quarta-feira, 30 de junho de 2021

4719) O Sim contra o Sim (30.6.2021)



 
João Cabral de Melo Neto tem um poema com este título, um título tão precioso que nem de poema precisaria. Mas o poema existe, sim, e é tão bom que a gente percebe que sem o poema este título maravilhoso fica até meio sem graça. 
 
Todo mundo sabe que um dos recursos principais da poesia de Cabral é contemplar duas coisas aleatórias do mundo material e mostrar que elas se parecem em alguns aspectos essenciais. O mar e o canavial, por exemplo. Ou a luz do amanhecer e o som do canto dos galos. Isso vai de poemas inteiros até pequenas imagens, como a que ele nos sugere ao lembrar que uma pessoa que leva um ovo de galinha na mão o faz com cuidados de quem leva uma vela acesa.
 
“O Sim contra o Sim” está no livro Serial (1961). Nele, em grupos sucessivos de quadras, Cabral examina e descreve poeticamente o jeito de escrever de alguns poetas que admira. Ele começa por Marianne Moore, a autora da famosa frase de que a poesia consiste em “jardins imaginários cheios de sapos verdadeiros”:
 
Marianne Moore, em vez de lápis
emprega quando escreve
instrumento cortante:
bisturi, simples canivete.
 
Ela aprendeu que o lado claro
das coisas é o anverso
e por isso as disseca:
para ler textos mais corretos.  (...)

 
(Marianne Moore e Francis Ponge)
 
A essa poética ele justapõe logo a seguir a do francês Francis Ponge:
 
Francis Ponge, outro cirurgião,
adota uma outra técnica:
gira-as nos dedos, gira
ao redor das coisas que opera.
 
Apalpa-as com todos os dez
mil dedos da linguagem:
não tem bisturi reto
mas um que se ramificasse. (...)
 
A comparação seguinte é entre dois pintores, por um lado muito parecidos, por outro muito diferentes:
 
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
 
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda. (...)

 
(Um Miró e um Mondrian)
 
Mondrian, também, da mão direita
andava desgostado,
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil.
 
Assim, não a trocou de braço:
queria-a mais honesta
e por isso enxertou
outras mais sábias dentro dela. (...)
 
E assim ele prossegue, fazendo duplas de falsas oposições: Cesário Verde x Augusto dos Anjos, Juan Gris x Jean Dubuffet.
 
O que faz ele, em síntese? Ele compara artistas de temperamentos diferentes, estilos diferentes, culturas diferentes, que produzem obras bem diferentes umas das outras. E todos estão certos. Não mostra o Sim contra o Não, não mostra essa estética martelada em nossas cabeças em tantas repetições didáticas de que sempre existe em tudo o “Jeito Certo” e os demais são “Jeitos Errados”.

 
(Um Juan Gris e um Jean Dubuffet)
 
Cada poeta ou artista desse grupo pensa, trabalha e produz dentro de uma área totalmente diversa da área dos outros. E todas são áreas delimitadas pelo que cada um deles sabe e pelo que não sabe fazer. Nenhum deles “está errado”. A poesia ou a pintura de um não é desmentida, cancelada ou tornada obsoleta pela poesia e pela pintura do outro.
 
E ao mesmo tempo Cabral não está defendendo nenhuma visão ingênua de “ah, todo mundo é artista, todo poema é bom”. Nem todo artista é bom. Assim como entre esses pares de obras não existe a vitória de um Sim contra um Não, também não existe aí uma infinita plantação de Sins onde todos os poetas e todos os artistas têm o mesmo valor.
 
Existem, nessas parelhas comparadas, vitórias simultâneas de um Sim e de outro Sim que procuram coisas diferentes, por técnicas diferentes. E a descrição que Cabral faz de cada uma dessas técnicas mostra que esse Sim é um Sim duramente conquistado, e que não basta autointitular-se poeta ou artista para receber um Sim como crachá.
 
Claro que no universo dos simples leitores teremos sempre que aceitar a existência de pessoas que adoram os versos minimalistas de Paulo Leminski e detestam os versos quilométricos de Walt Whitman, e vice-versa. Sempre existirão as pessoas que adoram Vieira da Silva e não suportam Remedios Varo, e vice-versa. É o mundo dos leitores. O leitor procura (e está certo em fazê-lo) aquilo com que se identifica, a pintura que lhe mostra o que ele consegue ver, a poesia que lhe diz o que ele consegue escutar.
 
No mundo dos poetas e dos pintores, no entanto, rivalidades assim não fazem sentido. Como na parábola de Kafka, para cada pessoa existe uma porta, e essa porta está ali só para ela. Para penetrar, é preciso trazer algo único, individual, intransferível. No portão desse mundo, há uma placa com a terrível pergunta lembrada no poema de Carlos Drummond: “Trouxeste a chave?”. O mundo dos artistas só pode ser acessado por quem traz a esse mundo um Sim.

 
(Augusto dos Anjos e Cesário Verde)