segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

4433) "A Balada de Buster Scruggs" (11.2.2019)



Este filme dos irmãos Coen está em streaming no Netflix, não sei se chegou a passar nos cinemas, aqui no Rio pelo menos. Os sedentários agradecem. O Netflix, o YouTube e a UbuWeb têm seus pecadilhos, mas nada que rezar uns dois rosários não absolva. Têm crédito.

Os irmãos Coen são desses cineastas pouco convencionais que não apenas pegam idéias de todas as direções, como não fazem muita questão de fazer filmes parecidos uns com os outros. Este aqui, a meu ver, parece com E aí, meu irmão, cadê você? (“O Brother, where art thou?”, 2000), acima de tudo pela ambientação tipo Velho Oeste. E pelo agarre-o-que-puder de historietas, cáusos, anedotas.

Dias atrás eu estava comentando no meio de uns amigos o quanto o cinema de algumas décadas atrás nos dava filmes-em-episódios. As comédias italianas em episódios eram imbatíveis, fossem todos eles do mesmo diretor ou de vários.

O filme em episódios está para o longa-metragem comum assim como o livro de contos está para o romance.

Com aquela prudência de “acender velas a Deus e ao Diabo” dos comentaristas de futebol, os críticos exigem do filme em episódios que ele tenha coerência, sem por isso deixar de exibir variedade. Em Buster Scruggs, é a ambientação histórico-geográfica que dá a unidade do filme, por mais que as histórias que conta sejam diferentes em enredo, em tom, em paisagem social. É como um tecido inteiriço com várias estampas diferentes: percebe-se a mudança do desenho mas vê-se que os fios de algodão são os mesmos, independente da cor.


O primeiro episódio, “The Ballad of Buster Scruggs”, é o mais divertido, com Tim Blake Nelson fazendo um herói picaresco do faroeste, que cavalga de violão em punho na solidão dos desfiladeiros, cantando a plenos pulmões, para avisar o público que não é realismo que se deve esperar desse conto de façanhas munchausenianas.

O conto é tipo literatura de cordel, cheia de jactância verbal – um dos fios que costuram o filme inteiro. A toda hora brota um personagem com um “bife” de página e meia para recitar, com vocabulário preciosista e (os atores são muito bons) timing competente.


O segundo episódio, “Near Algodones” ainda tem algo do clima de “tall tale” do anterior, com a engenhosidade meio absurdista do caixa de Banco cheio de recursos contra assaltos, o suspense busterkeatoniano de quando o quase-enforcado vê o cavalo querendo ir embora de baixo dele, e assim por diante. É mais uma história que diverte pela imprevisibilidade.


O terceiro é “Meal Ticket”: aqui entramos no mundo meio bradburyano dos “travelling shows” em que um homem-tronco de incrível eloquência declama Shelley, Shakespeare, Lincoln e tudo o mais diante de embasbacadas platéias redneck oitocentistas.

Neste “conto”, o humor-risada se retrai um pouco. O que se produz é aquela risada-arquejo que explode e logo se contém, quando vemos algo bizarro demais para ser verdade.


O quarto conto, “All Gold Canyon”, baseado em Jack London, é um dos menos movimentados, mas tem praticamente um solo de Tom Waits como um velho garimpeiro escavando o chão escuro, úmido, de um vale espantosamente belo.

O velho é lacônico, e ademais está falando sozinho, mas aqui a gente percebe outro fio amarrando o filme: em praticamente todos os episódios um personagem canta uma canção inteira, diegeticamente (ou seja, é o personagem que canta, não a trilha sonora que aparece). Não há muita ação, a não ser na parte final; mas o personagem e o cenário sustentam tudo nas costas.


O quinto episódio, “The Girl Who Got Rattled” (baseado em Stewart Edward White) é uma história de amor que surge ao longo da peregrinação de uma caravana de carroções seguindo a famosa Trilha do Oregon, rumo à margem extrema ocidental do continente.

Um homem e uma mulher se conhecem, se ajudam, se entendem ao longo das pequenas tragédias da migração. Um casal de atores (Zoe Kazan e Bill Heck) com cenas de uma rara intensidade e contenção. Uma história que poderia ser menos cruel, mas ainda assim é a mais emocionalmente verdadeira de todo o filme. O roteiro severo ajuda a deixar a parte afetiva mais comprimida e poderosa.


O sexto e último, “The Mortal Remains”, é uma diligência com o habitual elenco de passageiros mutuamente desconhecidos que vão se revelando ao longo do trajeto. Tem um clima maupassantiano (“Bola de Sebo”), e aqui voltamos às longas perorações, cheias de retórica, que dão aos atores a chance de monólogos pitorescos. E mais duas canções dentro da diligência.

Este último episódio cria um efeito de estranhamento nas últimas cenas, como se ao longo da viagem a diligência tivesse penetrado inadvertidamente em outro filme. Ou os personagens, como num romance de Philip K. Dick, estivessem gradualmente sendo conduzidos para o Além Túmulo, sem perceber.

Os irmãos Coen conseguem harmonizar estas histórias porque é bem do temperamento deles essa facilidade em beber de todas as fontes, e de contar uma história meio surrealista com torção suficiente para que aquilo não só pareça ter mesmo acontecido, como pareça ter acontecido apenas uma vez.

A gente tem a sensação de que aquelas pessoas não se conhecem, nunca cruzaram umas pelas outras, mas tudo aquilo aconteceu meio que simultaneamente, num universo único, coerente. Mesmo os “tall tales”, com sua dose de mentira, pertencem àquele mundo, são as histórias que aquelas pessoas contam umas para as outras, em volta daquelas fogueiras entre os carroções, ou daquelas mesas de jantar de uma casa de hóspedes.

Eu sou suspeito, porque gosto de praticamente tudo que já vi dirigido pelos dois irmãos. É um jeito de fazer cinema que me agrada: ao mesmo tempo são perfecionistas e são descontraidamente leves. São eruditos e são completamente cultura-oral. Seus filmes geralmente sabem o momento certo da cena séria e da cena engraçada, da situação implausível e da situação dolorosamente verdadeira.