quarta-feira, 21 de abril de 2010

1937) Contracapa de DVD (24.5.2009)



& você não sabe da missa um terço, nem sabe o bispo um rosário & o primeiro prêmio vai para quem inserir a palavra alcachofra num poema do modo mais convincente & nem um cacho de bolhas de espuma, nem uma, nem uma sobreviverá? & os dinossauros do rock pisam no palco, e chovem mil meteoros na platéia & o amor é um morcego cego gritando tão alto que ninguém escuta & gosto é como rosto, cada qual tem o seu & o primeiro computador chegou no vilarejo numa caixa de isopor, em cima de um carro de boi & quanto mais a gente lembra uma coisa mais ela fica parecida com a lembrança dela & alguém podia inventar uma lâmpada de sombra, que espalhasse escuridão e repouso & por que então ninguém acha que cruzar com gato branco dá sorte? & atirar uma pedra num pássaro é maltratar o pássaro e ofender a pedra & Deus é uma canção onde uns colaboram com os sons e outros com os silêncios & quem tá num barco afundando é capaz até de morder anzol & era tão desligado que saltou na Bahia para pegar uma conexão para São Paulo e mora lá até hoje & existe uma palavra escrita no céu, e nosso Sol é um dos pontos que a formam & é tão linda que quando atravessa o rio os peixes fazem ponte para ela pisar & se existissem trinta ou quarenta sexos aposto que ninguém daria tanta importância & a civilização é o estouro de uma boiada que não parou, que nunca vai parar & navegar no nevoeiro sem ter leme nem farol & um exorcismo às avessas para expulsar alguém de seu próprio corpo & it’s better to be the first in the Village than the second at home & publicar um livro desses é como jogar LSD numa caixa dágua & o Estado é um brontossauro, as corporações são Tiranossauros Rex, a guerrilha digital é um milhão de velociraptors & é uma pergunta escondida numa dúvida, embrulhada em ambiguidade, trancada numa idéia invisível & da lama ao caos, da alma ao saco & você me ensinou a fazer perguntas, e eu te ensinei a duvidar das respostas & na minha religião a gente finca na terra um altar de madeira e espera brotar uma santa & não, não foi incompatibilidade de gênios, foram meros erros de regência e concordância & se você não quiser ir nem para a direita nem para a esquerda, vai ter que remar contra a correnteza & morar no banco traseiro de um táxi batido, no ferro-velho da Polícia Rodoviária, bebendo água da chuva e com trinta mil canções num I-pod & é o mesmo que acreditar que a chama sobrevive à vela & tentar criar um alfabeto de 26 perfumes, um alfabeto de 26 expressões faciais, um alfabeto de 26 temperaturas & os olhos são a tela onde o cérebro projeta o seu bombardeio subliminar & um carro com três faróis, um garfo com cinco dentes, uma TV com duas telas & oratório barroco com vampiro dentro & tartarugas com casco esculpido em estilo marajoara & neste mundo de hoje o que não tende ao micro tende ao macro & a pátria é uma peleja entre as sacrossantas virtudes e as perversões empedernidas &

1936) Cançõezinhas de Roberto (23.5.2009)



Citei recentemente aqui dez canções que eu considero minhas 10 favoritas dos 50 anos de carreira de Roberto Carlos. O “Rei” é mais cantor do que compositor, de modo que nesses apanhados de sua obra estou registrando o que ele gravou, não apenas o que escreveu. Além de ter sido roqueiro e ser um bom autor/intérprete de canções românticas, uma coisa que faz o charme da obra de Roberto são certas cançõezinhas que talvez ele fizesse sem muita atenção e sem nenhuma pretensão. Cançõezinhas feitas de brincadeira mas que são lembranças caras a nós, os seus admiradores. Pois é, amigos, logo eu, tão exigente. Mas Roberto Carlos foi a trilha sonora de nossas vidas. Ideologias estéticas à parte, ele é parte da paisagem, é como o Pão de Açúcar, que nem precisava ser bonito para estar ao fundo de todas as fotos.

A simbiose (ou a promiscuidade) entre música popular e imprensa deu origem à canção “A Candinha”, em que RC tirava o chapéu para a fictícia redatora da coluna “Mexericos da Candinha”, ingênua precursora das revistas de fofoca de hoje em dia, que pegam pesado com todo mundo. A canção tinha versos (“A Candinha quer fazer da minha vida um inferno / já está falando do modelo do meu terno”) glosadas depois por Caetano em “Tropicália”. O clima brincalhão de algumas canções sempre atuou como um diluidor das doses de romantismo concentrado na obra de RC, e nunca ele foi tão divertido quanto em canções bobinhas como “É meu, é meu, é meu”, em que ele se declara o proprietário do corpo da amada “da sua cabeça até / a ponta do dedão do pé”, e diz: “Tudo que eu falei, meu bem / e o que eu não falei também / tudo que você pensar / é meu, é meu, é meu”.

O mesmo espírito de malícia infantil está em “Vista a roupa, meu bem”, em que ele, tentativamente, sugere que a amada está nua na cama e só depois revela, para o alívio da Família Brasileira, que os dois estão na praia. O jeitão de cantar, imitando os fox-trots de outrora, prefigura outra caricatura musical, “I love you”, em que ele faz alusão musical e poética a uma época ultrapassada: “...e eu vou vestir meu terno branco outra vez”. Eram canções em que ele começava a trocar as guitarras roqueiras por um estilo “retrô” mais de acordo com seu repertório futuro.

Músicas assim nos lembram que Roberto Carlos é geralmente visto como um roqueiro que depois se tornou um cantor romântico com tinturas religiosas. Mas o seu repertório, tanto como compositor quanto como intérprete, sempre foi mais variado do que isto, mesmo levando em conta o perfil cauteloso, conservador, politicamente correto e de “genro ideal” que ele sempre teve todo o cuidado de cultivar. Como ocorre em todas as carreiras não programadas, a de Roberto Carlos flutuou de acordo com as tendências de mercado e com os momentos da vida pessoal do artista. Mesmo suas canções ideológicas (Cristo, as baleias, etc.) têm a espontaneidade das mensagens que vêm da emoção, não do intelecto.

1935) Informação e caos (22.5.2009)




A principal diferença entre a linguagem literária e a linguagem factual, denotativa (a que estou usando neste artigo, por exemplo) é que esta última pretende ser objetiva, precisa, clara, e a linguagem literária pretende ser caótica e contraditória. 

Pode parecer um contra-senso. A quem interessaria o uso de uma linguagem assim? E no entanto é o que a maior parte das literaturas nos propõe: textos cujo significado não é unívoco, muda conforme o leitor, e muda para um mesmo leitor conforme o momento da leitura.

Literatura é texto que aponta simultaneamente em diferentes direções. Por que isto nos dá prazer? Porque esta é nossa relação com o mundo. 

O mundo é contraditório, caótico. Tendo contato com ele, recebemos milhões de mensagens simultâneas que não são dirigidas a nós: simplesmente estão ali, acontecendo, existindo, e cabe a nós fazer sentido delas e reagir de acordo. 

O mundo não é uma mensagem deliberada, ou melhor, é a superposição entrelaçada de milhões de mensagens deliberadas, se considerarmos que tudo é criado com um propósito -- o comportamento de cada pessoa, o desenho das casas e das roupas, a presença e o movimento dos automóveis, as mensagens audiovisuais que emanam dos rádios e das TV. 

Cada um desses detalhes exprime uma deliberação, cumpre uma função muito clara e fácil de racionalizar. Mas a superposição de tudo isto não é feita por ninguém em especial, não há um maestro, uma “mente ordenadora” controlando tudo. Uma cidade é um caos em equilíbrio e em mutação constante.

Quando lemos um romance, ele nos dá as duas coisas – significado e caos. Ou aparente significado e aparente caos. 

Isto reproduz nossa experiência direta da vida, quando o tempo inteiro somos tomados ou idéias ou emoções antagônicas, somos assaltados por estímulos visuais e sonoros que nada têm a ver uns com os outros. Nossa mente vê-se forçada a separar instantaneamente o essencial do irrelevante, o importante do descartável. 

Um romance, em vez de partir em linha reta de um ponto para atingir outro ponto da maneira mais objetiva possível, não passa de um trajeto ziguezagueante, cheio de idas e vindas, de retrocessos e rodeios, que a cada releitura é visto de maneira diferente.

A linguagem do romance tem que ser sinuosa, contraditória, não-linear em termos de informação cumulativa, mesmo que seja linear em termos da narrativa em si, da sequência cronológica dos acontecimentos. 

É preciso que os elementos que o leitor vai colhendo ao longo da leitura apontem em direções diferentes, e, mesmo que no final o autor proponha uma “explicação oficial” para os fatos narrados, seja possível ao leitor duvidar dela, achar que o próprio autor não entendeu direito o que aconteceu naquela história, porque há uma miríade de detalhes que sugerem outra explicação. 

O romance, que já foi chamado de “a narrativa do herói problemático”, é na verdade uma narrativa problemática ele próprio, no melhor sentido do termo.








1934) As gravadoras e as editoras (21.5.2009)



(a Livraria Editora José Olympio)

Há 30 anos, as principais gravadoras de discos no Brasil eram ligadas a multinacionais. Havia muito dinheiro circulando. Executivos disputavam artistas em leilões milionários, acompanhados pela imprensa: “Fulano vai assinar com a RCA por um milhão de cruzeiros!” No outro dia: “Ariola oferece um milhão e meio – e leva Fulano!”. Artistas embolsavam uma grana vertiginosa ao assinar um contrato que os vinculava por cinco anos àquela gravadora, e com exclusividade, com a obrigação de lançar um disco por ano. A gravadora ditava as regras. Às vezes o artista queria fazer uma “participação especial” no disco de um amigo que pertencia a outra gravadora; e o patrão dele dizia “na-na-ni-na-não”. O termo era esse: pertencer. O artista pertencia à gravadora,como um jogador de futebol pertence ao clube. Só pode jogar naquele.

Há 30 anos, as editoras de livros no Brasil eram empresas nacionais, muitas vezes criadas e administradas pelos membros de uma mesma família (os Machado na Record, os Lacerda na Nova Fronteira, os Prado na Brasiliense, etc.). Seus contratos com autores só raramente eram contratos de exclusividade. Contratavam-se livros específicos, não os autores. Já me ocorreu de ter três contratos simultâneos com três editoras para produzir três livros diferentes, e nenhuma delas podia dar palpite no fato de eu ter outros contratos ou não. (Os cantores, coitados, não tinham direito a isto). Os adiantamentos oferecidos pelas editoras eram modestos. Ou melhor, eram realistas. Se o seu livro anterior vendeu 5 mil, você tinha direito a reivindicar um adiantamento nessa faixa, partindo do princípio, já demonstrado, de que era capaz de vender essa quantidade. (Claro que tudo isso era sujeito a negociações e pechinchas, não era um direito automaticamente garantido).

Bem, não vou comentar aqui a situação das nossas gravadoras de discos. Quem quiser detalhes, folheie todos os dias as páginas dos obituários. Gastaram a rodo, fizeram orgias (“Fretemos um jatinho com 30 pessoas para gravar um videoclip em Aruba!!!”), aí surgiu o queimador-de-CD e reduziu Roma a cinzas. O interessante é que o mundo imperial das gravadoras está chegando, nos últimos 10, 12 anos, ao setor de editoras de livros. Editoras se engalfinham na Feira de Frankfurt, em leilões milionários, para publicar o livro ainda não terminado de um escritor croata ou islandês. Nossas editoras nacionais, de-família, estão sendo compradas pelas editoras ligadas a grupos multinacionais, que estão investindo pesado em nosso mercado: Alfaguara, Planeta, SM, uma porção. Essas editoras têm aplicado em muitos escritores incautos o golpe do contrato de exclusividade: “Enquanto você publicar conosco, não pode publicar com mais ninguém”. Proposta que, no meu entender, deve ser sempre respondida com uma vigorosa banana. A menos que a editora ofereça um milhão de reais por ano, mais os direitos autorais relativos à venda dos livros.