quarta-feira, 26 de março de 2008

0300) O fanático (6.3.2004)




("Caprichos" de Goya: "Asta su abuelo")


O fanático que amarra dinamite ao corpo e se auto-explode dentro de um ônibus ou de um shopping-center é um caso extremo, mas não o mais típico. O fanático típico é aquele que fica com raiva quando discute um assunto. Não importa se se trata de futebol, música popular ou religião, o fanático é uma mente sequestrada por uma idéia alheia. Quando converso com um sujeito que possui uma Ideologia, nunca deixo de ter a incômoda sensação de que é a Ideologia quem na verdade o possui. Se a gente ousa contradizer um só dos slogans que ele emite com a tranquilidade olímpica dos iluminados, vemos que ele se transforma, porque o fanático, por mais que se ostente condecorado de certezas, não habita o Monte Olimpo da verdade absoluta, e sim a Montanha da Perdição do “Senhor dos Anéis”, onde um Sauron totalitário impõe a-ferro-e-fogo sua versão pessoal dos fatos.

Não sei de melhor antídoto para essas extremismos do que a tranquila sensatez de Jorge Luís Borges, quando dizia: “As polêmicas são inúteis. É inútil estar de antemão de um lado ou do outro, sobretudo se ouvirmos a conversa como uma polêmica, se a virmos como um jogo em que alguém ganha e alguém perde. O diálogo tem que ser uma pesquisa, e pouco importa que a verdade saia da boca de um ou da boca de outro.” O velho Borges não era tão bonzinho e tão zen quanto esta frase sugere, mas pouco importa. Ele sempre soube que o que nós dizemos é superior ao que somos.

Suponhamos que o tema da discussão é a frase acima, de Borges: eu concordo com ela, e meu amigo discorda em gênero, número e grau. Eu jogo essa idéia (“bater boca não adianta nada”), meu amigo me traz uma dúzia de argumentos mostrando que bater boca adianta, sim senhor, que é através da dialética das idéias que se chega a uma síntese mais elevada, e pá, e bola, bê-bê-bêi, caixa de fósforos... Uma ou duas horas depois, teremos examinado o tema pelo direito e pelo avesso. Eu saí lucrando alguma coisa, ele também, e cada um volta pra casa pensando que se saiu melhor do que o outro.

Mas há pessoas cujas idéias estão por trás de uma barreira intransponível, uma muralha de titânio com dez mil metros de altura e quinhentos de espessura, protegida por canhões-laser e bombas atômicas. Ai de quem disser: “Que é isso, rapaz, isso que você está falando não tem nada a ver...” Tomara que sua família esteja por perto, para decidir o que fazer com as cinzas.

Por que são assim? Há duas possibilidades. Uma é de que o sujeito tenha passado a vida inteira lendo, estudando, pensando, discutindo, até chegar a uma conclusão; e ele vê com horror a possibilidade de abrir mão dessa conclusão, aceitar uma opinião alheia, e ter que começar tudo de novo. Aí tudo bem; acho que também é o meu caso. Em muita coisa. Mas... a outra possibilidade é de que, sem o saber, ele seja um fanático. Uma idéia foi infiltrada na sua mente a golpes de doutrina. E aí, meu amigo, saia de perto, antes que ele puxe o detonador da dinamite.

0299) Meu candidato ao Oscar (5.3.2004)


(Carlos Saldanha)

Todos torciam por “Cidade de Deus” na cerimônia do Oscar. Todos vírgula, porque há por aí espíritos-de-porco que se ofendem com o sucesso alheio. Na feira-das-vaidades do cinema nacional, muita gente mandou bater bombo para que o filme de Fernando Meirelles não ganhasse nada, assim como já o tinha feito contra os filmes dos Barretos e de Walter Salles. É engraçado. A gente torce por Peter Jackson ou por Clint Eastwood porque eles não são humanos como nós: são personagens eletrônicos, seres fictícios que habitam um mundo supra-real. Edgar Morin inventou um nome para isto: os olimpianos. São semi-deuses do Monte Olimpo das telecomunicações. Se ganham um Oscar, nada mais justo, pois o Oscar existe no mesmo plano de luminosidade e intocabilidade em que eles se deslocam. O que eu, bom brasileirão, não posso admitir, é que o Oscar vá para um sujeito que janta no Manuel & Joaquim e que toma chope no Bracarense. Se isso acontecer, não deixarei de sentir o aguilhão venenoso do ciúme e da inveja: “Esse cara não tem o direito de ser melhor do que eu!”

O “eu” acima é figura de retórica, porque não sinto inveja de ninguém, e aliás meu objetivo na vida não é o Oscar, e sim o Nobel. Portanto, torci por “Cidade de Deus”, principalmente pelo roteirista Bráulio Mantovani, porque caso ele ganhasse isto seria o mais perto que eu poderia chegar de um prêmio da Academia. E ademais essa coisa de cinema e TV é tão caótica que eu passaria os próximos dez anos sendo confundido com ele e recebendo polpudas encomendas de roteiro. No fim das contas, “O Senhor dos Anéis” arrastou tudo a que concorria. Como disse Spielberg ao ler o derradeiro envelope, foi “a clean sweep”, ou seja, “varreu que deixou limpo”. E merecidamente: dei nota 8 à trilogia (sou exigente).

Meu candidato, contudo, não era nenhum desses. Era o filme de Carlos Saldanha que concorria ao Oscar de Melhor Curta de Animação: um desenho animado figurando aquele roedorzinho neurótico que aparece no começo e no fim de “A Era do Gelo”, um dos melhores desenhos animados dos últimos anos. Saldanha, brasileiro transplantado para os EUA, tem como torcida todos os malucos que, como eu, acham que a Animação está para o cinema assim como a Poesia está para a literatura. A Animação é o reino absoluto da imaginação criadora, um reino onde tudo brota do zero, onde tudo pode ganhar forma, tudo pode existir e atuar, tudo pode acontecer. É também, hoje, uma encruzilhada imprevista e fascinante entre Cinema, Artes Gráficas e Informática, e basta pensar na convergência destas avenidas gigantescas para se ter uma idéia do turbilhão de possibilidades criativas que está brotando no mundo.

Saldanha não ganhou o Oscar; tudo bem. Tem tempo. Indiferente às condecorações do Capitalismo Industrial, o turbilhão continua a girar, produzindo um universo virtual tão poderoso que corre o risco de fazer com que, no futuro, o cinema com atores passe a ser considerado um sub-gênero do Teatro.

0298) Filme é filme, vídeo é vídeo? (4.3.2004)




Alguns anos atrás participei do “Festival de Vídeo 5 Minutos”, de Salvador, onde qualquer vídeo pode concorrer desde que não ultrapasse essa duração. Durante os numerosos debates, comecei a perceber que eu estava cometendo um quantidade enorme de gafes, ou melhor, estava cometendo a mesma gafe o tempo inteiro. Eu dizia: “Eu acho que a principal qualidade desse filme de fulano é a parte técnica; ele é muito bem feito, e...” Aí alguém sempre me interrompia: “Filme não. Vídeo.” Eu falava: “Tudo bem, vídeo. Esse vídeo é muito bem feito, porque tem uma ótima fotografia, e eu acho que quando um filme tem uma fotografia assim, ele ganha...” Me interrompiam de novo: “Filme não. Vídeo”. Eu às vezes levo décadas para perceber uma coisa, e acho que foi só naquela época que eu percebi essa. Claro que eu sabia que Filme e Vídeo eram coisas diferentes. O que eu não sabia é que eram religiões diferentes, como o Judaísmo e o Cristianismo.

Isto me trouxe à mente os meus anos de cineclubista na década de 1970. Os cineastas super-8 consideravam-se uma raça diferente dos cineastas 16mm, os quais por sua vez eram uma tribo distinta dos cineastas 35mm. Os superoitistas eram os porraloucas, o pessoal 35 eram os profissionais, e a turma do 16 ficava numa espécie de meio termo. Cada um desses grupos (claro, estou generalizando) tinha um orgulho desmedido da bitola técnica com que filmava, e uma adoração quase fetichista pelos seus equipamentos. Um fetichismo que hoje, curiosamente, se repete na área dos discófilos, entre o pessoal que permanece fiel aos LPs de vinil e os que aderiram totalmente ao CD (ou, no caso dos mais jovens, os que já despertaram para a música na era do CD).

Dize-me a engenhoca eletrônica a que dedicas teu amor irrestrito, e eu te direi quem és. Percebi, naquele festival de Salvador, que aquela rapaziada do vídeo tinha uma necessidade meio freudiana de se livrar do espectro paterno associado ao filme de celulóide. Havia nisto uma atitude simbólica, de demarcar um terreno próprio, uma fisionomia própria. E uma estética própria, também, porque me parece óbvio que os recursos (e consequentemente as possibilidades linguísticas) do vídeo são diferentes dos recursos do cinema, seja em que bitola fôr. E vi também em alguns um defensivismo de ordem prática: se eu só sei mexer com câmera de celulóide não tenho porque encher-a-bola das câmeras de vídeo, e vice-versa.

Eu diria, então, que por este ângulo existem dois tipos de gente que faz cinema. Existe a galera “técnica”, para quem o equipamento utilizado vem em primeiríssimo lugar, e o que define o cinema é o tipo de imagem que se consegue. E existe a galera “humanista”, para quem cinema são imagens luminosas e sonoras, em movimento, contando ou mostrando alguma coisa, e essa alguma coisa é o objetivo final, pouco importa o equipamento usado: super-8, celulóide em 35mm., VHS, vídeo digital, celular-com-internet.

0297) A história invisível (3.3.2004)





(Sótão do Willard Psychiatric Center. Foto de Lisa Rinzler)


Nestas últimas décadas surgiu o que se tem chamado de “história da vida privada”, “micro-história” e que eu gosto de chamar de “história invisível”. É a história das pessoas comuns, que não deixaram marcas numa História sempre voltada para o estudo dos reis, generais, presidentes, ministros, grandes industriais e grandes financistas. 

Parece ter brotado na mente nos historiadores a noção de que as pessoas comuns também existem, também são reais – assim como há alguns séculos começou a surgir na mente dos líderes religiosos a noção de que as mulheres, os índios e os negros também tinham uma alma imortal conferida por Deus, e não apenas os homens brancos e civilizados.

Histórias dessas vidas anônimas que não deixaram traços no mundo podem ser vistas numa exposição que o “Village Voice” cobriu recentemente, intitulada “Casos Perdidos, Vidas Resgatadas: Malas do Sótão de um Hospital do Estado”. 

Aqui:
https://www.villagevoice.com/2004/01/20/what-they-left-behind/

Tudo começou quando em 1995 o curador do Museu Estadual de New York, Craig Williams, soube que o Centro Psiquiátrico Willard estava para ser desativado. O hospital psiquiátrico tinha mais de um século, e ele pensou que poderia encontrar móveis antigos, etc. 

Em vez disso, encontrou no sótão do Hospital cerca de 400 malas com os pertences pessoais de pessoas que ali tinham sido internadas: roupas, fotos, documentos.

Williams passou os anos seguintes mergulhado nesse material e extraiu dele a exposição, onde a história de doze dessas pessoas é recontada. Todas já falecidas, e em nenhum caso foram localizados herdeiros ou parentes. 

O “Village Voice” ilustra quatro desses casos, histórias emocionantes de vidas destruídas pela loucura ou jogadas-fora pela incompetência médica. 

Há a história de Madeline C., uma francesa educada na Sorbonne, que ensinou literatura em várias partes dos EUA. Desempregada durante a Depressão, foi levada ao Willard porque dizia ser capaz de ler mentes: só saiu de lá aos 79 anos, devastada pelos medicamentos que lhe deram.

Há a história de Lawrence M., que foi considerado doido por ter sido ouvido cantando hinos, e dizendo ter falado com deus e os anjos. Pode ter sido uma carraspana; mas foi internado, e na velhice acabou tornando-se o coveiro do hospício, tendo sepultado mais de 600 colegas. 

Há a história de Dmytre Z., ucraniano, que após a morte da mulher entrou em delírio paranóico, acreditando estar noivo da filha do presidente Truman. O Serviço Secreto o enviou para o Willard. 

E Frank C., que foi mal atendido num restaurante, começou a quebrar coisas, e foi internado como doido. Morreu no hospício aos 74 anos. Sua mala continha fotos suas quando soldado, uma pequena bandeira americana, um manual militar e um uniforme do Exército americano, impecavelmente passado e dobrado. 

Vidas como a minha e a sua: lenha que alimenta a fogueira da História, e vira cinza, fumaça e luz.




0296) Como uma onda no mar (2.3.2004)




O Universo é formado de processos, de fluxos de eventos. Estes processos são tão reais quanto as coisas neles envolvidas, ou até mais. Volto ao exemplo da onda do mar (“No meio do redemunho”, 29.5.2003): quando a onda percorre horizontalmente a água, a água não está correndo; ela limita-se a se erguer verticalmente e depois se abaixar. Quem passa é a onda. O movimento é tão real quanto a coisa movimentada.

E cada coisa que vemos não passa de um instantâneo, de uma polaróide daquela coisa num momento qualquer de seu movimento ao longo do tempo e do espaço. Basta olharmos uma sequência de fotos nossas, desde a infância, a adolescência, a juventude, a idade madura... Nosso corpo vai se transformando, ao longo do tempo, e aquelas fotos registram fases sucessivas.

Este banquinho de madeira ao lado da minha escrivaninha é uma “foto” momentânea do que está acontecendo com estes pedaços de madeira, que já foram árvore, agora são um banquinho e um dia serão cinza.

Não me lembro se foi Tancredo Neves ou Ulisses Guimarães quem disse que pesquisa eleitoral “é como tirar a foto de uma nuvem”. Quando a foto tá pronta e você consegue olhar para ela, a nuvem já não é mais daquele jeito.

A consciência humana vive no passado. Quando entendemos um fato que ocorreu conosco é porque ele já passou, e já estamos mergulhados em outro fato que ainda não começamos a entender. Na cultura militar existe a máxima de que todos os generais sabem como foi ganha a última guerra, mas ninguém sabe ainda como vai ser ganha a próxima. Só fechamos a porta depois de roubados.

A polícia americana, hoje, não faz outra coisa senão dificultar a entrada de árabes e facas nos aviões de carreira. Até parece que em todos os aeroportos de lá há a foto de uma nuvem com a legenda “Procura-se”.

A gente não pode ficar parando demais para analisar as coisas, porque novas coisas estão acontecendo a cada instante, e se acumulando, e só em casos muito raros vale a pena a gente chegar a entender por completo o que aconteceu em 6 de abril de 1935. Os fatos estão vindo, vindo, vindo, e temos que seguir em frente, passando através deles.

A melhor metáfora para isto é bicicleta. Ao andar de bicicleta, a gente projeta o corpo para a frente, pedalando, porque a única maneira de não cair para os lados é movendo-se para a frente. Sabemos por onde acabamos de passar, e conseguimos prever o trajeto algumas dezenas de metros à frente, mas nosso momento presente é como o de uma flecha . Lidamos com os problemas do terreno à medida que eles se apresentam, e depois que passam não podemos ficar analisando, porque vem mais, vem sempre mais.

 Andar de bicicleta, dirigir carro, nadar, tudo isso é resolver problemas à medida que se apresentam. Jean-Luc Godard dizia: “Fazer cinema é resolver problemas. Um motorista de táxi vai se metendo em problemas e os vai resolvendo. Picasso faz a mesma coisa enquanto pinta.”






0295) São muitas emoções! (29.2.2004)




Como todo intelectual, sou muito desconfiado com essa história de emoção. Não porque não as tenha ou porque não goste delas, defeito que erroneamente se atribui aos intelectuais. Reconheço que muitos deles fogem das próprias emoções com a mesma velocidade com que o Dr. Jekyll fugia de Mr. Hyde, mas a mim pelo menos o que me irrita é o fato de a mídia e a publicidade usarem as emoções com a mesma insistência com que usam a bunda feminina. É um chamariz infalível, uma isca tentadora abanada diante dos olhos dos incautos.

“Emoção” é a senha pavloviana para amarrar os telespectadores à poltrona, fazê-los salivar, ou pelo menos as tevês pensam assim. “E não perca hoje, todas as emoções da Fórmula-1!” “Veja estas e muitas outras emoções no Fantástico!” “Tele-Cine: todas as emoções para você!” 

E a pergunta obrigatória para quem ganhou um prêmio ou um campeonato, para quem casou, para quem recebeu um coração novo, para quem escapou de sequestro, para quem tirou a raspadinha, para quem teve um filho: “E aí, como foi essa emoção?...” 

Eu acho que repórter de TV, ao assinar a carteira, recebe um memorando dizendo: “Prezado repórter: Pergunte sempre pela emoção. Se perguntar o que a pessoa achou, ela pode vir com uma idéia, uma opinião, ou outra surpresa igualmente incômoda. Pergunte pela emoção, insista na emoção, e se ela começar a chorar estale o dedo para o câmara, para que ele dê um zoom na lágrima.”

Nada contra as emoções. A emoção que eu mais gosto, por exemplo, é alegria. Quando eu estou alegre escrevo uma coluna destas em dez minutos. Mas o massacre mental promovido pela publicidade e pela mídia nos transformou em robôs cheios de botõezinhos mentais que a TV (e não só ela, claro) utiliza como lhe convém. 

Já falei aqui (“O indutor emocional”, 28.5.2003) no papel idiota que a música se vê obrigada a exercer nas novelas de TV, “ensinando” ao espectador que agora é uma cena triste, agora é uma cena para achar graça, agora é uma cena onde vai haver um susto...

Como o cachorro do Dr. Pavlov, que bastava tocar a sinetinha para ele lembrar da comida e começar a produzir saliva sem ver comida alguma, a TV de hoje toca sinetinhas musicais para nos emocionar quando não existe nenhum motivo dramatúrgico para essa emoção. Se não tiver a musiquinha engraçada, ninguém ri, porque engraçada a cena não é. Se não tiver a música triste, ninguém chora, porque a cena não é triste, é constrangedoramente mal escrita e mal interpretada. (Nem todas, claro.) 

E o argumento que já ouvi tantas vezes é: “As pessoas precisam de certeza. Esse negócio de ficar em dúvida, de ficar hesitando entre duas interpretações, é pra cinema, onde o cara está preso na poltrona até o fim da sessão. Na TV, se o sujeito passar meio minuto sem entender o que está se passando, ele pula para outro canal.” 

Quando ouço isso, a vontade é de pular no Canal da Mancha, com uma TV amarrada no pescoço.






0294) O sujeito de Porlock (28.2.2004)


(Manuscrito de "Kubla Khan", por Samuel Taylor Coleridge)


O Escritor caminha em seu vasto escritório atapetado, entre as paredes cobertas por estantes de mogno de onde quarenta séculos de literatura o contemplam. 

Nesta manhã, há alguns minutos, ocorreu-lhe a Grande Idéia, aquela por que ansiava há meses e para a qual se preparou por toda a vida. Brotou-lhe na mente, íntegra como uma Mandala, a Obra que irá justificá-lo perante a posteridade. 

Ele julga ouvir um rumor de glórias e de hexâmetros, percebe que de dentro de si emerge algo vasto como uma catedral gótica e rendilhado de informações como um HD de computador. Cada segmento, cada página, cada palavra pode ser vista como nitidez, é só passá-las todas para o papel. 

Ele dá um passo na direção da escrivaninha onde, percebe, terá que debruçar-se durante os próximos anos de sua vida, quando a porta se abre... e a cozinheira diz: “Braulio, o café tá passado, tu vai querer ovos?” A Obra espouca no ar, e se deposita em borrifos e salpicos de bolha-de-sabão sobre o chão de tacos.

Parece uma catástrofe, mas acontece todo dia, para não dizer que acontece o dia todo. Daí a minha preferência pela madrugada, quando o telefone não toca, a porta não se abre, a campainha não brada, o escritório não é invadido por pessoas bem-intencionadas brandindo irrelevâncias. 

Às vezes, um trabalho exige que a gente leve em conta uma dúzia de coisas ao mesmo tempo, para ver se se encaixam, se uma delas não colide com as outras; deve ser mais ou menos o que pensa um músico quando precisa ter a idéia exata do que doze instrumentos diferentes estarão fazendo durante aqueles minutos cruciais de um movimento orquestral. 

Durante a madrugada, é possível desenvolver pensamentos longos e consecutivos, articular uma idéia complexa e mantê-la viva na mente durante uma ou duas horas enquanto a examinamos de todos os ângulos.

É famosa a história do poeta Coleridge, que no verão de 1798, sentindo-se indisposto, compôs, durante um sono profundo, um longo poema inspirado pelo livro que lia pouco antes de adormecer: 

“Em Xanadu, Kublai Khan  / fêz erigir um palácio suntuoso, / onde Alph, o rio sagrado, / percorria cavernas inexploradas pelo homem, / até desaguar num mar sem sol...” 

Ao acordar, tinha composto um poema de cerca de 200 ou 300 versos descrevendo este palácio. Diz ele que as imagens lhe brotavam diante dos olhos, e ele tinha apenas que formar as frases correspondentes. Ao despertar, o poema permanecia intacto, completo, em sua memória. Ele sentou-se à mesa e começou a transcrever os versos. 

A certa altura, contudo, bateu à porta uma pessoa do vilarejo de Porlock, que ficava próximo, com um assunto urgente para tratar. Quando se livrou do visitante, o poeta constatou que o poema tinha voltado para o lugar de onde viera. Sobraram apenas as 54 linhas que hoje figuram em todas as antologias poéticas da língua inglesa, as que ele conseguiu passar para o papel antes que o sujeito de Porlock o interrompesse.





0293) Revólveres (27.2.2004)




Quando eu era pequeno, meus pais chegaram a se preocupar comigo. Eu não gostava das brincadeiras normais: pião, bola de gude, empinar papagaio, puxar carrinho, caminhão, etc. Fiz tudo isso, mas fiz porque todo mundo fazia. Meu negócio era arma. Cheguei a ter uma coleção de revólveres (de plástico, de madeira, de metal) que, reunida hoje, valeria uma boa grana. Minha mãe às vezes se irritava com o interminável tiroteio dentro de casa: “pêi, pêi... bum, bum, bum! Bang, bang, você está morto!” Era isso o dia inteiro.

Meninos adoram revólveres. Lá me vêm os freudianos de hoje me explicar que os meninos gostam de revólveres porque o cano é um pênis e o tiro uma ejaculação. Eu diria que há dois tipos de meninos. Os meninos para quem cano é pênis, etc., viram teóricos freudianos; e os meninos para quem um revólver é uma arma-para-matar-bandidos viram o resto da população. Para mim, um revólver era uma arma para matar índios americanos. Entre os 5 e os 12 anos eu exterminei sozinho todas as tribos do Canadá ao México.

Revendo hoje os faroestes da década de 50, vejo o quanto eram ingênuos e não-violentos. Nos tiroteios, a existência de balas era inferida através do pinote-para-trás que o bandido dava a certa altura. Era uma mortandade sem sangue, sem veias rompidas, sem tripas de fora, sem queixos despedaçados. As silhuetas de Sam Peckinpah e Clint Eastwood ainda não tinham despontado em contra-luz no alto da colina. O revólver era, para aquela coreografia de quedas (sempre havia um bandido no telhado, para ser atingindo e cair com estrépito sobre uma latada), uma mistura de instrumento musical e de batuta.

Alguns revólveres não eram automáticos: era preciso usar o polegar para puxar para trás o martelo, ou “cão”, deixando-o engatilhado, e depois apertar o gatilho com o indicador, para disparar. A necessidade de repetir este gesto num tiroteio cerrado dava origem a um dos movimentos mais interesantes da coreografia do western: o mocinho que empunhava o revólver com a mão direita e, com a borda da palma da mão esquerda, puxava o cão da arma para trás, com grande rapidez, entre um tiro e outro. Depois inventaram o revólver automático onde ao se apertar o gatilho punha-se em movimento um mecanismo que engatilhava o cão e, a seguir, disparava o tiro. Surgiu então a coreografia correspondente, a do mocinho que empunhava dois revólveres ao mesmo tempo, e estendia sucessivamente um braço, depois o outro, mirando, atirando, mirando, atirando.

“Arma de fogo viaja longe a mão da gente”, dizia Riobaldo Tatarana. Essa sensação de poder é que nos seduzia, de ter um poder inocente como se apontasse o dedo e dissesse: “Você cai! Você cai!” Imagino que é o que seduz os meninos que hoje passam horas na matança virtual dos videogames. Seduz porque sabem que não é físico. Seduz porque sabem que é faz-de-conta. Seduz porque sabem que há coisas que não devem ser feitas mas que queremos fazer para saber como é.

0292) Debruçado sobre Abbey Road (26.2.2004)




(Turistas em Abbey Road, 30.5.2005. A foto dos Beatles foi tirada de lá para cá, do ponto onde há um automóvel)

Tem gente que gosta de assistir ao “Big Brother” da Globo. Eu assisti do começo ao fim o primeiro, o que foi ganho por Kléber Bambam. E olhe, até que me diverti bastante. O primeiro ainda tinha (como direi?) um certo frescor, uma certa ingenuidade. Ninguém sabia como era, e a coisa foi meio na base do improviso. Hoje, todo mundo “tá ixperto”: já ensaiou, já praticou, já bolou estratégias. Já deve haver até curso-preparatório-para-candidatos-ao-Big-Brother. 

Dá pena aquele bando de marmanjos e de popozudas, todo mundo jovem, musculoso, saudável, cheio de energia, sendo infantilizado em público, fazendo umas “provas” idiotas – catar bolas de plástico numa piscina, ficar 3 dias segurando um abacaxi... E tem uns tais “jantares a fantasia” que... Pelo amor de Deus. 

É tudo uma pose desgraçada, umas caras-e-bocas insuportáveis. No fim de tudo, o mais espertalhão ganha 500 paus, os outros viram arroz-de-festa, e as mulheres fazem fotos de arte-ginecológica para revistas masculinas.

Eu não quero bancar o intelectual pentelho, esnobe. Sou muito popularesco, e ao contrário de alguns amigos meus não acho que a TV deva se dedicar a exegeses sobre a obra de Proust ou a encenações do “Rei Lear” na Sessão da Tarde. 

TV é TV: é quermesse, é rádio-com-auditório. Tem quem queira ver “Big Brother” 24 horas por dia. Cada um vê o que lhe interessa. 

Eu, por exemplo, tenho um passatempo totalmente idiota: a webcam de Abbey Road. Uma câmara (como aquelas de segurança em shopping ou condomínio) cuja imagem é transmitida por um saite de Internet. Se você fôr para https://www.abbeyroad.com/crossing  vai ver a imagem, nesse momento exato, da faixa de pedestres atravessada pelos Beatles na capa do disco “Abbey Road”, em frente ao estúdio. São 24 horas por dia! Maravilha.

Agora mesmo, no instante em que escrevo, são 2:50 da madrugada (horário de verão) aqui no Rio, portanto devem ser 4:50 em Londres. A câmara pega a rua em diagonal do canto inferior esquerdo ao superior direito, e a famosa faixa passa à altura do meio da imagem. Está uma noite chuvosa, asfalto molhado, trânsito escasso. 

Há um carro parado há horas do lado direito; ruas e calçadas estão vazias. Agorinha mesmo passou uma espécie de van azul, compridona, seguida por dois automóveis. Alguns minutos antes passaram a pé dois caras conversando, um de casaco claro, outro de escuro. Agora, passou uma van branca. Parece chato, né? De dia é mais movimentado, juro.

Distrair-se é poder fazer associações de idéias com o que nos é mostrado. Não me acho nem mais nem menos idiota, debruçando-me sobre uma rua deserta, do que quem assiste o “Big Brother” ou qualquer outra coisa. Só vemos nas coisas, amiguinhos, o que já temos dentro de nós. Essa rua deserta pode ser para alguém a madeleine de Proust, o aleph de Borges, a pedra-no-caminho de Drummond, o ponto-ômega de Teilhard de Chardin... Eita, passou um ônibus de dois andares!






0291) Não se mate, oh não se mate (25.2.2004)


(cartum em The New Yorker)

Folheando um velho caderno do tempo da faculdade, achei a certa altura uma lista de nomes, compilada evidentemente ao longo de anos, pois nela apareciam canetas diferentes, caligrafias mais calmas ou mais apressadas, sempre com minha letra. A princípio não entendi que lista era aquela, cheia de gente famosa: Maiakóvski, Gérard de Nerval, Mário de Sá-Carneiro, Raul Pompéia, Virginia Woolf, Max Linder, Vachel Lindsay, Assis Valente... Não vou copiar a lista toda, porque é longa, mas em qualquer enumeração desse tipo o padrão acaba surgindo: é uma lista de suicidas. Havia alguns nomes colocados por engano – Raymond Radiguet e Jack London, por exemplo, certamente não se suicidaram. Prova de que naquela época eu checava minhas fontes muito menos do que hoje.

O sujeito que se suicida merece toda minha admiração, se não pelo discernimento, mas pela coragem que demonstra. Nem sempre sabemos o que o leva a matar-se. Alguns deixam bilhetes desesperados. O humorista Péricles, criador do “Amigo da Onça”, matou-se com gás, e deixou um bilhete que é um primor de pragmatismo e ironia: “Não risquem fósforos, é gás”. O poeta Torquato Neto vedou as frestas do banheiro de casa, ligou o gás e ficou escrevendo até perder os sentidos, na noite em que completou 28 anos. Outros nada escrevem, mas deixam em seu último gesto um terrível simbolismo, como o goleiro Castilho, ex-Fluminense, bi-campeão nas Copas de 58 e 62, que se suicidou pulando de um sexto andar: o último vôo.

Parece que depois de tomada a decisão, nada mais pode deter o suicida. Em seu poema “Maio 20, 1928”, Jorge Luís Borges descreve um desses eventos: “Sua vontade lhe impôs uma disciplina precisa. Fará determinados atos, cruzará previstas esquinas, tocará numa árvore ou numa grade, para que o futuro seja tão irrevogável como o passado. (...) O espelho o aguarda. (...) Tratará de imaginar que o outro, o do cristal, executa os atos, e que ele, seu duplo, o repete.” Uma tentativa abortada de suicídio, dizem, inspirou este poema a Borges, que no derradeiro instante recuou diante do gesto sem volta.

No filme “Delírio de Amor”, o compositor Tchaikóvski joga-se no rio, para perceber, humilhado, que a água rasa lhe chega apenas aos joelhos. Mais sorte tem um personagem de “O Senhor Embaixador” de Érico Veríssimo, que tenta matar-se com pílulas para dormir. Em seus últimos minutos, faz pela primeira vez uma longa reavaliação de sua vida, enxergando-a com tal nitidez que percebe a loucura que está a ponto de cometer. Levanta-se, força-se a vomitar, tomado por um súbito arrebatamento, reconciliado com a vida. Menos sorte tem o personagem de Jean-Paul Belmondo em “O demônio das onze horas” de Godard, que amarra uma porção de bananas de dinamite à cabeça, acende os rastilhos... e a certa altura muda de idéia. Mas é muito tarde, não consegue apagar todos, e acaba indo pelos ares. Quem mandou brincar com essas coisas?