sexta-feira, 7 de março de 2008
0083) A “tomada” (27.6.2003)
Um tema literário que não me parece ser muito abordado pela crítica é o que eu chamo de “a tomada”, a partir do conto “Casa Tomada” de Julio Cortázar (filmado na Paraíba por Marcus Vilar, tendo no elenco W. J. Solha). Neste conto, um casal de irmãos vê sua mansão decadente ser invadida aos poucos por ocupantes cuja identidade ou intenções nunca são reveladas. Nessa invasão invisível, cada aposento, e depois cada andar, vai se tornando inacessível aos moradores, que acabam trancando a casa e ir embora. Eles não lutam, não enfrentam o problema; apenas recuam, e cedem terreno aos invasores.
Muito semelhante em espírito é o conto “A máscara de prata” de Hugh Walpole (1929). Uma senhora rica de meia-idade encontra na rua um rapaz bonito, educado, passando dificuldades. Ela lhe dá uma ajuda financeira, mas ele volta a fazer pedidos, e ela acaba contratando-o como secretário. Daí a pouco, a família do rapaz está instalada na casa dela. Ela procura inventar pretextos para mandá-los embora, mas tem bom coração, e acaba sempre fraquejando. No fim do conto, doente, enfraquecida, ela está morando no sótão, e a família, a esta altura dona da casa tomada, dá uma festa de arromba para uma turma de amigos.
Cinéfilos mais grisalhos hão de recordar O criado, filme inglês de Joseph Losey (1963), em que o excelente Dirk Bogarde faz o papel de um criado que entra para o serviço de um jovem aristocrata (James Fox) ocioso, influenciável e hesitante. Aos poucos, o criado vai ganhando total ascendência psicológica sobre o patrão, e manipulando-o até tornar-se, virtualmente, o dono da casa. E o conto de Kafka “Um velho manuscrito” nos mostra uma cidade que, invadida por tribos nômades do norte, vê os invasores acampados em plena praça diante do palácio imperial, sem que o imperador seja capaz de expulsá-los dali. Os nômades ignoram as pessoas da cidade, e invadem seus armazéns e seus açougues para pegar comida, sem encontrar resistência. O narrador diz: “É tudo um enorme mal-entendido, mas este mal-entendido está acabando conosco.”
Nestas narrativas, há sempre um movimento vagaroso de aproximação, de cerco, de invasão, de tomada do poder. Em geral não há violência, não há um conflito declarado. Há uma espécie de ameaça sustida, pairando sobre a vítima, que não reage porque não sabe o que acontecerá caso venha a reagir. Por um lado pode-se descrever esse processo como uma invasão; por outro, ele sugere também um caso de vampirismo, ou parasitismo, onde a criatura aparentemente mais fraca apega-se à criatura mais forte e passa a sugar-lhe as energias. São histórias que, mesmo quando não invadem o terreno do sobrenatural, nos dão a impressão de uma presença maligna que nunca podemos apontar com certeza – o invasor tem em geral os mais inocentes propósitos, as melhores intenções. Mas quando a vítima assume de fato a consciência do que está ocorrendo, e quer meter os pés... aí já é tarde. A casa já está tomada.
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