além da Imaginação, onde a todo instante havia um trem, um automóvel, um elevador ou uma esquina conduzindo os personagens para um universo paralelo que os deslumbrava e lhes fornecia ensinamentos sobre o sentido da vida. Em outro seriado como Ilha da Fantasia, havia episódios em que surgiram personagens da história e da literatura para contracenar com os visitantes da ilha. Neste filme, Allen começa com uma premissa saudosista e nostálgica (“o passado era melhor”) e no final dá-lhe uma engenhosa dobradura crítica, voltando-a contra si mesma, com delicadeza e carinho. O filme é uma guinada imprevista na filmografia de Allen, que nos últimos filmes parecia acomodado a ser um reiterativo cronista conjugal. Midnight in Paris traz de volta uma mistura de lirismo e fantástico que ele explorou poucas vezes, mas sempre bem. O caráter cotidiano e reconhecível dos seus personagens ressalta melhor de encontro a um pano-de-fundo fantástico, como um pedaço de fotografia numa colagem de Braque.