domingo, 1 de maio de 2016

4109) O dia de um serial killer (1.5.2016)







O filme começa como um documentário tradicional, em preto e branco, imagem granulada, câmera na mão balançando bastante. 

A primeira cena é de um homem jovem de pé no estreito corredor de um trem em movimento, debruçado à janela, olhando para fora. Uma mulher vem se aproximando, do lado oposto ao da câmera, e quando ultrapassa o homem por trás ele se endireita, com agilidade surpreendente, dá-lhe uma gravata e a arrasta para a cabine cuja porta estava aberta. Caem os dois sobre o banco; ele a agarra com uma espécie de fio, e a estrangula devagar, enquanto ela se debate cada vez menos, e ouvem-se apenas os ruídos surdos da luta e o balanço cadenciado do trem.


Parece o início de um filme policial qualquer, mas nisso o filme corta para um terreno baldio onde o homem está agachado junto a um corpo envolto em lona. Ele se dirige para a câmera, num tom de quem dá entrevista, e começa a discorrer sobre os aspectos técnicos de um crime, como por exemplo a quantidade de pedras que é preciso amarrar a um cadáver para jogá-lo na água e impedir que ele depois venha à tona. De trás da câmera ouvimos perguntas, a que ele responde com vivacidade e nonchalance. 

Sim (percebemos), ele é um serial killer, e está sendo seguido por uma equipe de filmagem que documenta seus crimes e faz o retrato de seu dia-a-dia (encontros com a família, ensaios musicais com a namorada, etc.), entre pessoas inocentes que não fazem a menor idéia dos crimes que ele comete.

O filme é belga, intitula-se C’est arrivé près de chez vous (1992) e foi escrito, produzido, dirigido, montado e interpretado por três estudantes de cinema sem um vintém no bolso: Benoît Poelvoorde, Rémy Belvaux e André Bonzel. O título da versão em inglês, admirada por Quentin Tarantino, é Man bites dog

Pertence ao gênero chamado mockumentary, “mock documentary”, documentário fingido. Neste gênero o meu preferido é This is Spinal Tap (Rob Reiner, 1984), onde uma equipe acompanha turnês e gravações de uma hilária banda de rock, fictícia, é claro.


Em C’est arrivé..., muitos crimes são mostrados apenas em cenas rapidíssimas de poucos segundos, mas há pelo menos duas sequências mais longas em que o diretor consegue transmitir a aterrorizante impressão de que aquilo está acontecendo de verdade. 

A primeira é quando Ben, o assassino, invade uma casa e mata sucessivamente esposa, marido e filho pequeno, contando para isto com a ajuda de membros da equipe. 

A outra é quando invadem um apartamento e durante uma longa noite todos eles, assassino e documentaristas, estupram a esposa e depois a matam juntamente com o marido.


Nestas cenas fica mais claro o aspecto (para mim) mais perturbador do filme. Não são as cenas de violência gráfica, porque afinal estamos acostumados a ver coisas até piores nos filmes de hoje. Não é a sensação de que “aquilo tudo é de verdade”, porque depois dos primeiros minutos qualquer espectador menos opaco percebe que se trata mesmo de encenação com atores. 

Mas o gradual envolvimento da equipe com os crimes de Ben arrasta o filme do gênero mockumentary para aquele departamento mais amplo dos filmes que questionam a imprensa e o modo como ela se envolve e manipula os fatos que alega estar documentando.


Para mim, C’est arrivé... (ou Man bites dog) se assemelha, por exemplo, a A Montanha dos Sete Abutres (“The Big Carnival”, Billy Wilder, 1951), onde um jornalista inescrupuloso (Kirk Douglas) retarda o quanto pode o socorro a um homem soterrado numa caverna, para faturar com o episódio. 

Ou com Rede de Intrigas (“Network”, Sidney Lumet, 1976), onde um âncora de telejornal (Peter Finch) tem um surto ao vivo e acaba servindo de pretexto para sua rede de TV intervir na política norte-americana. 

Ou Mera Coincidência (“Wag the Dog”, Barry Levinson, 1997), onde um produtor de Hollywood (Dustin Hoffman) inventa uma guerra fictícia na Europa para desviar a atenção do público de um escândalo envolvendo um candidato a presidente dos EUA.


Vistos em conjunto, estes filmes (e vários outros) ajudam a refletir sobre ética e antiética da imprensa, sobre a manipulação midiática de conteúdos supostamente “imparciais e objetivos”, sobre o envolvimento interesseiro de jornalistas ou documentaristas com os acontecimentos que estão abordando, sobre as infinitas formas de manipulação e distorção dos fatos para produzir um discurso fictício, a tal ponto que fica impossível distinguir entre a cobertura de um crime e a cumplicidade com ele.