sábado, 30 de janeiro de 2010

1592) O Século de Pavlov (19.4.2008)



(José Paulo Paes)

Dizem os luminares da vida acadêmica que o século 20 (que ainda não terminou) é O Século de Freud. Discrepo. O Século de Freud será o século 21, se um dia nele ingressarmos. Será o século em que estudaremos a fundo o ser humano, seus desejos, seus impulsos. Tenho a ousadia de proclamar em alto e bom som que estamos vivendo ainda O Século de Pavlov. Ou seja, o século em que todos os esforços se dão na direção de manipular as pessoas, e não de entendê-las.

O dr. Pavlov ficou famoso pela sua experiência com cães. Ele tocava a sineta no laboratório e logo em seguida servia comida aos cachorros esfaimados. O cachorro entendia que logo depois da sineta vinha a comida, e, mal ouvia a sineta, começava a salivar, mesmo que não aparecesse comida nenhuma.

Ninguém descreveu melhor o Século de Pavlov do que o saudoso poeta, tradutor e crítico José Paulo Paes, no poema “Pavloviana” (no livro Um por todos, Ed. Brasiliense, 1986).  A primeira estrofe diz:

a comida a sineta a saliva
a sineta a saliva a saliva
a saliva a saliva a saliva.

Para mim está claro. A primeira linha descreve o processo inicial. A segunda mostra que, retirada a comida e mantida a sineta, a salivação continua. Por fim, a própria sineta pode ser retirada. O cachorro lembra dela, ou então está apenas acostumado, e fica salivando sem parar.

Eis a segunda estrofe:

o mistério o rito a igreja
o rito a igreja a igreja
a igreja a igreja a igreja.

Toda religião nasce de um mistério. É criado um rito para celebrar esse mistério, e depois uma igreja para perpetuar o mistério e o rito. O problema é que com o passar dos séculos perde-se o interesse pelo mistério, e o próprio rito se desvaloriza dentro da igreja, transformada numa máquina gigantesca e autônoma.

A terceira diz:

a revolta a doutrina o partido
a doutrina o partido o partido
o partido o partido o partido.

Preciso comentar, brasileiros? Eis a quarta estrofe:

a emoção a idéia a palavra
a idéia a palavra a palavra
a palavra a palavra A PALAVRA.

O processo criativo nasce de uma emoção, algo que assalta nossa mente antes que possamos compreendê-la. No esforço de compreendê-la, geramos uma idéia, que não é a mesma coisa que a emoção, mas é uma face complementar dela. E finalmente encontramos as palavras para exprimir a idéia e talvez gerar (no leitor) uma emoção equivalente à que deu origem ao processo todo.

Acontece que é mais fácil lidar com idéias do que com emoções, e é mais fácil lidar com palavras do que com idéias. A poesia se transforma numa atividade meramente técnica, num jogo verbal em branco, destituído de emoções e idéias. A fórmula cruel de JPP descreve não apenas os processos acima, mas muitos outros do mundo em que vivemos, no Século de Pavlov. Brindemos à percepção do poeta, e ao refinamento com que soube encontrar a forma exata de transmiti-la.

(NOTA: na página do jornal era impossível reproduzir o formato das estrofes do poema, mas aqui no blog dá para fazer.)

1591) Walt Whitman (18.4.2008)




Ele está pouco em evidência hoje, mas houve um momento em que era O Maior Poeta Do Mundo. Confesso que nunca foi um dos meus preferidos. Sua voz poética se derrama em versos excessivamente longos, e cai na tentação das enumerações infindáveis, o que dá à sua poesia um certo tom catalográfico. 

Walt Whitman não é uma gruta de Ali Babá, cheia de pedras preciosas engastadas em jóias de fina ourivesaria. É uma Serra Pelada, uma cordilheira cheia de ouro e diamantes, mas é preciso cavar para encontrá-las, porque o entulho é grande.

Quem escreveu um poema chamado “Saudação a Walt Whitman”? Acertou quem disse Fernando Pessoa, que dele extraiu o verso longo e a voz declamatória de Álvaro de Campos, superiores aos do próprio Whitman. Whitman abrigava multidões em si, mas sua voz era uma só. Fernando era muitas pessoas. Corrigiu os excessos do mestre, cujo espírito indomável mudou-lhe a vida: 

“Abram-me todas as portas! / Por força que hei de passar! / Minha senha? Walt Whitman... / Mas não dou senha nenhuma… / Passo sem explicações... / Se for preciso meto dentro as portas...”

Quem escreveu “Ode a Walt Whitman”? Acertou quem disse Garcia Lorca, que em seu livro atípico O Poeta em Nova Iorque dizia: 

“Nem um só momento, velho e formoso Walt Whitman, / deixei de ver tua barba cheia de mariposas, / nem teus ombros de veludo gasto pela lua, / nem tuas coxas de Apolo virginal, / nem tua voz como uma coluna de cinza”... 

Para esses poetas de alma feminina, Whitman era uma poderosa imagem sexual, com seu corpo de lenhador, suas barbas grisalhas de profeta, sua intenção explícita de ser todos os homens e todas as possibilidades do Homem.

A fama de Whitman se deve em partes iguais a seu verso sem rédeas (alguns o consideram o verdadeiro inventor do verso livre, sem métrica), ao seu espírito democrático e americaníssimo, e à persona máscula e homossexual que criou, e que encantava aos homens e às mulheres por igual. 

Jorge Luís Borges, em suas memórias, afirma: “Por algum tempo achei que Whitman era não só um grande poeta como também o único, e que era uma prova de ignorância não imitá-lo”. Poemas como “Buenos Aires”, “Os Gaúchos”, “Outro Poema dos Dons”, etc. são testemunhos dessa fase.

Para Borges, Whitman soube inventar para si mesmo um personagem de “ilimitada e negligente felicidade”. Borges considerava que Whitman forjara conscientemente (quase como estratégia de marketing, diríamos hoje) esse ideal viril, ao mesmo tempo heróico e erótico. 

No ensaio “Valéry como símbolo” (em Outras Inquisições) ele compara esse projeto whitmaniano ao de Paul Valéry, de ser O Intelectual. Em “O outro Whitman” (em Discussão) Borges ironiza essa imagem de “um varão meramente saudador e mundial”. Vê em Whitman “um homem de invenção infinita, simplificado pela visão alheia em mero gigante”, e transcreve poemas curtos em que o poeta exibe uma faceta mais intimista. 

Maiakóvski, Ginsberg, Vinícius, ninguém passou incólume sob a sua sombra.






1590) O Transleitor (17.4.2008)




O romance The Translator(Nova York, Morrow, 2002), de John Crowley, é a história da convivência de Innokenti Falin, um poeta russo, com sua tradutora norte-americana, em 1962, antes, durante e depois da crise dos mísseis cubanos. Como tudo que Crowley escreve, é várias coisas ao mesmo tempo: uma delicada história de amor, discussão sobre a natureza da poesia e da literatura, estudo da dificuldade de comunicação entre as pessoas, retrato de época. Crowley escreveu ficção científica (Engine Summer, The Deep, Great Work of Time), e o livro tem algo do gênero, ao sugerir a existência de universos paralelos nos quais certos fatos históricos cruciais acontecem de maneira diferente. Crowley também é mestre da fantasia: Little, Big (ganhador do World Fantasy Award) lida com elfos, e o presente livro lida (de maneira indireta, simbólica) com anjos.

Nas últimas décadas Crowley dedicou-se a uma tetralogia de romances explorando a magia renascentista, livros ambientados na época atual e também no tempo do Dr. John Dee, o mago e alquimista que assessorava a Rainha da Inglaterra. Esses romances (Aegypt, 1987; Love & Sleep, 1994; Daemonomania, 2000; Endless Things, 2007) contam uma espécie de história secreta da História, fatos que talvez tenham acontecido sem que ficássemos sabendo. E The Translator tem algo disto.

À primeira vista o livro se intitularia “O Tradutor”, mas a protagonista é Kit Malone, então a tradução correta é “A Tradutora”. Em inglês, “translator” pronuncia-se “trans-LÊI-tor”, e não posso resistir a um trocadilho dado pronto, de bandeja. Um tradutor é um trans-leitor, um leitor que lê transversalmente um texto, procurando não uma correspondência mecânica entre palavras que só se assemelham na superfície, mas a reconstituição do maior número possível das muitas camadas de significação do poema. No livro, cabe a Kit, que mal começou a estudar russo, acompanhar o poeta estrangeiro em sua busca pela palavra inglesa adequada para transmitir nuances de significado que talvez só existam no original.

Quando Kit lhe mostra uma tradução e se refere ao “seu poema”, Falin lhe diz: “Não. Esse é o seu poema. O meu foi escrito em russo”. O que um tradutor faz é escrever – no seu próprio idioma, com seus próprios recursos, seu talento – um texto que seja isomórfico com um texto pré-existente, criado por outra pessoa em outra língua. Não é o mesmo texto. Nunca vai ser. Eu, por exemplo, sou fã de Brecht e de Maiakóvski sem nunca ter lido um só poema deles, porque não sei uma palavra nem de alemão nem de russo. Li traduções em português, inglês, espanhol. Comparando umas às outras, comparando o sentido das frases, o vocabulário, o “tom de voz”, o modo com os versos se quebram e se organizam, fico com uma idéia aproximada do que devem ser os poemas desses autores. Nunca os conhecerei – a menos, claro, que aprenda as duas línguas. Um poema estrangeiro é a foto de um relâmpago – em Braille.

1589) A Fundação e a Al-Qaeda (16.4.2008)




Duvido que alguém tivesse ouvido falar na Al-Qaeda antes do 11 de setembro de 2001. 

O nome de Osama Bin Laden me era familiar – um daqueles terroristas obscuros que vez por outra eram enumerados num “Globo Repórter”. Quando as Torres Gêmeas vieram abaixo, o governo dos EUA agiu como a polícia carioca. Tirou da gaveta a lista dos “habituais suspeitos”, e escolheu o mais provável. 

Bin Laden assumiu a autoria dos atentados. Eu também assumiria, se fosse acusado – perdido por um, perdido por mil. (Ademais, no mundo dos criminosos crime grande é sinônimo de Poder.) 

De quebra, foi-lhe atribuída a chefia de uma misteriosa organização chamada Al-Qaeda, responsável, desde então, pela maioria dos grandes atentados que têm ocorrido, da Indonésia à Espanha.

Não passou despercebido, aos leitores de ficção científica do mundo islâmico (que são legião), que o romance Fundação, o clássico de Isaac Asimov, tinha sido traduzido em árabe com o título “Al-Qaeda”. É esse o significado do termo árabe: base, fundação, alicerce, pilastra, ponto de apoio, e idéias correlatas, tanto literal quando simbolicamente. (Na imprensa brasileira, “Al-Qaeda” é em geral traduzido como A Base).

A coincidência mais perturbadora, no entanto, é a que já abordei na coluna “A voz do morto” (28.1.2004). Bin Laden se comunica com o mundo da mesma maneira que Hari Seldon, o protagonista de Fundação: através de depoimentos gravados que seus seguidores fazem exibir em momentos estratégicos. 

No caso de Hari Seldon, esses depoimentos (gravados há séculos, quando ele era vivo) servem como confirmações de sua teoria da Psico-História, uma ciência probabilística capaz de prever o desenvolvimento futuro da civilização. Duzentos anos depois de morto, Seldon reaparece no vídeo, dizendo: “Pelo que calculo, vocês devem estar enfrentando tais e tais problemas, de tal ou tal maneira. Aqui vão minhas instruções sobre o que devem fazer”. Perplexos e maravilhados com a precisão do diagnóstico, os governantes do futuro não têm saída senão seguir a receita.

Giles Foden tem um extenso artigo no “The Guardian” (http://books.guardian.co.uk/review/story/0,12084,779530,00.html) no qual faz uma fascinante análise dos paralelos entre terrorismo e FC. Uma conexão que eu desconhecia é a da seita Aum Shinrikyo, responsável pelos atentados com o gás “sarin” no metrô de Tóquio, em 1995. 

Foden cita um jornalista japonês, e diz que o propósito da seita, inspirada na série Fundação, era “reconstruir a civilização após um cataclisma, e combater as poderosas instituições globalizantes que estão produzindo o apocalipse”. A retórica delirante de certos terroristas lembra muito a de numerosos vilões da FC, os tais cientistas loucos que querem dominar o mundo. 

Será que a FC é uma influência nociva? Nada disso. Como raio-X do nosso inconsciente coletivo, a FC é um diagnóstico antecipado de tudo aquilo que já existe mas só vai se tornar manifesto daqui a décadas.






1588) As fotos construídas de Lori Nix (15.4.2008)




Tenho um interesse especial pelos trabalhos artísticos que procuram reunir mais de uma técnica. Quando falamos em fotografia, por exemplo, a primeira coisa que nos vem à mente é um fotógrafo com a câmara na mão, caminhando por aí e registrando as coisas que vê à sua frente. Existe uma arte mista, no entanto, que consiste em criar objetos e fotografá-los. Preparar cenas, e fotografá-las; armar cenários inteiros, com os respectivos personagens, e fotografá-los. Não me refiro à fotografia publicitária ou de moda, mas a criações com intenção artística, reunindo elementos que parecem teatro, parecem modelismo ou arquitetura... e fotografia.

É o caso da artista Lori Nix, cujos trabalhos podem ser vistos aqui (http://www.lorinix.net/). Ela prepara cenários em pequena escala, cheios de objetos em miniatura, e depois os fotografa. Em seu saite há diversas séries: “A Cidade”, “Perdidos”, “Insecta Magnifica”, “Algum outro lugar”, “Acidentalmente Kansas”. Em cada série, fotos desses cenários em miniatura que causam espanto pela riqueza e exatidão dos detalhes. Em “A Cidade”, por exemplo, “Biblioteca” nos mostra o salão de uma biblioteca abandonada, as paredes cobertas de livros empoeirados, móveis caídos, árvores imensas crescendo no meio do aposento e projetando-se para fora pelas aberturas do teto em ruínas. “Aquário” mostra um aposento quase circular, com as paredes cobertas de musgo ou de algas, tendo em certo ponto um aquário de verdade que reproduz o formato do ambiente onde se encontra. A “Torre do Relógio” mostra outro local abandonado, o teto cheio de buracos, nenhum sinal de presença humana, e vemos de dentro para fora as engrenagens mecânicas do relógio da torre.

Trabalhos assim envolvem partes iguais de artes plásticas e fotografia, e eu diria que também existe uma espécie de teatro implícito nisso tudo, porque cada um desses cenários pressupõe uma história que ocorreu ou que ainda está ocorrendo. Não se trata simplesmente de fotografar, mas de produzir uma realidade artificial e registrá-la através da foto. E a foto é indispensável, porque somente nela, pela ausência de proporções externas em relação ao mundo, podemos acreditar que aqueles cenários minúsculos são os espaços reais que representam.

Num texto que há no saite da artista, Jeffrey Hoone comenta que nos últimos trinta anos muitos artistas têm explorado essa mistura entre evidência e imaginação, através da ambigüidade da fotografia construída. Ele cita “as cenas cuidadosamente construídas de Bernard Faucon com manequins de crianças, as desconstruções de papéis sexuais levadas a cabo por Laurie Simmons e Cindy Sherman, os elegantes estudos arquitetônicos de Jim Casebere, e as produções monumentais de Jeff Wall e Gregory Crewdson”. Talvez seja excessivo chamar a isso “uma nova forma de arte”, mas não há dúvida de que é uma combinação muito rica de possibilidades.