quarta-feira, 12 de outubro de 2011

2685) A dor que deveras sente (12.10.2011)




A televisão adora matérias sobre reencontros. Pais e filhos que não se veem há 40 anos, irmãos que foram separados na infância, famílias que se dispersaram, etc. Aparecem nos programas de Ana Maria Braga, de Luciano Huck, de Faustão; aparecem no “Fantástico”, no “Globo Repórter”... 

A televisão adora localizar essas pessoas, organizar o encontro, preparar, gravar tudo, editar de um jeito bem caprichado e mandar ao ar para extrair lágrimas simultâneas em vinte milhões de lares.

Vemos o homem grisalho dentro do ônibus, indo de São Paulo para o lugarejo nordestino de onde emigrou; e vemos a velhinha de cabelos brancos, sentada na sala, à sua espera. Chega esquecemos das câmaras que acompanham um no ônibus e vigiam a outra na sala. 

O ônibus para, o filho desce, vem se aproximando do portãozinho da casa. Na sala, a mãe se ergue, vai à janela, ansiosa: “Vige Maria! Parece que é ele...” Batem à porta. A câmara de dentro mostra a velhinha indo abrir, a câmara de fora mostra o nervosismo do filho. 

A porta se abre, os dois nem sequer se olham, caem nos braços um do outro. Uma das câmaras dá um zoom numa lágrima.

A TV mostra isto o tempo todo, correto? Não se passa um mês sem que algum programa de grande audiência nos peça licença para apertar o botãozinho daqui de dentro que nos faz ficar de olhos úmidos. Se eu, que sou este poço de cinismo, fico, de vez em quando, que dizer dos seres humanos normais? 

E é um momento como estes nos dá um exemplo perfeito da junção entre verdade interior e fingimento exterior, entre sentimento e representação, entre a integridade da emoção vivida para dentro e a sós e a esquizofrenia da emoção vivida para fora e diante de uma platéia.

Não custa lembrar Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.” A dor sentida é uma, a dor fingida é outra, embora ambas doam. A emoção que a mãe e o filho teriam ao se reencontrar por conta própria seria uma. Mãe e filho se reencontrando no “Fantástico” é outra. 

É uma emoção triangulada, em que há uma terceira parte (as câmaras, metonímia da audiência) envolvida. No mundo-espetáculo, não existem mais dores invisíveis: tudo é show público em tempo real. Toda emoção é planejada e executada conforme um roteiro. Não digo que a emoção é falsa, digo que é outra. 

Assim como é outra a emoção que o poeta experimenta. No instante de escrever, o que conta não é o que sentiu, é o que convém externar diante da platéia, o que é possível reinventar com palavras. Poetas e atores são especialistas nessas emoções trianguladas, representadas, fingidas com sinceridade.