segunda-feira, 17 de maio de 2010

2056) 50 anos de FC (10.10.2009)



Em setembro comemorei um cinquentenário especial. Foi em setembro de 1959 que meu pai me deu, em meu aniversário, um livrinho de bolso intitulado Planeta Maldito, de Vargo Statten. Foi meu primeiro livro de ficção científica, anterior a Julio Verne, a H. G. Wells e a todos os que se seguiram. Era o volume 3 da Coleção Futurâmica, das antigas Edições de Ouro, e li em seguida todos os títulos da coleção. (Que ainda tenho hoje, quase completa: recomprei tudo em sebos cariocas.)

Planeta Maldito (o título original é “The Catalyst”), livro de 1951, tem todas as virtudes e defeitos da FC escrita nos anos 1920-30-40. Descobri depois que “Vargo Statten” era um dos pseudônimos do enormemente prolífico John Russell Fearn (1908-1960), que escreveu centenas de livros e chegou a ter uma revista lançada em seu nome (Vargo Statten Science Fiction Magazine).

O livro é pulp fiction da mais delirante. O enredo: um casal de astronautas, Scott e Nancy, em sua espaçonave particular (!), está extraindo rochas em Mercúrio e descobre por acaso um gigantesco veio de diamantes. Arranca o mais que pode, e traz aquilo para sua mansão em Londres. De quebra, vem no meio das pedras um pedaço de rocha mercuriana. Certa noite, um ladrão entra na mansão do astronauta, rouba os diamantes (junto com o pedaço de rocha) e foge. De manhã cedo, o leiteiro encontra uma estátua de ouro no meio da rua, a estátua de um homem em tamanho natural, nu, em atitude de quem está correndo.

Descobre-se então que a rocha mercuriana (“o catalisador”) é capaz de transformar a água em ouro, e como o corpo humano tem não-sei-quantos por cento de água, o ladrão, ao tocá-lo, foi transformado numa estátua de ouro (!). (Ah, Breton, Dali, Buñuel... Vocês não passavam de principiantes...) Começa uma busca frenética pelo catalisador, que, varrido sem atenção pelos lixeiros, começa a transformar em ouro toda a água dos esgotos de Londres e acaba atingindo o Oceano Atlântico. E novas estátuas de ouro, nuas, aparecem aos montes: as roupas são incendiadas pela reação química (!).

Descobre-se por fim que os oceanos de Vênus são capazes de derreter não só o catalisador quanto o ouro criado por ele, e toma-se a decisão de banhar o planeta Mercúrio com essa água, para destruí-lo e evitar nova ameaças à Terra. Uma frota de naves faz um trajeto de ida e volta entre os dois planetas, jogando água venusiana na superfície de Mercúrio, até que este se fragmenta e os pedaços são atraídos para dentro do Sol. O clímax do livro é quando a espaçonave de Scott e Nancy começa a ser atraída pelo Sol e o resto da frota consegue trazê-la de volta usando “barras de atração” que contrabalançam a gravidade solar (!).

“The Catalyst” tem imagens memoráveis: estátuas de ouro, oceano solidificado, planeta se esfarelando... Aos nove anos de idade, habituê de matinais, cinematografei tudo em meu écran mental. Se tivesse deixado para ter essa experiência aos 20 anos, babau Tia Chica.

2055) O julgamento tendencioso (9.10.2009)



Uma das coisas mais absurdas da Santa Inquisição não era a prática da tortura, que ao fim e ao cabo faz parte da nossa atividade policialesca desde que o mundo é mundo. Era a prática do Nonsense. Havia um teste, ao qual eram submetidos os suspeitos de heresia, que prima pelo absurdo. Mandavam-no caminhar sobre brasas, de pés nus, por uma certa extensão; ou andar dez metros segurando uma barra de ferro em brasa. Se se queimasse é porque era culpado. Foi provavelmente satirizando esses processos que Mark Twain inventou (“O Romance de Virgem Esquimó”) o julgamento esquimó em que o réu era jogado às águas: se fosse inocente morria afogado, se fosse culpado conseguia salvar-se.

Faz parte da mentalidade religiosa esse flerte com o improvável, porque para quem acredita em Deus – ou pelo menos num Deus que se dá o trabalho de interferir pessoalmente em cada pequena disputa humana, contenda de vizinhos, batida no trânsito, briga de bar – não existe Acaso. Tudo é a expressão da vontade de Deus, que prefere se comunicar de forma críptica e indecifrável. Daí que tantas escolas místico-filosóficas utilizem seus lances-de-dados para ganhar um vislumbre desses processos: búzios, I-Ching. Tarô.

Profetizo que um dia a nossa assim-chamada civilização irá recorrer a processos parecidos para determinar a culpa ou inocência dos acusados de um crime qualquer. Afinal, nosso aparato tribunalício de hoje não passa de um teatro, onde, como se diz por aí, um júri de 12 pessoas se senta para decidir quem fala melhor, se o promotor ou o advogado de defesa.

Estamos deixando de ser uma civilização beletrista, oratória, e indo na direção de uma civilização baseada em escolhas randômicas, permeadas com opções místicas. Por volta de 2050, quando um cara for acusado de um crime ele será submetido ao veredito de diversas tendências do pensamento então contemporâneo. Primeiro, ele participará de uma leitura do Tarô por um tarólogo juramentado do Sistema Penal. O tarólogo “botará as cartas” e no final emitirá o seu parecer técnico sobre a culpa do acusado. Em seguida, ele prestará o teste grafológico. Terá a missão de escrever sua versão dos acontecimentos de que é a acusado, à mão, num máximo de duas laudas, que serão enviada ao Instituto Grafológico Judiciário, onde técnicos darão seu veredito sobre a confiabilidade do que o acusado afirma por escrito.

Claro que nenhuma dessas instâncias será definitiva. A mentalidade da época será cumulativa, holística, multidisciplinar. Alguns países instituirão o lançamento de búzios; outros, a Tábua Ouija que colherá o depoimento póstumo da vítima. Suponho que haverá recursos ainda mais sofisticados: um gerador aleatório de dígitos (como os que criam os localizadores dos voos para as companhias aéreas), que em seguida serão submetidos ao crivo da Numerologia. A sentença será baseada no somatório destes julgamentos, e as possibilidades, como sempre, são infinitas.

2054) Tratados de versificação (8.10.2009)



Sempre que ouço a expressão usada no título acima me vem à cabeça um trocadilho atribuído, se não me engano, a Emílio de Menezes. Numa roda de amigos, alguém pergunta pelo poeta Fulano, autor de um desses tratados, e que há algum tempo, adoentado, não aparecia para bater papo na Confeitaria Colombo ou em outro reduto literário carioca. Emílio respondeu: “Desde pegou uma gripe ele tem tratado de ver se fica são”.

Os tratados de versificação, com suas complicadas regras de métrica, acentuação, prosódia, ritmo e outros efeitos, foram um inestimável instrumento e um permanente pesadelo dos poetas de outras eras. Ensinar a um leigo como se cria um verso ritmado é uma tarefa tão cansativa quanto ensinar um adulto a ler. Por que motivo tantos poetas, na hora da escrita, preferem contar as sílabas métricas batendo com o pé no chão ou, como dizia Dimas Batista, “contando nos dedos pra metrificar”? Porque sabem instintivamente que a poesia é feita com o corpo, nasceu do corpo, e não do intelecto. A versificação é uma intelectualização de um processo rítmico que o corpo sempre executou sem ter que recorrer a raciocínios. Foi a poesia escrita que intelectualizou esse processo e o distanciou do corpo.

A poesia é oral. Nasceu sendo falada ou cantada. Quando alguém criou o primeiro poema escrito da história da Humanidade, provavelmente o fez escrevendo com caracteres cuneiformes em tabuinhas de argila, na antiga Suméria ou na Babilônia. Foi um momento histórico: o primeiro poema que, sem ser dito em voz alta por ninguém, foi criado diretamente através de sinais gráficos que exprimiam sons. Porque até então, durante muitos milhares (talvez dezenas de milhares de anos) os poemas longos e complexos de todas as culturas que existiam haviam sido criados oralmente, em sociedades onde não existia alfabeto. As pessoas pensavam os versos, diziam-nos em voz alta, outras pessoas escutavam, repetiam, decoravam, e os poemas eram passados adiante, ao longo dos anos e dos séculos, sem que houvesse necessidade de uma versão escrita. Quando esta necessidade surgiu, porque as populações cresceram, e as sociedades tornaram-se muito complexas, os poemas passaram a ser escritos.

Daí a dificuldade de explicar por escrito um processo auditivo e oral. Poetas não contam sílabas. Eles encaixam palavras numa cadência ou numa melodia. Poetas não contam vogais e consoantes: eles apenas articulam sons. O poema oral e a letra de música são percebidos intuitivamente pelo nosso ouvido. A nossa fala se amolda às cadências da recitação e do canto sem que a gente precise recorrer a conceitos como “sílabas”, “notas musicais”, “ditongos”, etc. O poema escrito é uma conquista de sociedades complexas, mas não é necessariamente superior ao poema falado. A poesia nasceu falada. Enquanto os seres humanos usarem a fala para se comunicar, a poesia falada e cantada será uma das suas formas de expressão.

2053) Escrever bem, escrever mal (7.10.2009)



Uma das diversões preferidas hoje em dia é mangar dos jovens que escrevem mal. A gente tem uma propensão masoquista a procurar erros, coisas malfeitas. Um vestibulando escreve: “O cerumano é composto de cabeça, tronco e membros...” e rolamos de rir. Ora, a melhor maneira de aprender a escrever certo é ler muito quem escreve certo. Lendo autores que escrevem bem, o leitor irá absorvendo esse modo de escrever de modo semi-consciente, pela superposição de centenas de exemplos concretos, o que é muito melhor do que a repetição e o decoreba de alguma regra abstrata.

Eu próprio aprendi português assim. Os frequentes erros que cometo (porque esta minha coluna, a meu pedido, não é submetida a revisão) se devem ao fato de que poucas vezes me dei o trabalho de folhear uma gramática, que seria o segundo passo, imprescindível. Mas o primeiro passo eu me orgulho de ter dado: ler, ler muito, ler muitos autores brasileiros e portugueses que escrevem bem. Para assimilar intuitivamente as maneiras corretas de se usar uma pontuação, de se conjugar um verbo, de se organizar um discurso em orações diretas, indiretas, subordinadas, o escambau. Mesmo sem saber como aquilo se chama, ficamos sabendo que aquilo existe e se faz daquele jeito. Li Coelho Neto, Eça de Queirós, Fernando Sabino, Humberto de Campos, Érico Veríssimo, Monteiro Lobato e tantos outros sem pensar em gramática. Li porque gostava das histórias deles.

Muitos jovens hoje não lêem esses autores (ou outros que se lhes equivalham) porque acham as histórias bestas, as situações desinteressantes e as ambientações banais. Gostam de aventuras interplanetárias, tramas cyberpunk, hiper-tecnologias transgaláticas, destruição e recriação de Universos... Nada contra, porque eu também gosto. O problema no caso é de carência estilística, porque esses livros ou são lidos em inglês (que até nos ensina alguns aspectos estilísticos, mas deixa de nos ensinar os que são peculiares ao português), ou então em traduções que, na grande maioria dos casos, é apenas sofrível.

Vai daí que muitos jovens autores brasileiros na faixa do 30 ou 35 anos nunca leram um grande autor brasileiro ou português, ou, se os leram, foi em quantidade insuficiente para aquela lenta acreção de virtudes estilísticas que se dá pela exposição a formas diferentes de escrever certo. É fácil dar um manuscrito a um primo que é professor e pedir-lhe “que corrija o português” antes de mandar o calhamaço à editora. O primo corrige os solecismos, os erros de concordância (meu ponto fraco, aliás), os erros de ortografia, etc.; mas não pode corrigir as fraquezas estilísticas, os lugares-comuns, os adjetivos clichês, e principalmente as expressões desajeitadas e surreais que não passam de traduções ao-pé-da-letra de expressões inglesas que o autor absorveu em doses gigantescas e que se incrustaram no seu inconsciente verbal.

2052) O espírito das línguas (6.10.2009)




(Paulo Rónai)

Um provérbio diz, sobre os idiomas: “O italiano canta, o francês fala, o inglês cospe, o alemão vomita”. Cada língua tem um espírito próprio. 

No tempo da poesia marginal, quando a onda era escrever poemas de três ou quatro linhas, escrevi um intitulado “Filme de Amor”, que dizia: “Paixões em francês. / Brigas em italiano. / Separações em sueco”. Era uma alusão velada a Truffaut, Antonioni e Bergman, mas parece que existe mesmo um perfil emocional em cada idioma do mundo, e, se não existe, fabricamo-lo. 

 Há uma canção intitulada “French is the loving tongue”, porque trata-se claramente de uma língua de arrulhos e biquinhos. O italiano é a língua da veemência, do desabafo, do esculacho acompanhado por gestos impublicáveis e onomatopéias ruidosas. E o sueco é um idioma invernal e lúgubre, cujas consoantes parecem cacos de vidro.

Já se disse também que o alemão é a melhor língua para se dar ordens, e é o idioma ideal para se usar com os cães e os soldados. Curiosamente, minhas experiências com gravação magnética numa moviola me demonstraram que nada parece tanto com os fonemas do alemão quanto o português ouvido ao contrário. Tenho pra mim que se um dia alguém reverter uma fita magnética com um discurso de Hitler vai se deparar com a transmissão de um Gre-Nal.

Conta-se que Carlos V, rei de Espanha afirmou certa vez: “Falo com meu cavalo em alemão / com as damas da corte italiano / para os assuntos de homens em francês / mas só falo com Deus em espanhol”. 

 Esta é uma interessante radiografia cultural, porque os “assuntos de homens” podem ser interpretados como assunto políticos e militares, numa época em que o francês era a língua da diplomacia internacional. Os assuntos de alcova, portanto, eram transferidos para o italiano, o que também não é má escolha, visto que era o idioma natal de Cláudia Cardinale e Mônica Vitti.

Paulo Rónai, o mais húngaro dos brasileiros, disse uma vez que a língua portuguesa era um segredo delicioso compartilhado por apenas 250 milhões de pessoas. É difícil avaliarmos o espírito da nossa própria língua, porque foi ela que formatou nosso pensamento, nosso ouvido, nossa imageria mental. 

Os estrangeiros veem uma beleza enorme nas nossas vogais, que são melodiosas, e mais variadas (dizem) do que nas outras línguas. 

Também elogiam entusiasticamente os complicados multirritmos polissilábicos preponderantes na lusofonia. Para quem vem de idiomas rudemente saxônicos como o inglês, onde a maioria das palavras têm apenas uma sílaba, deve ser uma experiência desconcertante.

Poderíamos pensar na composição de romances poliglotas em que diferentes estados emocionais fossem reproduzidos através de narração ou diálogo em diferentes idiomas, de acordo com os exemplos acima, ou com outros a gosto do autor. 

Um texto em que não apenas o vocabulário fosse expressivo, mas também os fonemas e as peculiaridades gramaticais das outras línguas sendo utilizados como recursos estéticos.




2051) Ser pacifista (4.10.2009)



Ouço de vez em quando o comentário irônico: “Ah meu Deus, não me diga que você é pacifista... Que coisa mais velha!” Percebo pelo tom (e pela aparência geral do meu interlocutor) que “pacifista” é para ele um epíteto derrogatório. Para esse pessoal, o termo evoca a imagem de um jovem magrinho, de óculos, meio efeminado, vestindo bata indiana branca, parado diante do Pentágono e erguendo uma cartolina onde se lê: “Por Favor, Não Façam Mais Isso!”. Tás conversando, rapaz. Ser pacifista é mais difícil e mais perigoso do que ser guerreiro. Precisa ser muito homem pra ir pra guerra? Pois pra combater a guerra precisa ser mais homem ainda. (Leitoras: “homem” aqui é um termo genérico, sem conotações masculinas, significando “Ser Humano Tomado em Sua Plenitude Moral, Intelectual e Espiritual”, tipo assim.)

Ser pacifista não é ser covarde, como os truculentos apregoam. Pelo contrário, um pacifista é muitas vezes um sujeito mais corajoso do que os valentões. Um valentão é um cara que entra numa briga armado contra um cara armado, para bater e para apanhar, para matar e para morrer. Um pacifista entra na mesma briga desarmado, com a intenção de bater e apanhar o mínimo possível, e de não matar nem morrer. Entra para apartar, para jogar água na fervura, para bloquear ações de violência radical, para impedir que a escalada violenta assuma proporções de catástrofe. E tudo isto sem poder matar ninguém! Pense numa briga desigual.

Um pacifista, numa briga de bar, se mete entre dois sujeitos maiores do que ele, para evitar que se matem um ao outro. Não faz isso por “amor ao próximo”, ou pelo menos não o faz porque valoriza demais os litigantes. Faz porque sabe que as possíveis viúvas e os possíveis órfãos não têm culpa da estupidez dos valentões. Um pacifista é um sujeito que volta pra casa à noite com um hematoma no rosto, a camisa rasgada, e quando a mulher pergunta o que aconteceu ele diz que precisou tomar o revólver de um “caba safado” para que ele não matasse outro “caba safado”. E um pacifista geralmente é casado com uma mulher que compreende o que ele fez, e por quê.

Eu nunca briguei, mas já perdi a conta das brigas que apartei, principalmente em estádios de futebol. Por duas vezes fui preso pela PM e levado para fora do estádio porque estava no epicentro de uma briga, só que estava apartando, mas a polícia quando emburaca não pergunta quem é quem. (Além do mais, em Campina tinha uns fardados que embirravam com o tamanho do meu cabelo, e eram doidos pra me aplicar um corretivo. Nunca conseguiram.)

Tropas da ONU, pessoal da Cruz Vermelha, correspondentes de guerra, tudo isso são pessoas que vão para o campo de batalha sujeitos a levar um tiro na testa ou pisar numa mina e ir pelos ares. São pacifistas, ou pelo menos estão ali a trabalho, sem poder matar ninguém. São covardes? Não, amigos. Se fossem covardes estariam em casa, nos gabinetes políticos, mandando os outros morrerem na guerra em nome deles.