segunda-feira, 12 de junho de 2017

4243) Ariano Suassuna e a estética do Não Foi Bem Assim (12.6.2017)



(foto: Gustavo Moura)

Um homem apunhala outro na barriga e o deixa morto numa poça de sangue. Não, não foi bem assim: era uma bexiga cheia de sangue falso, um ardil premoldado pela dupla. Um gato descome dinheiro, sim, todo mundo viu por onde saiu, eu vi também, mas não foi bem assim. Foi armado de outro jeito, e você não viu.

Essas coisas são inventadas por heróis picarescos, gente que para fugir da fome tem que remar o dia todo, a vida inteira. Tudo na vida delas, tudo que a move é se afastar da fome indo em todas as direções possíveis ao mesmo tempo. Muitos acabam ricos, milionários, mas essa vertigem centrífuga para longe da fome é o que define suas vidas. Se achar que além de matar a fome existe a possibilidade de guardar um dinheirinho extra (e se for dinheiro desonesto eles acham mais gostoso ainda), esse pessoal é capaz de acreditar até mesmo em testamento de cachorro e descomimento de gato.

Muitas histórias de Ariano Suassuna giram em torno da cobiça pelo dinheiro, tema que pode se referir, com certa largueza de conceito, a qualquer época humana. Seu personagem mais famoso, João Grilo, é “doidim” por dinheiro, só não tem é o dom de atraí-lo, como algumas cavalgaduras batizadas de hoje em dia parecem ter.

Essas histórias têm um pé na literatura oral, então mesmo escritas existe nela uma Fala, um enunciado de fatos e opiniões e comentários. Tal como um dinheiro que se desvaloriza ao ser fabricado em grandes quantidades, a palavra vai se relativizando à medida que se multiplica. Os fatos? Ora, sente aí e preste atenção. Existem 147 versões diferentes para esses fatos. Você tem a sua? Pois fique sabendo que Não Foi Bem Assim.

Essas obras picarescas na literatura e no teatro estão o tempo todo mostrando e escondendo verdades, construindo e desconstruindo fatos, jurando verdades sagradas e logo depois confessando mentiras catastróficas. Há uma puxada de tapete contínuo embaixo dos pés do leitor, e aparentemente o leitor gosta, o espectador gosta.

Formas popularescas e simpáticas da literatura oral e semi-oral, como o cordel, o romance picaresco, o melodrama de palco, o folhetim de rodapé, são clientes assíduos, fregueses de carteirinha na Loja do Não Foi Bem Assim.

Existe uma tradição inteira de enredos baseados em pequenas façanhas de fingimento, de puxada-de-tapete, de mentira planejada, do choque de versões conflitantes para os mesmos fatos. Isso é a substância de Cancão de Fogo e Pedro Malasartes. E também está na raiz dos argumentos muitas vezes ingênuos dos folhetins de todas as épocas, das chanchadas cinematográficas, do teatro de vaudeville. O teatro de circo e os entremezes populares compartilhavam essa estética do “Eita, Era Tudo Mentira”.

Era um tema caro aos artistas barrocos, que Ariano tanto admirava. Ele dizia que o Barroco é bom porque contém todos os pares de opostos possíveis, ambos em alto grau. Daí que a poesia barroca seja uma espécie de mundo de Calderón de La Barca recitando à frente, e dezenas de Lazarillos de Tormes passando ao fundo. Os dois extremos, e sem conhecer um deles é praticamente impossível entender o outro.

O Barroco era toda uma estética da imperfeição, do desmedido, até do Feio – o que a ser verdade não o deixaria muito distante de pelo menos dois que ele admirava, Augusto dos Anjos e Hermilo Borba Filho, cada qual no seu modo.

No caso particular dos enganamentos da farsa teatral, muitos desses recursos usados em palco talvez fossem vistos, por platéias mais finas, como recursos vulgares e plebeus. Como jogar um balde água nos espectadores ou exibir trucagens escatológicas ou de mau gosto. Era barroca também a tendência à proliferação. Bastava um comediante inventar um truque cômico de sucesso para em questão de meses cada um dos seus concorrentes já ter uma versão própria do sucesso do outro. Tem talvez algo de Barroco nesse “Pode tudo!” que às vezes parece reinar na cultura oral.

O Não Foi Bem Assim pode ser a história de um engano pessoal, como o do cigano que leva uma mulher à beira do rio pensando que fosse donzela, porém já tinha marido. Pode ser o crime misterioso depois de encarado de outra forma por Miss Marple ou pelo Padre Brown. Pode ser também a estética do desmentido, do Rashomon, das versões conflitantes e incomprováveis de um mesmo fato. Cada um contando a mesma história de uma maneira diferente. A cada relato, alguém ergue o dedo no ar e diz a fórmula mágica: “Êpa, peraí, não foi bem assim”.

Dá para pensar também que a ilusão do Dom Quixote, outro de DNA barroco-popular, é toda baseada numa formula de “Não É Bem Assim, Meu Amo”, não é bem um gigante, meu amo, é um moinho. Mas a todo instante é preciso estar desmentindo. Disseram algo a Dom Quixote através dos livros, e ele acreditou, porque estava nos livros, naquele tempo não era um zé-vintém qualquer que pudesse ter um quarto cheio de livros. Só que agora é preciso desmentir os livros em cada curva da estrada.

O que é o colossal diálogo de Quaderna com o juiz Corregedor, no Romance da Pedra do Reino, senão um imenso “Não Foi Bem Assim, Meritíssimo Senhor Juiz Corregedor!”?   Quaderna começa a recontar uma história e daí a pouco a gente percebe que ele está mentindo para o juiz, depois percebe que capítulos antes ele tinha mentido para a gente, e daí a pouco ele só pode estar mentindo para si mesmo, porque ele acredita em coisas que não podem ser verdade. O mundo não é bem assim.