terça-feira, 6 de janeiro de 2009

0725) Ainda os clichês (15.7.2005)




Um clichê não é outra coisa senão uma frase original e inspirada que ganhou a adesão de todo mundo e passou a ser repetida todas as vezes que a ocasião se apresenta. 

Epítetos transformam-se em clichê com facilidade, porque muitas vezes quem escreve não gosta de ficar repetindo o nome de alguém o tempo todo. Num artigo sobre Drummond, por exemplo, volta e meia a gente precisa substituir o nome dele por “o poeta de Itabira” ou “o autor de Boitempo”. 

Jorge Luís Borges comenta a adjetivação usada por Homero (há exemplo famosos como “a dedirrósea Aurora”), expressões reiteradamente empregadas sem receio de cansar o leitor. Para Borges, elas acabam tornando-se tão funcionais e invisíveis quanto as preposições, “obrigatórios e modestos sons que o uso justapõe a certas palavras e sobre os quais não se pode exercer a originalidade. Sabemos que o correto é construir ‘andar a pé’ e não ‘por pé’. O rapsodo sabia que o correto era adjetivar ‘divino Pátroclo’”.

O onze canarinho, a máfia de branco, o poeta da Vila, tudo isto são expressões que nos sentimos autorizados a utilizar para variar um pouco as sonoridades do nosso texto, ou para evocar instantaneamente no espírito do leitor uma idéia já cristalizada pelo hábito da leitura. 

São atalhos, mas atalhos perigosos, porque indicam que o autor do texto não está prestando muita atenção nele, parece querer passar logo adiante, como um médico que pergunta o que o cara está sentindo e passa logo uma receita, sem pedir sequer que ele mostre a língua. 

Expressões deste tipo usadas com freqüência num texto jornalístico o enfraquecem; num texto literário, só são desculpáveis em situações muito excepcionais (uso irônico, por exemplo; ou quando atribuídas a um personagem, para descrevê-lo através do seu jeito de falar).

O clichê se gruda com mais facilidade à mente de quem é obrigado a produzir quantidades caudalosas de texto escrito ou oral: jornalistas, políticos, locutores de futebol, professores. Quando você diz a mesma coisa algumas centenas de vezes, perde o interesse pela maneira como está dizendo. Prepara uma frase-feita, bota na roda, e segue em frente. 

Existem os clichês sintáticos, que nada significam mas ajudam a encaixar as peças principais do discurso; coisas como (vide mais acima) “não é outra coisa senão”, “volta e meia”, etc. 

Existem clichês descritivos como “o líder oposicionista”, “a bancada evangélica”, “as autoridades acadêmicas”. Nada disto faz mal; como dizia minha mãe, “sai na urina”, sem prejudicar o organismo. 

O perigo, meus camaradas, é o clichê ideológico. As idéias pré-moldadas que recebemos e passamos adiante sem analisar a fórmula e ver do quê são compostas. 

O processo democrático. A vontade popular. As raízes culturais. O direito à liberdade. A segurança nacional. A primazia da lei. As instituições republicanas. Eu tenho até medo de revirar pedras tão pesadas como estas, imaginando o que vou ver embaixo.







0724) Os clichês (14.7.2005)




A certa altura de todo curso de Jornalismo, um professor manda a turma redigir um trabalho qualquer, e depois que os recolhe manda alguém ir ao quadro e ir anotando as expressões que ele ditar. E vai dizendo: “ferragens retorcidas... os bravos soldados do fogo... tórrido romance... corpo escultural... posição privilegiada...” 

Depois, ele faz cada aluno jurar sobre a Bíblia (ou sobre o Manual de Redação e Estilo) que jamais voltará a usar estas expressões. São clichês. São lugares-comuns. São junções de substantivos e adjetivos que um dia, quando foram usadas pela primeira vez, provocaram no leitor um agradável susto-de-novidade. 

Hoje, depois de milhões de repetições, são um sintoma claro de preguiça, ou de falta de vocação. Caneta vermelha em punho, caros leitores! Toda vez que eu usar um clichê, corrijam-me sem dó nem piedade. O Brasil agradece.

“Sem dó nem piedade”, aliás, é um belo dum clichê, concordam? Eles são invisíveis e onipresentes, e só damos pela sua existência quando estamos à sua procura. Basta escrevermos pensando noutro assunto, e eles desabrocham que é uma beleza. Não os vemos porque eles fazem parte da paisagem, como os postes de luz e os orelhões. 

Aprendemos a contar com eles, porque são expressões previamente decodificadas, que nos eximem de pensar. Por exemplo: acabei de usar o termo composto “susto-de-novidade”, o qual, aposto, vocês não encontrarão em nenhum dicionário, e talvez nem mesmo no Google. É uma expressão rara, mas de sentido imediatamente perceptível. (É também uma expressão metalingüística: a reação que produz em nós é seu próprio significado) Se eu continuar a usá-la, ela se tornará familiar. Se todo mundo começar a usá-la, daqui a poucos anos será um insuportável clichê.

É conhecida a anedota sobre o sujeito leigo que foi assistir o Hamlet pela primeira vez, e saiu queixando-se de que a peça estava cheia de clichês: “Ser ou não ser... Algo de podre no reino da Dinamarca... O resto é silêncio...” 

As grandes frases, quando se popularizam, viram clichê. É o perigo de autores como Nelson Rodrigues, cujas frases extremamente criativas acabaram virando clichês: óbvio ululante... calçar as sandálias da humildade... elas gostam de apanhar... o olho rútilo e o lábio trêmulo... Parem de repeti-las, amigos. Passou do ponto. Deixem que repousem apenas nas páginas imortais (olha o clichê) do velho Nelson.

O clichê serve de atalho, quando estamos com preguiça de pensar e queremos chegar logo ao ponto principal. Mas, por que não pararmos para pensar neles? Seria um bom exercício nas faculdades: invente uma nova maneira de dizer um clichê. Não é possível que entre 40 alunos não surja pelo menos uma boa idéia! 

Quem criou um clichê não o criou do nada, e sim a partir de uma situação, um fato concreto, uma associação de idéias. Este processo pode ser refeito para produzir um resultado novo, desde que você seja um redator de mão-cheia. (Olha o clichê!)






0723) A primeira leitura (13.7.2005)



Tempos atrás vi uma entrevista de Harrison Ford no programa “Inside the Actor’s Studio”, no Canal GNT da Globosat, um interessante programa onde atores são entrevistados no palco, diante de uma platéia de estudantes de direção e interpretação. A certa altura alguém lhe perguntou como fazia quando se via diante de um impasse, ou quando “perdia de vista o personagem”, esses problemas típicos dos atores. Ford respondeu que nessas horas procurava lembrar quais tinham sido suas emoções durante a primeira leitura do roteiro, e retornava a elas como um ponto de partida para recomeçar todo o processo. Por isto, dizia ele, a primeira leitura tinha que ser uma leitura concentrada, intensa, porque destas suas reações iniciais à história escrita poderia depender muita coisa futura do seu trabalho.

Numa entrevista publicada no “Suplemento Cultural” deste jornal (22 de maio) diz Stanley Kubrick, quando perguntado sobre o seu hábito de adaptar obras literárias: “Há uma grande vantagem em se basear em material literário, é que você tem a oportunidade de ler a história pela primeira vez. (...) A vantagem de uma história que você pode realmente ler é que você pode lembrar o que sentiu quando a leu pela primeira vez; e isso funciona como um julgamento ao tomar decisões que você tem que tomar ao dirigir um filme, porque mesmo com uma história de outro escritor você se torna tão íntimo dela depois de certo tempo que você não sabe realmente como ela vai ser vista por alguém que veja o filme pela primeira vez. Então pelo menos você tem aquela primeira impressão da história e suas primeiras idéias, que são muito importantes”.

São visões muito parecidas, de dois sujeitos que, ao que eu saiba, nunca trabalharam juntos. (Há um episódio menor, mas curioso, envolvendo os dois: quando Kubrick dirigiu Eyes Wide Shut, o roteirista Frederick Raphael colocou o nome “Hasford” no personagem vivido por Tom Cruise porque Kubrick insistia em que ele devia “parecer um sujeito comum, tipo Harrison Ford”). Ambos, no entanto, mostram uma percepção clara de um aspecto importante da nossa experiência com a Narrativa, a Ficção, a história contada. No momento em que começamos a ouvir (ler, ver) uma narrativa estamos diante de algo que desconhecemos, que não sabemos como vai terminar. Estamos diante de uma situação em que, como na vida real, tudo pode acontecer. Tudo é possível (dentro, é claro, da moldura-de-plausibilidade de cada gênero literário); em termos da narrativa em si, dos acontecimentos, tudo é novo e inédito. E nossa reação a isto é também uma reação espontânea, franca, real.

Numa segunda leitura, o infinito de possibilidades fechou-se numa única versão. Mas ser capaz de lembrar nossa primeira reação é tornar presente em nós a reação do quem estará no futuro vendo aquela história pela primeira vez. Como nós vemos a vida: interessados em cada novo episódio que surge, e sempre sem saber como vai terminar.

0722) Dia de Bagdá em Londres (12.7.2005)


O atentado terrorista em Londres, semana passada, ocorreu num dia em que eu preparava, a pedido do “Correio Braziliense”, um artigo sobre a obra de H. G. Wells e o seu romance A guerra dos mundos (1898), cuja adaptação dirigida por Spielberg está em cartaz. Wells, um sujeito de classe inferior que graças à literatura se impôs às elites britânicas e mundiais, nunca viu o Império Britânico com simpatia. Numa carta durante a feitura do livro, ele comentava com uma amiga, divertindo-se à beça com o tratamento que dava aos distritos e bairros londrinos: “Destruí Woking por completo, matando meus vizinhos de maneiras dolorosas e estranhas. Depois avancei através de Kingston e Richmond, na direção de Londres, que botei abaixo, escolhendo South Kensington para alguns atos de especial atrocidade”.

O que levava um londrino a proceder assim? Creio que uma enorme dissatisfação com o papel imperial, militarista e despótico que seu país desempenhava no mundo. Claro que as destruições de Wells eram simbólicas, virtuais, meros nomes numa folha de papel. Mas talvez alguns sujeitos da Al-Qaeda, numa caverna do Paquistão, também procedam assim, folheando um Guia da Folha sobre Londres: “Que tal uma bomba nessa estação aqui? Tem tanto movimento...” Fazem um “X” com lápis hidrocor num mapa, e pronto, algumas dezenas de pessoas que eles não conhecem irão morrer ali.

Do mesmo jeito, os sunitas de Bagdá explodem bombas todos os dias em sua própria cidade. Lá, morre todo dia o equivalente aos londrinos que morreram em 7 de julho. É uma guerra-dos-mundos que acontece ali, só que do ponto de vista dos órfãos de Saddam eles são os londrinos, e os americanos e britânicos são os invasores de Marte, que desembarcaram ali bombardeando tudo e todos. A lógica perversa da guerra faz com que papéis se invertam com a maior facilidade. Os londrinos estão compreensivelmente chocados com o que lhes aconteceu, mas quantos deles se lembram de que em Bagdá aquilo acontece diariamente?

Minhas simpatias vão todas para Londres, cidade onde nunca fui mas que reverencio como um católico reverencia Lourdes ou Fátima. Se um dia eu desembarcar na cidade dos Beatles, Sherlock Holmes e H. G. Wells, vou precisar me conter para não beijar o chão do aeroporto. O que acabou de ocorrer ali é uma caricatura cruel da situação descrita por Wells em A Guerra dos Mundos. No livro/filme, o poderio tecnológico do exército marciano é derrotado pelas humildes bactérias terrestres; agora, o poderio tecnológico do Império Britânico e do Império Norte-Americano está sendo “comido pelas beiras” pela guerrinha miúda mas mortal do terrorismo.

Londres já foi arrasada mais de uma vez, por incêndios, pestes, bombardeios. Pelos depoimentos e mensagens que tenho visto na Internet todos estes dias, os londrinos estão mais firmes do que nunca. Continuam a beber no pub e a dançar nos porões, como faziam durante os bombardeios nazistas.

0721) Onomatopéias musicais (10.7.2005)





Rola por aí uma discussão antiquíssima sobre a diferença entre poema e letra de música. A diferença, por suposto, existe. O problema que eu vejo na discussão é que os praticantes do poema-de-livro insistem em afirmar que este é sempre e necessariamente superior à letra de música. É uma espécie de “direito adquirido” ou “sangue azul”: versos que apareçam num livro pertencem a uma casta literária superior à dos versos que aparecem numa canção-cantada. Já falei do assunto aqui. Para mim, é o velho preconceito bacharelesco, tão brasileiro, de considerar que “as Letras” dão uma imediata superioridade intelectual a quem as pratica.

Meu pai era um que não perdoava. Toda vez que a gente ouvia no rádio uma dessas músicas brasileiras que se estendem em refrões do tipo “ô-lê-lê, ô-lê-lê-ô”, ou “laraiá, laiá, laiá”, ele dizia: “Mas que coisa impressionante! O camarada deve ter passado uma noite inteira acordado, pensando, para ter a idéia de dizer uma coisa tão profunda”. Diplomado na escola do soneto, para ele o ato de entoar sílabas sem sentido era uma perda de tempo, e uma prova de indigência mental.

Ledo engano, Seu Nilo. A letra de música pede muitas vezes essas onomatopéias musicais, esses sons que nada querem dizer e que em contrapartida nos dizem tanta coisa. Dizem pela nudez sonora desses fonemas, despidos do seu verniz dicionário, que retornam à função primitiva de sons que são apenas sons. Quem lhes confere sentido não é uma carga simbólica consensualmente prefixada, mas a emoção nua e crua da voz que os entoa. Coloquei a palavra “primitiva” de propósito, com seu duplo sentido de rudimentar e de essencial, básico, comum a todos.

Vocês se lembram daquele samba de Beto Sem Braço e Aluísio Machado para o Império Serrano no carnaval de 1982: “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”. É a descrição da cadência marcada pela bateria da Escola, uma tentativa de descrição fonética do som produzido pelos percussionistas. Citado no meio de uma conversa como mera ilustração, foi tão marcante que virou enredo da escola e refrão do samba. Nunca o escuto sem me lembrar do famoso grito de guerra do rock: “A-wop bop a-loo bop a-wop bam boom”. O que diabo quer dizer isto? Nada, escrito num papel. Um monte de coisas, se você vir Elvis Presley ou Little Richard explicando com o corpo do que se trata.

Os Demônios da Garoa cantavam “Can-Gans-Cans, Gans-Culans” no refrão de “Saudosa Maloca”; isso incomodou tanto os puristas do dicionário que tentaram substituir o refrão pelo patético “Joga as cascas pra lá”. Esta é uma manobra característica da mentalidade não-musical. Há pessoas que ficam profundamente perturbadas diante de sons que nada significam, principalmente se o sujeito que emite estes sons parece estar se divertindo à beça. Estas pessoas terão sempre uma relação difícil com a música, com a letra de música, e com tudo que depender de uma presença física humana para ser plenamente compreendido.




0720) Os dois Mazzaropis (9.7.2005)



Alguém por aí talvez se lembre de Mazzaropi. Foi o nosso caipira mais famoso, juntamente com o Jeca Tatu inventado por Monteiro Lobato. Com seu chapéu de palha de abas desfiadas, camisa quadriculada, calças puxadas para cima e “meia coronha” (curtas demais) embaixo, era o protótipo do caipira bobo, sentimental e eventualmente esperto: um Didi Mocó paulista que reinou nas décadas de 1960-70. Por trás desse personagem refugiavam-se um ator e diretor de não muitos recursos, e um produtor inteligente que fez da PAM Filmes (Produções Amácio Mazzaropi) a detentora de alguns dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro. Mazzaropi era a prova viva de que as raízes rurais do nosso povo são fortíssimas; isto fez com que fosse amado e odiado. Cada filme seu era um arrasa-quarteirão em matéria de bilheteria, e era ritualmente esquartejado pelos críticos de cinema, inclusive o locutor que vos fala.

O outro Mazzaropi foi batizado em alusão ao primeiro. Acho que ninguém mais se lembra dele, fora eu; talvez já esteja morto e enterrado. Era um vendedor de picolés que estava sempre no Estadual da Prata ou no Presidente Vargas. Parecia um pouco com o Mazzaropi paulista: a mesma cabeça chata, a testa larga, o queixo fino, o bigode, sempre sorridente e com olhos tristes, sempre brincalhão, mesmo quando “levava um xêxo”, o que não era raro no tumulto das arquibancadas por onde ele circulava durante os jogos.

Por que lembro dele? Porque Mazzaropi me lembra um cara a quem chamei “o falso Pasolini”. Por volta de 1968 eu peguei o ônibus na lateral do Colégio das Damas para ir ver um jogo do Treze quando olhei para um banco ao lado... e lá estava Pier Paolo Pasolini! Ele mesmo, o diretor do Evangelho Segundo São Mateus! O mesmo rosto vincado, de rugas fundas, um tanto escaveirado. Vestia uma roupa humilde, remendada, e acho que levava uma marmita no colo. Claro, não era Pasolini: mas era um clone, um sósia perfeito.

Daí me surgiu uma teoria maluca que tenho até hoje: Deus, ou a Natureza, ou o Acaso, produz dezenas de “clones” idênticos e os joga no mundo, na esperança de que pelo menos um deles dê certo. Uns viram cineastas, outros viram picolezeiros ou operários. Na época eu considerava isto como uma prova de sucesso ou fracasso. Sucesso para mim era dirigir Teorema, fracasso era comer de marmita. Hoje continuo achando o mesmo, mas com menos veemência. A toda hora cruza por mim na rua um sósia de algum figurão internacional. São sete horas da noite e o cara pega o mesmo ônibus que eu, voltando para casa com a pasta e o embrulho de pão embaixo do braço, um ar cansado, ausente e tranqüilo. Vai ver que tem uma mulher carinhosa à sua espera, crianças alegres, um prato de sopa quente, o Jornal Nacional, o futebol, uma noite de sono profundo. Ele nunca notou que é a cara do presidente da Fifa ou do primeiro-ministro da França, e se notasse talvez desse de ombros e murmurasse: “Pois ele que faça bom proveito”.