quinta-feira, 3 de junho de 2010

2115) O soneto azul (18.12.2009)




(Carlos Pena Filho)

É talvez o soneto mais famoso de um grande poeta que hoje anda quase esquecido. Carlos Pena Filho era um dos poetas mais elogiados por meu pai. Foi um desses muitos poetas brasileiros que morreram jovens (31 anos) mas deixaram pelo menos uma dúzia de poemas que provavelmente serão preservados e ainda serão republicados e discutidos cem anos depois da morte do autor. O que não é nada mau para qualquer texto.

O “Soneto do Desmantelo Azul” é um dos mais bonitos de Carlos Pena, com suas repetições, simetrias, assonâncias, e principalmente com o uso livre e desassombrado de imagens cromáticas. Ele começa assim: 

Então pintei de azul os meus sapatos 
por não poder de azul pintar as ruas 
depois vesti meus gestos insensatos 
e colori as minhas mãos e as tuas. 

A espontaneidade da dicção de Carlos Pena o leva a essa bela inversão nos dois primeiros versos (“pintei de azul”, “de azul pintar”) que dá fluência ao verso e é tão natural que é quase imperceptível. 

A imagem dos sapatos e das mãos pintadas de azul é quase surrealista; lembra o grupo norte-americano Blue Man (que agora aparece na TV num comercial da Tim), lembra certos quadros de Magritte e De Chirico.

O segundo quarteto diz: 

Para extinguir em nós o azul ausente 
e aprisionar no azul as coisas gratas, 
enfim, nós derramamos simplesmente 
azul sobre os vestidos e as gravatas. 

Como não tenho o livro, recorri à Internet, e vejo que o segundo verso aparece em saites diferentes com duas redações, a que está acima e esta: “e aprisionar o azul nas coisas gratas”. Ambas as leituras são possíveis e poeticamente legítimas, desde que a gente considere que o azul se aprisiona nas coisas, ou elas que se aprisionam nele. 

No primeiro verso também aparecem, em diferentes fontes de consulta, “extinguir de nós” e “extinguir em nós”, variantes que não esvaziam a imagem proposta: pintar de azul é extinguir a ausência do azul. (Sem falar na bela assonância, azul / ausente).

Note-se que as rimas deste quarteto diferem das do primeiro. E se considerarmos os dois tercetos em conjunto, veremos que eles não passam, em termos de rimas, de um quarteto e um dístico rearranjados: 

E afogados em nós, nem nos lembramos 
que no excesso que havia em nosso espaço 
pudesse haver de azul também cansaço. 

E perdidos no azul nos contemplamos 
e vimos que entre nós nascia um sul 
vertiginosamente azul. Azul. 

Trata-se, portanto de um soneto inglês em estrutura (4-4-4-2), disfarçado graficamente de soneto italiano (4-4-3-3). Disfarce muito frequente na poesia brasileira, onde o modelo italiano predominava.

A aparente falta de lógica, e a intensidade visual, fazem o encanto deste soneto, que não é perfeito, mas surpreende a cada passo (como no formato de sua última linha: uma palavra longuíssima seguida pela repetição de uma palavra curta). É um soneto que transborda alegria de viver, audácia e romantismo juvenil. E que me lembra (não sei por quê) a camisa amarela de Maiakóvski.


2114) “O Dossiê Drummond” (17.12.2009)



Este livro-reportagem de Geneton Moraes Neto (Ed. Globo, 1994) é um memorial que começou a ser elaborado logo após a morte de Carlos Drummond de Andrade. Como se sabe, o poeta faleceu em agosto de 1987, alguns dias após a morte de sua filha única Maria Julieta, vítima de câncer. O longo período de doença da filha, os tratamentos de quimioterapia a que ela se submeteu e sua agonia final desgastaram o coração do poeta, que, conforme testemunhos, perdeu a vontade de viver. Geneton inclui neste livro uma longa entrevista que fez com Drummond pelo telefone, cinco dias antes da morte de Maria Julieta: um total de 76 perguntas e respostas que neste livro vêm publicadas na íntegra pela primeira vez.

Após a morte do poeta, Geneton complementou a entrevista com depoimentos de 45 pessoas que em algum momento cruzaram com Drummond, ou que conviveram com ele ao longo dos anos. Neles, os entrevistados dão um balanço nessa convivência, ou relatam episódios em que sua trajetória cruzou com a do poeta. Entre os amigos de longa data estão Ziraldo, Otto Lara Resende, Antonio Houaiss, Hélio Pellegrino. Encontros eventuais são relatados por Luís Carlos Prestes, Caetano Veloso, Nara Leão, etc. Curiosos são os depoimentos das jornalistas Edda Maria (Jornal do Brasil) e Nelma Quadros (O Pasquim), com quem Drummond costumava manter longuíssimas e picantes conversas telefônicas, em que contava piadas fesceninas e falava palavrões. Muitos depoimentos convergem para essa descrição de um homem recatado, tímido, introvertido, às vezes excessivamente formal em público, mas que na companhia dos amigos (e das amigas) se soltava, dizia piadas obscenas, pregava peças, passava trotes, etc.

Cerca de um terço do livro é ocupado pelo capítulo “As Fitas Secretas”, em que Geneton transcreve o conteúdo de fitas cassete gravadas por Drummond junto com sua namorada Lygia Fernandes. A existência de Lygia foi, ao que parece, uma espécie de segredo público mantido por Drummond e seus amigos durante décadas: todo mundo sabia e ninguém comentava. O poeta conheceu Lygia em 1951, quando ambos trabalhavam na Divisão de História do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN). Até morrer, manteve a rotina de encontrar-se com Lygia no apartamento onde ela morava sozinha, do fim da tarde até a noite, quando então ele se recolhia ao apartamento onde morava com a esposa Dolores, a poucos quarteirões de distância. Um desses arranjos mineiros – discretos e estáveis – que se manteve por trinta e seis anos. Por volta de 1977, Lygia ligou um gravador e fez uma longa entrevista informal com Drummond, transcrita neste livro pela primeira vez. “O Dossiê Drummond” é um livro sem revelações bombásticas, mas que afina os pixels da imagem do grande poeta, e do grande sujeito que Drummond deve ter sido. Um cara com quem teria sido possível passar um dia inteiro conversando sobre coisas que valem a pena.

2113) Se a moda pega (16.12.2009)



(Larry Ochs)

Deu no The Guardian, um jornal respeitável, portanto deve ser verdade. 

(Caro leitor: a primeira parte desse trecho é provavelmente verdadeira, porque foi no saite do jornal que li a matéria, ou pelo menos num saite que se apresenta sob este nome, não sendo impossível que eu tenha sido direcionado a um falso saite homônimo que publica notícias pitorescas e inventadas. 

A segunda parte é conjetura minha, porque ouço há tantos anos falar nesse jornal, e desde que surgiu a Internet fui tantas vezes nesse saite, que acabei produzindo em mim mesmo a noção de respeitabilidade do jornal, coisa com a qual não sei se os leitores ingleses, e os demais, concordariam. 

A terceira parte deve ser imediatamente posta em dúvida, pois nem tudo é verdade que é publicado em jornais respeitáveis; eu próprio vivo a colecionar verdadeiros absurdos publicados naqueles que leio diariamente).

Se o parágrafo anterior lhe deu a impressão de um indivíduo em crise de crença, acertou. Certas notícias me dão a sensação de estar sendo vítima de uma pegadinha. 

Já me ocorreu, nestes tempos internéticos, ir parar (para dar apenas um exemplo) num jornal científico onde li até o fim, fortemente impressionado, uma matéria onde se analisavam palavras em inglês, aparentemente sem sentido, que alguns cientistas, graças ao microscópio eletrônico, haviam descoberto gravadas nas espirais do DNA humano. 

Uma descoberta que iria mudar toda a história da humanidade, e de fato a mudou durante os cinco minutos que levei para perceber que estava lendo uma espécie de Pasquim com paródias científicas. Portanto, como diziam os latinos... caveat, lector!

Toda esta cética introdução é para comentar a notícia (os mais céticos do que eu podem conferi-la aqui: http://tinyurl.com/y88knu8) do que sucedeu com o saxofonista Larry Ochs num festival de jazz na cidade de Sigüenza. A certa altura do show surgiu a Guarda Civil Espanhola para interpelar os organizadores. Segundo eles, um purista que estava na platéia resolveu chamar a polícia porque segundo ele “aquilo não era jazz”. 

Os policiais escutaram alguns minutos do show e chegaram à conclusão de que havia, sim, certo fundamento na queixa do espectador. Criou-se então o bate-boca entre o fã ofendido, os organizadores e os policiais. O pessoal do Festival argumentou que Larry Ochs era um nome conhecido, seu som era de conhecimento público, e se o sujeito comprou o ingresso foi por sua conta e risco. O fã redarguiu que o médico lhe dissera ser “psicologicamente desaconselhável” para ele ouvir qualquer outro tipo de música que não fosse o jazz legítimo. 

Tudo se encerrou sem maiores consequências, mas, segundo o jornal, Ochs passou durante alguns minutos por uma certa crise de identidade musical. 

A pergunta agora é: Já pensou se a moda pega? Já pensou se alguém no Parque do Povo resolve ligar para a polícia e diz: “Venham aqui agora mesmo interromper um show! Isso não é forró nem aqui nem na Coréia!”





2112) “Navios negreiros” (15.12.2009)



A editora paulista Comboio de Corda lançou, num volumezinho pequeno e charmoso, com excelentes ilustrações de Maurício Negro, uma edição conjunta dos poemas homônimos “O Navio Negreiro”: um de Henrich Heine (1797-1856) e o outro de Castro Alves (1847-1871). A organização e os textos críticos são de Priscila Figueiredo, que examina e compara os dois poemas. Confesso que não conhecia o de Heine, nem sabia sequer que o poeta alemão tivesse escrito sobre tráfico de escravos. Este livro fornece informações sobre todo o contexto que inspirou os poemas, além de analisar as semelhanças e diferenças entre os dois.

O poema de Castro Alves é conhecido por todo brasileiro que se preza. Desde aquela clássica elisão que o faz começar com um apóstrofo: “’Stamos em pleno mar...” Tudo bem que era naquela época um recurso mais comum do que é hoje, mas não deixa de ser uma prova de coragem iniciar um poema com uma licença poética logo na primeira linha, na primeira palavra, no primeiro caractere! É um dos poemas mais bem estruturados do poeta baiano, ao qual a influência de Victor Hugo ensinou a compor poemas feitos de sucessivas partes, como os atos de uma peça, cada uma delas impondo um novo metro, um novo tom, numa concepção rítmica que dá ao todo a sensação de uma complexa suíte musical. É o caso deste poema, e também o de “Destruição de Jerusalém”, que foi escrito (fiquei sabendo agora, abismado) aos quinze anos de idade.

O poema de Heine é mais curto e mais simples. Dividido em duas partes, é uma sucessão de 36 quadras rimando ABCB. Seu tom é mais direto e menos oratório (previsivelmente!) do que o de Castro Alves. Heine nos mostra o navio através dos olhos dos traficantes que o conduzem, os quais se desesperam ao ver que a taxa de mortalidade dos negros só faz aumentar durante a viagem, e, para evitar que morram todos de banzo, trazem-nos para o convés e os fazem dançar, debaixo de chicote, ao som de instrumentos musicais tocados pelos tripulantes. É a mesma cena dantesca descrita pelo baiano (“Vibrai rijo o chicote, marinheiros! / Fazei-os mais dançar!”).

Priscila Figueiredo faz uma boa análise da frieza do espírito capitalista que move os personagens de Heine (“Seiscentos negros consegui / por uma nica, em Senegal; / à carne rija, aos tendões tesos / não há ferro que seja igual. // Ofereci em troca aguardente / miçangas, estanho e tecido. / Consigo quase mil por cento / se só metade houver morrido”). E lembra, com razão, que as três últimas estrofes do poema de Castro Alves estão entre as mais belas da poesia brasileira: “E existe um povo que a bandeira empresta / pra cobrir tanta infâmia e cobardia (...)... Auriverde pendão da minha terra / que a brisa do Brasil beija e balança (...)... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo (...)”. Um excelente exemplo do mesmo tema sendo trabalhado por duas inteligências e sensibilidades diferentes.

2111) As melhores cenas de comida (13.12.2009)



(O Fantasma da Liberdade)

Comparar “listas dos melhores” é, para mim, uma maneira de checar meu idiossincrático gosto com o de pessoas mais normais do que eu. Listas alheias não são melhores do que as nossas; sua virtude é serem alheias, diferentes, estranhas, e terem o poder de nos dar idéias a que não teríamos acesso por conta própria. Feita esta peroração, para reduzir a frivolidade da coluna de hoje, volto a comentar as listas do saite FilmCritic, desta vez “As 25 Refeições Mais Memoráveis do Cinema” (http://tinyurl.com/yhns6an). Como sou um homem ocupado, lembrei apenas três cenas, já com a certeza de que numa lista de 25 estariam todas presentes. Ledo engano. Apenas uma das minhas coincidiu com a lista do saite.

Primeiro, uma explicação. Tenho um certo pudor de ver pessoas comendo. O gesto de levar comida à boca, introduzi-la, mastigá-la, engoli-la, me parece meio obsceno. Minha reação é afastar os olhos, como se flagrasse uma pessoa, digamos, executando o ato inverso ao de comer. Por isso gostei quanto o FilmCritic incluiu a famosa sequência de O Fantasma da Liberdade de Buñuel, em que as pessoas trancam-se num cubículo para comer às ocultas, e depois sentam-se numa enorme mesa, num salão elegante, em volta da qual há privadas nas quais eles se sentam, depois de arriar calças e subir saias. Só não coloquei na minha lista porque não considero esta uma cena de refeição propriamente dita.

Minhas cenas: em Frenesi, de Hitchcock, o mau gosto britânico para a culinária é satirizado através da esposa do Inspetor, cuja inabilidade para a gastronomia faz o marido experimentar coisas visualmente horríveis, numa gag recorrente que pontua o filme inteiro. O oposto simétrico disto é a cena de As Aventuras de Tom Jones de Tony Richardson, em que Albert Finney e uma atriz jantam, antes de se recolherem ao leito. O modo como os dois, olhos nos olhos, mordiscam e saboreiam as guloseimas, além de muito divertido, é uma ilustração perfeita da teoria de que quando um homem e uma mulher vão para a mesa antes de ir para a cama já estão na cama, para todos os efeitos. Por fim, elejo (como o fez o FilmCritic) toda a meia-hora final de A Festa de Babette, um filme sobre gastronomia que é na verdade um filme sobre dedicação, devoção e ascese, e que se conclui, após o banquete, com a frase memorável: “Tudo que um artista pede é que lhe dêem condições de mostrar a plenitude de seu talento”. Ou algo assim.

A lista do saite tem algumas bobagens, mas inclui pelo menos uma cena que eu também deveria ter lembrado. A cena de Chaplin comendo a bota cozinhada em Em Busca do Ouro (1925) é um primor de boa idéia e de execução perfeita: chupando os pregos como se fossem ossinhos, enrolando os cadarços no garfo como se fossem espaguete... É uma cena tão carregada de camadas significantes (mímica, metáfora, rima visual, humor, sátira social) que bem pode servir como símbolo de tudo que o cinema já fez para nos deixar com água na boca.

2110) Carpeaux e a FC (12.12.2009)



Num artigo de 1959, Otto Maria Carpeaux desdenhava a literatura de ficção científica nestes termos: “Os habitantes de planetas na ‘science-fiction’, dotados de forças físicas e mentais superiores às nossas, são reedições dos gênios astrais da época pré-copernicana. Mais exatamente: são anjos. ‘Science-fiction’ é, inconscientemente, literatura pseudo-religiosa, literatura de edificação do homem que já não suporta sua solidão no Universo. (...) O sonho do desejo de conquistar o espaço produz seu efeito psicológico contrário. É o medo de uma catástrofe cósmica e da destruição do mundo. (...) A psicose é caracterizada pela perda total do contato com a realidade. Literariamente, a consequência é a baixa realidade: literatura de cordel.”

Como os leitores devem lembrar, durante muitos anos os respeitáveis dicionários brasileiros, em seu verbete sobre a palavra literatura, incluíam a menção: “Literatura de cordel – literatura de baixa qualidade”. É uma visão de classe que perdurou durante muitos anos e que fortaleceu muitos preconceitos. Para esses lexicógrafos, a boa literatura era praticada pelas elites. O que era praticado pelo povo era de má qualidade, já que o povo não tinha formação cultural e não poderia escrever bem, não poderia produzir boa literatura.

Algo parecido ocorre hoje com o termo “axé-music”, que surgiu para designar um conjunto de ritmos, instrumentações e danças com origem nos trios elétricos baianos, e que hoje virou um sinônimo de “música ruim”. Quando qualquer crítico musical da nossa imprensa precisa usar um termo pejorativo, usa “axé-music”, e a imensa maioria dos seus leitores aceita essa equação simplória. Por que? Porque o leitor já ouviu algumas dezenas de canções da “axé-music”, não gostou, achou que são todas parecidas, e se as que ele ouviu são parecidas todas as demais (que são dezenas de milhares) devem ser também. Em literatura, a expressão “livro de auto-ajuda” cumpre a mesma função preconceituosa.

Não tenho o Dicionário Aurélio, por exemplo, mas hoje o Houaiss define assim a literatura de cordel: “Literatura popular (especialmente contos, novelas e poesias) de impressão barata, exposta à venda em cordéis, especialmente em logradouros públicos do Nordeste do Brasil”. Em vez de um juízo de valor cheio de preconceito, uma descrição clara e sensata. Pode-se comparar a ficção científica à literatura de cordel? Claro que sim. Em ambas convivem o primitivo e o sofisticado, o antiquíssimo e o contemporâneo, o interesse comercial imediatista e o sonho da arte pela arte. Em ambas existe a convivência entre elementos fantasiosos e elementos realistas que não são enxergados por ninguém que não leia aquelas histórias – são uma forma de percepção do real que é exclusiva delas. Cordel e FC cumprem aquilo que a teoria literária chama de “função gnoseológica da arte”: produzir um tipo de conhecimento do mundo que não é proporcionado por nenhuma outra forma de literatura.

2109) O nascimento de Cristo (11.12.2009)



Qual a data do nascimento de Jesus Cristo? Mesmo os cristãos mais fervorosos devem reconhecer que a comemoração em 25 de dezembro é meramente simbólica, uma vez que ninguém sabe ao certo em que data o Cristo histórico teria nascido. Um artigo recente na “Biblical Archaeology Review” (http://www.bib-arch.org/e-features/christmas.asp) faz um exaustivo levantamento das referências históricas a essa data, e por fim se concentra em duas hipóteses. A primeira delas, segundo o autor, Andrew McGowan, é a mais disseminada. Diz que a data de 25 de dezembro foi escolhida porque se tratava da data em que há séculos se realizavam festivais pagãos de inverno (no Hemisfério Norte). Trata-se do Solstício de Inverno, e já em 274 d.C. o imperador romano Aureliano criou nessa data a comemoração do nascimento do Sol Invictus. Pelo que entendo, é a partir dessa data (a noite mais longa do ano) que as noites vão ficando gradualmente menos longas até se chegar ao Solstício do Verão em 25 junho, quando temos (no Hemisfério Norte, claro – aqui é o contrário) a noite mais curta e o dia mais longo, e aí tudo volta a caminhar no sentido inverso.

O problema é que os comentaristas cristãos dessa época não se referem ao fato, e a primeira menção conhecida vem apenas no século 12, através de um cronista chamado Dyonisius bar-Salibi. A teoria mais interessante (diz McGowan) é a que foi ressuscitada para o mundo moderno primeiro pelo francês Louis Duchesne e depois pelo norte-americano Thomas Talley. Remonta a cerca do ano 200 da Era Cristã, quando se afirmou que o dia da morte de Cristo (“14 de Nisan”, segundo o Evangelho de S. João) correspondia a 25 de março do calendário romano.

Isto faz com que haja um intervalo de exatamente nove meses entre a data em que Cristo teria sido morrido e a data do seu nascimento; portanto, a sua data de morte seria a mesma data de concepção, o que cria um ciclo simbólico de morte e ressurreição. Vários autores antigos comentaram essa crença, entre eles Santo Agostinho, em “Sobre a Trindade”: “Pois acredita-se que Ele foi concebido a 25 de março, o mesmo dia da sua Paixão; e assim o ventre da Virgem, onde foi concebido, e de onde nenhum mortal brotou, corresponde a esse novo túmulo em que foi sepultado, e onde nenhum homem repousou, nem antes ou depois dele. Mas ele nasceu, conforme a tradição, em 25 de dezembro”. McGowan aponta a presença desse simbolismo nas muitas obras de arte representando a Anunciação, em que a imagem do infante Cristo é representada descendo do céu com uma cruz.

Verdadeira ou não, a tese mostra o quanto de literário existe na composição dos mitos, e uso a palavra “mito” aqui no sentido de narrativa elaborada coletivamente e à qual se atribui uma verdade transcendental que vai além da verossimilhança e da possibilidade de comprovação. O mito cristão faz à Morte seguir-se o Renascimento, e esse é um dos seus símbolos mais poderosos.

2108) A palavra indivíduo (10.12.2009)



(ilustração: Alex Jobaggy)

Numa possível lista das minhas palavras favoritas na língua portuguesa, esta apareceria nos primeiros lugares. Por que? Não é uma palavra bonita como “cristalino”, não é uma palavra rara como “saudade”, não é uma palavra carregada de afetividade étnica como “cafuné”. É uma palavra fascinante pelo feixe de idéias contraditórias que concentra em si.

Vejamos. A palavra vem do latim. “Indivíduo” não passa de uma metáfora matemática: in (negativa) + dividuo (divisão). Ou seja: aquilo que não pode mais ser dividido, a unidade básica. É o mesmo que o grego “átomo”: a (negativa) + tomos (divisão). Só nesta pequenina equação etimológica temos uma aula completa de Filosofia e de Física Quântica! Quando lidamos com “aquilo que não pode mais ser dividido” estamos lidando com o imponderável, com o imprevisível, com aquilo que pode-se até enxergar de fora mas nunca se poderá interpretar por dentro. Nenhum cientista consegue prever e calcular o movimento de uma partícula sub-atômica.

(Aqui somos forçados a fazer uma atualização científica. Cem anos atrás chamava-se de átomo, ou seja, não-divisível, algo que hoje sabemos ser divisível, sim, em partículas menores como elétrons, prótons, nêutrons, e mais uma chusma de outras purpurinas microscópicas chamadas de mésons, bósons, quarks e centenas de outros nomes. Estes, sim, são (provisoriamente) os verdadeiros “a-tomos”, os verdadeiros não-divisíveis).

Nenhum físico consegue prever o movimento de uma dessas partículas. O famoso “princípio da incerteza” formulado por Werner Heisenberg dizia: ou sabemos a posição exata de uma partícula em dado instante, mas não temos idéia da velocidade com que ela estava se movimentando, ou então podemos calcular com precisão sua velocidade, mas aí nunca poderemos saber onde ela está num dado momento. Posição e velocidade: quanto mais nítida é a nossa visão de uma, mais desfocada se torna nossa percepção da outra.

A maneira mais confiável de lidar com essas partículas é considerá-las estatisticamente, e quanto maior a quantidade considerada mais aproximadas se tornam nossas previsões. Ora, é justamente o que acontece quando lidamos com os “in-divíduos”. Difícil saber em quem votará Zé da Silva na próxima eleição, mas se tabulamos um milhão de Zés da Silva é quase certo que acertemos. In-divíduos e a-tomos são becos sem saída. Quanto mais os enxergamos de maneira precisa, personalizada, mais imprevisíveis eles se tornam.

E ainda por cima existe o fato de que o indivíduo humano (como o átomo considerado em 1890) pode ser subdividido, sim. Fernando Pessoa é o exemplo mais claro de que somos várias pessoas numa só, várias vontades, impulsos contraditórios, desejos conflitantes. A psicologia moderna está careca de tratar de casos de dupla ou múltipla personalidade. O que temos de único é nosso corpo, mas em matéria de mentes somos mais múltiplos do que o átomo que Ernest Rutherford provou um dia que era possível dividir.

2107) O tropeção de Otto Maria Carpeaux (9.12.2009)




Otto Maria Carpeaux foi um dos intelectuais que aportaram aqui na chamada “Diáspora Européia”, fugindo dos tumultos políticos pré, durante e pós-II Guerra Mundial. Essa época nos trouxe Carpeaux, Ziembinski, Stefan Zweig, Paulo Rónai, Lasar Segall, Anatol Rosenfeld... 

O Brasil lhes deu (talvez não a todos) tranquilidade e cidadania; eles retribuíram de tal modo que no frigir dos ovos foi o Brasil que saiu ganhando. 

Carpeaux é um dos nossos críticos literários mais perspicazes e cultos, e talvez seja até uma injustiça referir-me a ele, aqui nesta coluna, indicando um defeito de julgamento. Fique a ressalva de que só questiono esse julgamento porque devo muito ao que o autor me ensinou.

Em sua Introdução ao Estudo da Science-Fiction, André Carneiro cita alguns artigos em que OMC menospreza repetidamente o gênero, em termos que sempre me chamaram a atenção. Diz Carpeaux, por exemplo, num artigo de 1959: 

“A ‘science’ não importa. O que importa é a ‘fiction’, isto é, a aventura. Toda uma imensa literatura de contos de fadas, de viagens e aventuras, de Marryat e Stevenson caiu em esquecimento para renascer na ‘science-fiction’: façanhas heróicas em face de perigos monstruosos, fidelidade comovente dos companheiros, traição infame, revoltas e motins de tripulações, a autoridade do chefe nato e, embora muito secundariamente, uma ou outra ‘affaire’ amorosa – eis os enredos sempre repetidos da moderna Odisséia dos espaços interplanetários. (...) 

"O ‘puerilismo’ do nosso tempo, que já foi diagnosticado por Huizinga, encontra na ‘science fiction’ uma manifestação quase tão característica como as histórias em quadrinhos. Essa literatura de cordel fornece ao leitor comum todas as trivialidades, horrores, sentimentalismos etc. que a literatura moderna exclui cuidadosamente dos seus enredos (ou de sua falta de enredo)”.

Carpeaux não chama sem motivo a ficção científica de “literatura de cordel”. As duas (bem como as histórias em quadrinhos) são o desaguadouro da nossa necessidade de histórias que envolvam o fantástico, o heróico, o exagerado, o improvável. 

O romance burguês, realista, “retrato da sociedade”, se forjou a partir do Iluminismo do século 18 e foi, durante os séculos 19 e 20, uma revolução positiva na literatura. Tão positiva que para grande parte dos críticos e autores ele se transformou numa palavra de ordem, numa fórmula obrigatória, numa solução definitiva para o problema literário. 

Acontece que existe nos autores e nos leitores (à revelia dos críticos) a necessidade de viagens extraordinárias, histórias fantásticas, conflitos titânicos, façanhas heróicas, não importa se tudo isso ocorre num passado distante ou no futuro próximo, se ocorre em ilhas desconhecidas ou em outros planetas. 

O cordel, a FC e os quadrinhos exprimem essa necessidade. São o retorno do reprimido, são uma literatura à parte que surgiu para compensar o excesso de racionalidade da literatura.





2106) Ronaldo é o nosso rei! (8.12.2009)



Quiseram os deuses do futebol que o Flamengo fosse campeão brasileiro com um gol de Ronaldo. Não o Ronaldo Fenômeno que os rubro-negros cortejaram e bajularam durante tanto tempo, e que acabou esnobando a Gávea para ir jogar no Corinthians – mas o Ronaldo Angelim que há quatro anos carrega um piano enorme ali na zaga. É titular absoluto e dá uma média de uma entrevista por ano. De domingo para cá, conversou com mais repórteres do que em toda sua carreira. É um zagueiro magro, alto, com cara de nordestino (é paulista de nascimento, criado no Ceará): poderia passar como filho de Dominguinhos. Meses atrás, ao sair de uma sessão de um filme em homenagem ao Flamengo, confessou com simplicidade que era a primeira vez que tinha entrado num cinema, que tinha gostado muito e pretendia ir de novo. É o contrário do seu xará famoso, rico, paparicado, rodeado de “paparazzi” e de aspones.

Se o gol do título foi de Angelim, o comandante do título foi Andrade, o popular “Tromba”, ex-boleiro, o oposto dos nossos técnicos metidos a besta que vão de terno Armani para a boca do túnel. O oposto também dos técnicos arrogantes, sargentões, falastrões, cujo discurso é cheio de “eu fiz isso, eu fiz aquilo”, técnicos cuja relativa competência acaba obscurecida pela egolatria em que vivem mergulhados, contando para isto com o servilismo da própria imprensa de futebol. Os técnicos brasileiros são a tradução viva do discurso “eu ganhei, tu empataste, eles perderam”.

Torcedores de outros clubes estão se queixando de que o Flamengo não mereceu ser campeão. Quem mais diz isto são os do Palmeiras, que foi líder por 19 rodadas. O Flamengo teve um primeiro turno razoável, várias derrotas inexplicáveis, mas depois da entrada de Andrade como técnico, e da chegada de outros jogadores (Petkovic, Álvaro, Maldonado) o time se reequilibrou. Conseguiu inclusive compensar a saída de jogadores importantes das campanhas anteriores (Ibson, Fábio Luciano) e a queda de produção de outros (Léo Moura, Juan). Mereceu ser campeão. Por que não? Não me lembro de nenhuma partida que o Fla tenha vencido em circunstâncias suspeitas ou com gols irregulares.

Foi, como disse uma parte pequena da imprensa, um campeonato tecnicamente fraco, o que pode ser comprovado pela assustadora queda de produção de times como o Atlético Mineiro, o Palmeiras, o São Paulo, times que em algum momento tiveram tudo para manter-se no topo e não conseguiram. O Flamengo teve atuações consistentes ao longo destes últimos meses. Derrotou São Paulo e Palmeiras em São Paulo, derrotou o Atlético em Belo Horizonte, teve um dos artilheiros do campeonato. Não jogou bem nos últimos quatro jogos, mas jogou o suficiente para fazer os placares de que precisava. Os craques-símbolo da campanha são (merecidamente) Adriano e Petkovic, mas para mim este será sempre o título conquistado com um gol do verdadeiro Ronaldo do Flamengo.

2105) Patativa do Assaré (6.12.2009)



Este ano comemora-se o centenário de Patativa do Assaré, o grande poeta popular cearense. Patativa, que nunca encontrei pessoalmente, foi revelado para minha geração através dos versos musicados por Raimundo Fagner, e, depois, pela coletânea Cante lá que eu canto cá, publicada em 1978 pela Editora Vozes, um documento precioso. Patativa era um poeta “3 em 1”: cordelista, poeta matuto e poeta erudito.

O Patativa do cordel foi o que eu vim a conhecer por último, através da antologia organizada por Sylvie Debs para a Editora Hedra (São Paulo). Tem cordel de fantasia (História de Aladim e a lâmpada maravilhosa), cordel político (O padre Henrique e o dragão da maldade), cordel social (Emigração e suas consequências, ABC do Nordeste flagelado), cordel satírico (Brosogó, Militão e o Diabo). Estrofes impecáveis, português correto, imaginação ágil: se me mostrassem sem dizer de quem era, eu pensaria serem de Athayde (“Brosogó”) ou de Delarme (“Aladim”). Jamais imaginaria serem do autor dos poemas matutos que o Brasil conhece.

O segundo Patativa é justamente o poeta matuto, o que escreve “derna di minino”, “seu dotô”, “Brasí”, “puliça” e assim por diante. O poema matuto é uma espécie de “poesia étnica”, poesia que esquece a norma culta da língua e procura registrar os modos de falar de uma comunidade linguística – no caso, os homens rurais nordestinos. (No plural, porque o caririzeiro não fala igual ao sertanejo, que não fala igual ao matuto do brejo, que não fala igual ao da Zona da Mata.) Muitos criticam essa poesia por distorcer e estropiar o português. Discordo. Acho que isso só acontece quando um poeta urbano, que não conhece o interior, tenta se fingir de matuto e escreve errado de propósito, por imaginar que todo matuto é analfabeto. Quando Patativa ou Zé Laurentino escrevem assim, contudo, é com conhecimento de causa. Quando Guimarães Rosa, Elomar ou Jessier Quirino usam o linguajar “étnico” como matriz verbal, é porque conhecem e respeitam esse linguajar.

O terceiro Patativa é o poeta erudito, autor de sonetos impecáveis do ponto de vista da métrica, da rima, da gramática e da norma culta, como “O Pau d’Arco”, “Minha serra”, “O peixe” e inúmeros outros incluídos em Cante lá que eu canto cá. Patativa teve pouca educação formal, mas é o tipo do sujeito que se educou por conta própria. Vê-se que conhecia bem a gramática, decerto porque lia gramáticas para se informar. (Quantos brasileiros formados, de anel no dedo, no campo das Letras, já leram uma gramática? Cartas para a redação.) Patativa escreve oitavas camonianas (ABABABCC) num português que não envergonharia Camões, como em “O Inferno, o Purgatório e o Paraíso” – quantos poetas chamados eruditos são capazes de fazer o mesmo? Ver Patativa apenas como um poeta matuto e ingênuo da roça, ou como um “cantador de esquerda” é empobrecer a obra de um poeta mais complexo do que a maioria dos seus leitores.