quinta-feira, 30 de abril de 2020

4575) A ausência patológica do medo (30.4.2020)




(Jared Kushner e Ivanka Trump)


Anos atrás, numa reunião social, conversando sobre política (aquela conversa em torno de uma mesa com uísques e cervejas, onde a gente conhece apenas um terço dos participantes), alguém tocou no nome do ex-presidente Fernando Collor.

Houve a malhação-de-Judas habitual (claro – ele já tinha sido defenestrado do Poder), mas me chamou a atenção o depoimento de um dos presentes, que disse conhecê-lo pessoalmente.

– Collor é o exemplo típico do cara produzido para ocupar o poder: familia de políticos, bons colégios, boa formação, boa base cultural, boa oratória... Mas existe nele um traço que o diferencia do resto dos políticos. Ele tem o que na medicina, na psicologia, é chamada “Ausência Patológica do Medo”. É um traço quase de psicopatia, e não está necessariamente relacionada a mau-caratismo, crueldade, etc.  É simplesmente o sujeito que tem 100% de certeza a respeito de tudo que pensa, que diz e que faz. Torna-se um cara perigoso porque não lhe passa pela cabeça que alguma ação dele possa não dar certo.

E de fato, aquela imponência varonil de Collor, caminhando na rampa do Planalto com a empáfia e a autoridade de um granadeiro prussiano, sempre produziu uma impressão muito grande no povaréu. Naquela fervilhante campanha de 1989, quantas vezes em mesas de bar eu vi comentários do tipo “Esse aí é macho mesmo, com ele não tem nhém-nhém-nhém...”.

(Digressão: “nhém-nhém-nhém” era o equivalente a “mi-mi-mi” trinta anos atrás, e foi posto em circulação por Fernando Henrique Cardoso.)

Isto me veio à mente lendo um artigo de Michelle Goldberg no NYTimes, onde ela cita o livro-pesquisa de Andrea Bernstein sobre o trêfego Jared Kushner, o conhecido genro de Donald Trump. 

Kushner detém hoje em dia, nos EUA e por tabela no mundo, um poder inconcebível para gente como eu, que anda de ônibus e volta do “Extra” carregando sacolas. Valendo-se do inevitável “berço” e do previsível “altar” (casou com a filhinha do potentado), ele ganhou uma posição desproporcional na política do país, sem ter sido eleito sequer para vereador.

Diz Bernstein:

Os profissionais que têm lidado com Kushner afirmam que, não importa o que ele esteja fazendo, “ele acredita que pode fazer aquilo melhor do que qualquer outra pessoa, e tem uma confiança suprema em sua própria capacidade e seu próprio julgamento, mesmo quando não sabe do que está falando".

Isso bate com uma frase que a imprensa cita às vezes. Em 2006 Kushner comprou o jornal The New York Observer, e logo entrou em choque com o editor-em-chefe, Peter Kaplan, que produziu a divertida frase a seu respeito: “This guy doesn’t know what he doesn’t know”, algo como “Esse rapaz não sabe nem mesmo quais são as coisas que ele ignora”.

O mais interessante é que pessoas como Fernando Collor e Jared Kushner (e os milhões que eles representam, e que são iguaizinhos a eles) são o exemplo mais típico do que a gente chama de “meritocracia”, porque são de famílias ricas e poderosas, estudaram nos melhores colégios, devem ter tirado excelentes notas, e tudo o mais.

Quando isso coincide de acontecer num indivíduo que se acha predestinado, que foi criado ouvindo todo mundo dizer que ele é diferenciado, que ele pertence a um grupo de poder e deve “sonhar alto”, que ele é um vencedor, etc. e tal, é meio caminho andado para o cara se achar um super-homem.

E o problema fica ainda maior quando ele tem esse pequeno desvio psiquiátrico, a “Síndrome da Ausência Patológica do Medo”, que na linguagem das ruas a gente chama de “falta de simancol” ou “falta de desconfiômetro”, e os mais calejados tratam como “a certeza da impunidade”.