“Góipe” é uma corruptela de “golpe”, de “gulp”, de “gole”.
Vale destacar que a lavadeira de minha mãe, quando usou essa palavra, o fez sem
afetação alguma; era a palavra que ela conhecia, num contexto de conversa
amigável com uma pessoa de sua convivência. E quando o bêbo aceitou a dose de
cana-de-cabeça, usou a corruptela “góipizim” de forma espirituosa, como um
gracejo. Ele não falava assim em sua vida normal. Era um daqueles professores jovens
do Campus II da UFPB que no fim das manhãs de sábado iam para o Caldo de Peixe
tomar umas e outras, e discutir tropicalismo, marxismo, armorialismo.
Adivinhar as origens das palavras e os parentescos entre
elas nunca é trabalho jogado fora, para quem quer ser jornalista, escritor,
tradutor. Essa mania muitas vezes nos leva a cometer enganos, iludidos por
semelhanças superficiais. (Dias atrás, comentei aqui minhas tentativas
frustradas de descobrir se a palavra “obrigado” vinha do verbo “brigar”; não
vem.) E pode nos proporcionar também uma diversão extra – inventar etimologias
fictícias para uma palavra qualquer.
Mas... voltando ao tema principal, como num sinfonia: de
que maneira a palavra “golpe” adquiriu a pronúncia popular “góipe”? É um
processo lento e sujeito às influências do Acaso, mas que pode ser rastreado. A
Linguística tem certamente um termo específico para esse tipo de erosão
fonética, ou de amaciamento sonoro. É algo que pode inclusive ser previsto,
quando imaginamos como pode ser nosso idioma a 200 anos no futuro; e pode ser
deduzido retroativamente, se nos projetarmos 200 anos no passado.
Há uma certa tendência (corrijam-me os linguistas)
amolecendo esse som de “L” (e às vezes de “LH”) num “I” que flui mais solto
quando articulado em voz alta. (Lembrem-se, nada aqui tem a ver com letras
escritas; estamos falando de sons.)
Quando um nordestino pede na feirinha livre “um mói de
coentro” ele está pedindo “um molho de coentro”. Quando ele diz que “Isso aqui
é muito paia”, está dizendo que “é muito palha”, para dizer que não presta. E
nem vou falar em termos como véio e véia, que todo mundo entende.
Prefiro lembrar a piada clássica do barbeiro matuto, que depois
de escanhoar o cliente pergunta, solícito: “Qué
áico, táico, ou qué que mói?...” (“Quer álcool, talco, ou quer que
molhe?...”).
Tudo isto aqui está em formato de afirmações, mas são apenas
hipóteses. Uma hipótese deve sempre vir em forma de afirmação, para despertar a
sanha contestatória dos leitores, de onde tanto pode vir mero som e fúria,
quanto um raio de luz nas trevas do nosso desconhecimento coletivo.
Não tenho nenhuma hipótese de como a palavra “golpe” veio
a significar “gole”, ou de como esta, que talvez seja mais antiga, acolheu essa
variante. Registro apenas uma terceira ocorrência, muito próxima aos dois: o
verbo “golfar” e o substantivo “golfada”. “O
sangue golfava de um profundo ferimento que ele tinha no peito...” “Traz um pano aí, o bebê está golfando...” Em
ambos os casos, trata-se de pequenas quantidades de líquido, como num “gole”.
É bom registrar que “golfada”
também sofre a mesma corruptela e
aparece na linguagem nordestina como “goipada”,
no sentido de “cuspida”, ou de “golfada de vômito”.
Goela = pescoço, garganta, falaçãoGüelar = ganhar no papo, na conversa finória. “Preciso güelar um convite pra essa festa, vou dizer que sou músico-reserva da banda.”Gola = parte do vestuário em volta da gargantaGula = apetite excessivoGuloseima = comidinha gostosa
... e por aí vai.
Ao verificar a relação entre “gueule / goela”, não pude
deixar de pensar: “E a palavra pescoço?... Que papel desempenha nessa nuvem
semântica?...”
Claro que já havia uma certa pulsão rabelaisiana nessa
linha de pesquisa, pois todo mundo sabe que “pescoço” em francês é “cou”; se não
todo mundo, pelo menos Campina Grande inteira sabe, porque a quantidade
de piadas, anedotas e gracejos envolvendo estas palavras daria um livro.
Pescoço em francês é “cou”, mas também é grafado como
“col” – e vejam como a Terra é mesmo redonda, a gente dá uma volta tão longa e
retorna ao português. “Colo” é pescoço, sim, lembrem da personagem de Arsène
Lupin, “Edite, colo de cisne”. Só que devido ao sacolejo dos séculos a palavra
aqui foi se espalhando por toda a parte fronteira do corpo – falamos de uma
mulher cujo decote a deixa “com o colo à mostra”, falamos de “trazer um bebê ao
colo”, falamos de “sentar no colo”... Mas tudo isso, palpito eu, escorre do
pescoço. “Colar” (o adereço) deve ter a mesma origem: algo que se usa ao
pescoço.
O trajeto dos dominós veio se encaixando assim: golpe /
gole / goela / pescoço / cou / ... E num estalo completei mais uma volta e
cheguei ao ponto de partida: golpe é francês é coup, de onde vêm as expressões famosas “coup de grâce” (“golpe de misericórdia”) e “coup d’état” (“golpe de estado”). Coup é associado ao verbo “couper”,
cortar. Parece que os franceses têm uma tradição guilhotinadora, enquanto
outros países optavam pelo fuzilamento e a cadeira elétrica. Quando fui
verificar coup, no entanto, o que
encontro como sentidos possíveis?
O mesmo sentido que deu início a este passeio: “golpe” (coup) quer dizer “gole (de bebida)” (coup).
Claro que estas associações de idéias não são fixas nem
têm todas as mesmas nuances. Cada cultura e, mais, cada pessoa projeta
vibraçõezinhas diferentes em tudo que diz. Chego mesmo a concordar com Douglas
Hofstadter, quando no seu incrível Le Ton
Beau de Marot (1997, cap. 10), ele questiona:
Um novaiorquino do Upper East Side fala a mesma linguagem de outro que é do Upper West Side? “Central Park” significa a mesma coisa para ambos? E o que dizer de “Broadway”? E de “cachorro”? E de “coisa”? E de “um”?