sexta-feira, 3 de setembro de 2021

4740) O Filme Misterioso (3.9.2021)


 

Eu vivo rastreando uma tendência nas narrativas modernas – e não somente nelas, porque isto vem de mais longe, mas o acúmulo de exemplos leva a gente a se concentrar em obras mais recentes, dos últimos cem anos.
 
(Digressão: quando alguém se refere aos últimos cem anos como os tempos “mais recentes”, dá para perceber que vem problema por aí.)  
 
Estou falando daquele enredo complexo, cheio de surpresas, mistérios e reviravoltas, no qual tudo gira em torno de um livro, que eu chamo O Livro Misterioso. Uma obra escrita cuja existência era duvidosa, ou negada, ou insuspeitada, ou interrompida, ou impossível. E nesse Livro Misterioso está cifrado, de certo modo, o destino humano nos tempos modernos.


 
É a Enciclopédia de Tlon no conto famoso de Jorge Luís Borges, revelando um universo paralelo que está prestes a invadir o nosso. 

É O Nome da Rosa de Umberto Eco com o seu volume desaparecido da “Poética” de Aristóteles, o livro de filosofia que redime, resgata e vindica o humor. 

É o Necronomicon de Abdul Alhazred, inventado por H. P. Lovecraft, como uma espécie de evangelho do Mal. 

É o romance-rádio escrito por uma doida, no manuscrito inacabado de Julia Marquezim Enone, que Osman Lins imaginou em A Rainha dos Cárceres da Grécia.


Os exemplos são incontáveis, e vou parar de lembrá-los aqui porque preciso subir um degrau, rumo ao estágio seguinte, que eu chamo O Filme Misterioso.
 
Sendo o mundo o que é, este Filme Misterioso (que cumpre funções extremamente semelhantes ao Livro) aparece como “McGuffin” (=pretexto para uma narrativa melodramática com ação, mistério e suspense) tanto em livros quanto em filmes. Podemos dizer que se trata de uma fase híbrida, uma fase intermediária, uma fase em que o Objeto Transcendental (o Filme) tanto pode ser evocado na nova linguagem (o Filme) quanto na antiga (o Livro).
 
Temos na literatura mais-ou-menos recente muitos exemplos de Filmes Misteriosos que servem de Santo Graal para as pessoas mais variadas, e nós conhecemos esses filmes através das vidas delas, das experiências delas, e dos seus olhares.


Nem precisaríamos pisar no terreno da ficção, porque existem na própria vida real exemplos de Filmes Misteriosos ou míticos. Filmes que existem, mas que viraram lenda. Como o Limite de Mário Peixoto, talvez o maior mito reconstituído do cinema brasileiro. Ou como The Other Side of the Wind, de Orson Welles, que passou décadas sendo remontado, restaurado, recomposto (sabe-se lá até que ponto) de acordo com o que seu criador tinha imaginado.
 
Mas na ficção a gente tem os Filmes Misteriosos. Que muitas vezes não são um só: são uma obra inteira, como a obra estranha e perturbadora de Max Castle, diretor de filmes B, no romance Flicker (1991) de Theodore Roszak. (Sim, o mesmo autor de A Contracultura.) Filmes em que estão ocultas mensagens subliminares destinadas a desestruturar o subconsciente das platéias.



Algo muito parecido ocorre no livro de William Gibson Pattern Recognition (“Reconhecimento de Padrões”, Ed. Aleph, São Paulo). Nesse futuro próximo, uma série de filmagens, chamada “the Footage”, aparece meio aleatoriamente na Internet. Trechos de um misterioso filme em preto-e-branco que ninguém sabe quem filmou, nem onde, nem quando, nem por que motivo surge de maneira tão misteriosa, e arrasta atrás de si um culto tão obsessivo.



No filme Zeroville, de James Franco, um montador de filmes meio amalucado descobre, em todo filme que assiste, um fotograma “fora do lugar”. Ele passa a furtar cópias, recortar esses  fotogramas, e tenta montar com eles O Filme Misterioso.
 
E na TV cinema a gente tem The Grasshopper Lies Heavy, o conjunto de documentários em 16mm que aparecem na série da Amazon Prime The Man in the High Castle (Frank Spotnitz). No livro original de Philip K. Dick, era um romance. Na série de TV, adequadamente, é um filme em 16mm, que em termos de tecnologia atual é algo mais pré-histórico do que um livro.
 
Tudo isto parece reproduzir a nossa tendência a acreditar que certas obras de arte parecem vir de outro mundo, parecem trazer em si verdades transcendentais e nos abrir janelas conceituais para ver o mundo de outra forma. (Não é uma má descrição do fenômeno artístico em geral.) Os Livros Misteriosos e os Filmes Misteriosos nos hipnotizam, nos arrebatam, nos transmitem uma sensação de que tudo é possível, de que vale a pena buscar mais fundo, de que “a vida não é só isto que se vê, é muito mais”.
 
O fato de projetarmos esse portal de transcendência num livro, e depois num filme, me leva a pensar: o que vem depois?


Provavelmente pensaremos num Videogame Misterioso, porque o game está para o século 21 como o cinema esteve para o século 20. A mais perfeita tradução da época em que surge.
 
Há precedentes como o eXistenZ de David Cronenberg, um jogo onde é possível penetrar fisicamente, existir em-matéria no universo representacional.
 
Já deve haver por aí uma lista razoável de Games Misteriosos, e nem me refiro às sugestões mirabolantes de Peter Molyneux, via Twitter (@pmolyneux). Um game onde a realidade se deixa manipular de maneiras inesperadas, impossíveis, insólitas. Um game com easter-eggs escondidos sabe-se lá onde, revelando sabe-se lá o que. Um universo paralelo? Uma viagem no tempo? Um pipôco, e o jogador vira pó?...
 
Ou talvez não seja um videogame, seja O Zap Misterioso, um grupo de mensagens num hiper-aplicativo destinado a substituir WhatsApp, Telegram e congêneres. Onde seja necessário fornecer certos dados. Onde seja obrigatório baixar certos mecanismos capazes de... (não direi o quê: o mundo não está preparado para tais revelações.) Mas que traga em si algo do livro, do filme, essa aura de ser o modo preferencial de projeção de nossa fantasia em busca de outros mundos, de outros universos; de hipóteses mais suportáveis do que esta Realidade sem opções.



(Zeroville)